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Quando desejos outros é que falam

30 de outubro de 2015

Por que a poesia tem que se sustentar
de pé, cartesiana milícia enfileirada,
obediente filha da pauta?

(“Exterior”, Waly Salomão)

 

Não é verdade que o livro de poemas eróticos de Carlos Drummond de Andrade, O amor natural, publicado cinco anos após sua morte, revele uma nova face do autor. Em Alguma poesia, seu título de estreia, ele já escrevia os insinuantes versos de ‘Iniciação amorosa’: “Um dia ela veio para a rede,/ se enroscou nos meus braços,/ me deu um abraço,/ me deu as maminhas/ que eram só minhas./ A rede virou,/ o mundo afundou”. O amigo Mário de Andrade comentaria a obra em carta de 1º de julho de 1930: “Você, o suavíssimo, encheu o livro de detalhes pornográficos à (ponhamos) francesa, como a pele picada pelos mosquitos, o dente de ouro da bailarina; ou à portuguesa com as tetas”, acrescentando que o mineiro recheara “o livro de coxas e pernas femininas”.

Com tom mais amoroso do que francamente libertino, o erotismo percorreria a obra de Drummond. Vale observar que os poemas de O amor natural foram escritos ao longo de muitos anos.

 

Ilustrações de Cartes postales érotiques (1977) | Acervo Carlos Drummond de Andrade | IMS

 

O interesse do poeta pelo assunto é atestado pelo número generoso de livros sobre erotismo e de temática erótica que constam de sua biblioteca. Dos mais de 4.500 exemplares catalogados e disponíveis para consulta no IMS, há uma fatia significativa de autores que abordam o tema. De Bernardo Guimarães (O elixir do pajé e A origem do mênstruo), a Pietro Arentino (Sonetos luxuriosos) e Silva Alvarenga (Poemas eróticos), passando por  antologias de poesias eróticas em francês e espanhol assinadas por Rubén Darío, Baudelaire, Apollinaire, García Lorca, Rimbaud, Pound, Neruda, Whitman, Supervielle…

O gosto de Drummond por este gênero de literatura reservou em sua estante espaço para Psychologie de l’art érotique (1971), do crítico Pierre Cabanne, com oito ensaios fartamente ilustrados sobre o erotismo desde o Realismo até àqueles dias. Destaque-se, ainda, o curioso Quand les hommes rêvaient à l’amour, do dinamarquês Erik Nörgaard, uma espécie de levantamento-tutorial, do ponto de vista masculino, de itens obrigatórios que fariam parte do universo da “mulher dos sonhos” do final do século 19, início do 20: corpete, meias-calças, banho de mar…

Com uma coleção de mais de 400 de cartões-postais que ele mesmo organizou por temas, Drummond angariou para seu arquivo pessoal o livro Cartes postales erotiques, reunião de litografias, collortypes e fotografias em forma de postais do século 19. Há de se ressaltar, também, o exemplar Le sexe à l’écran, de Gérard Lenne, de 1978, uma compilação de artigos sobre filmes franceses lançados até aquele ano, dentre os quais fervilhavam Último tango em Paris (1972) e O império dos sentidos (1976). Os longas foram agrupados segundo categorias como ninfomania, sadomasoquismo, homossexualismo, zoofilia, coprofilia, voyeurismo, sexo na natureza etc.

 

Livros da biblioteca de Carlos Drummond de Andrade

 

De sua biblioteca, destacam-se, especialmente, Dicionário erótico da língua portuguesa e Dicionário de termos eróticos e afins. Organizadas por Horácio de Almeida, em 1980 e 1981, respectivamente, essas obras nasceram da empolgação de Drummond em um Sabadoyle, conforme se lê em crônica do poeta itabirano publicada no Jornal do Brasil, em 14 de junho de 1983: “Um dia, numa das reuniões de sábado, em casa de Plínio Doyle, alguém lamentou a falta, no Brasil, de um repositório verbal de erotismo, quando imenso é o vocabulário nacional da especialidade, herdeiro e continuador da tradição portuguesa.” Na época ainda recentes, publicações como Lexikon der Erotik (1976), de Ludwig Knoll e Gerhard Jaeckel, e Dictionnaire historique, rhetorique, étymologique de la litterature erotique (1978), do linguista Pierre Guiraud, mostravam que o assunto constituía material digno de ser trabalhado com afinco, seriedade e celeridade. Entusiasmado, diz Horácio de Almeida no prefácio da primeira edição de seu dicionário, “Drummond deu mais do que prometera”: além de ser o pai da ideia, influiu na sistemática da obra, colaborou de modo intenso com pesquisa de vocábulos, sugeriu trechos literários para ilustração dos verbetes e datilografou as muitas fichas manuscritas.

