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Caderno de prece: Clarice Lispector

31 de julho de 2018

Diz-se que os homens com quem Clarice Lispector conviveu, ou apenas conheceu, quase inevitavelmente sucumbiam a seu charme, como se não bastasse o fascínio que exercia com a inteligência e a sensibilidade especialíssima de que era dotada.

Não é difícil imaginar a autora de Perto do coração selvagem nas reuniões em Consulados e Embaixadas dos países onde morou como mulher do diplomata Maury Gurgel Valente, com quem casou em 1943. Em cartas às irmãs, Tania e Elisa, ela descreve quão tediosas eram as recepções sociais em um mundo alheio ao seu interesse. Fácil entender. Ainda assim, como manda a polidez, sabia conter-se: “Adoro ouvir coisas que dão a medida da minha ignorância” –, escreveu ela na crônica "Conversas", com alguma ironia, talvez?

Opostas ao universo formal da diplomacia eram as rodas de poetas e cronistas que efervesciam no Rio de Janeiro a partir de 1945, quando começou a desembarcar na cidade o quarteto dos quatro mineiros, inicialmente com Fernando Sabino e depois com Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende, para quem Clarice “era um exemplo brutal da singularidade da pessoa humana”, e Hélio Pellegrino. Além de outros talentosos boêmios, faziam parte do grupo Vinicius de Moraes e Rubem Braga. A esse meio ela se integrou com naturalidade quando