Dupla obstinada, Horácio e Drummond concluíram em oito meses a primeira edição, que se esgotou rapidamente. No ano seguinte, saiu uma segunda edição, revista e ampliada, com quase 4.500 verbetes. Em dedicatória a Drummond, o autor paraibano reconhece: “O nosso livrinho teve uma segunda edição, conforme você previa. Eu não acreditava porque cria em mim, mas deveria crer em você”.

 

Livros da biblioteca de Carlos Drummond de Andrade

 

A inclinação pelo tema erótico não ficou só na aquisição de livros alheios. Em Amor, amores (1975) e Corpo (1984), já havia o prenúncio do arrebatador O amor natural – que não deveria ser arrebatador. Palavras de Drummond: “Tudo o que parece antinatural é natural”. E há de se concordar, portanto, que nada mais natural do que o amor, do que amar. Natural são os corpos em ação. Não há, ou não deveria haver, espanto, hesitação ou julgamento ao ler “Era manhã de setembro/e/ela me beijava o membro”.

O amor natural é um permanente exercício criativo que conjuga experimentação com a língua escrita e com a materialidade do corpo. A língua é desdobrada, remexida, cutucada de tal modo que as mais altas sensações e os mais aturdidos movimentos são expressos com delicadeza voraz. Mas não ofende – somos tragados pelo amor, palavra essencial. Neste livro tudo é primoroso: a construção de sonetos e versos alexandrinos, o trabalho com justaposição e aglutinação, assim como as metáforas criadas com absoluta mestria. Concha, berilo, esmeralda, pulcra rosa preta, porta hermética nos gonzos, gruta invisa, rosa pluriaberta, anêmonas castanhas, flora brava, fava da baunilha, moita orvalhada, trilha do demônio ao lugar santo… É impossível não ofegar diante de versos tais quais “Não te vejo não te escuto não te aperto/mas tua boca está presente, adorando./Adorando./Nunca pensei ter entre as coxas um deus.” ou “Bundamel bundalis bundacor bundamor/bundalei bundalor bundanil bundapão/bunda de mil versões, pluribunda unibunda”. O poeta encontraria nas palavras ainda em “estado de dicionário” combinações sensíveis e, ao mesmo tempo, licenciosas, o que não é tarefa pequena.

Os quarenta poemas que compõem o livro ficaram durante anos parcialmente engavetados. Alguns amigos (Plínio Doyle, Gastão de Hollanda e José Mindlin, entre poucos outros) e o genro, Manuel Graña Etcheverry, tiveram acesso aos originais. A este, Drummond dedica o “exemplar nº 1, da edição de dois” do que viria a ser O amor natural.

 

Ilustrações de Cartes postales érotiques (1977) | Acervo Carlos Drummond de Andrade | IMS

 

Que não se enganem: os poemas dali não eram mais arrebatamentos de juventude, tampouco diversão de um velho sátiro. Escritos, revisados e amadurecidos ao longo de sua carreira literária, Drummond chegara a ensaiar um lançamento nos anos 50, mas desiste, conforme afirma em carta a Abgar Renault: “A ideia da publicação en secret dos poemas eróticos foi posta de lado: iria desmoralizar-me até a décima geração. Imagine que a notícia chegou a ser publicada nos jornais!”. No entanto, durante a década de 1970, alguns poemas seriam esparsamente editados em revistas para o público masculino como Status, Ele & Ela e Homem – estavam em fase de teste o poeta, a poesia e o público.

Pouco depois, em 1985, Drummond não se furtou a ceder vinte dos poemas de O amor natural para a elaboração da tese “O erotismo nos poemas inéditos de Carlos Drummond de Andrade”, de Maria Lúcia Pazo Ferreira, pela ufrj. O poeta não apenas cedeu, como orientou, sugeriu bibliografia, trocou inúmeras cartas com a autora e “ajudou a circunscrever o universo de análise (…) limitando-se à abordagem do misticismo sem fervor religioso”, afirma Affonso Romano de Sant’Anna no prefácio do livro que seria publicado somente em 1992. Na tese, a análise de O amor natural pela via do místico, estabelecendo relações com a tradição oriental, livra-o de ser incluído na onda pornográfica que se avolumava naqueles tempos, o que enfraqueceria toda sua potência poética. O escritor, ao conduzir tão de perto os poemas, primeiro para a academia, e somente depois de sua morte liberá-los para as prateleiras das livrarias, direciona a leitura da crítica especializada e previne futuros equívocos. Dá o caminho das pedras.

Aos que teimam em torcer o nariz para abordagem na poesia de tema tão sublime e natural quanto clássico, versos do próprio Drummond:

Assim o amor ganha impacto dos fonemas certos
no momento certo, entre uivos e gritos litúrgicos,
quando a língua é falo, e verbo a vulva,
e as aberturas do corpo, abismos lexicais onde se restaura
a face intemporal de Eros (…). 

 

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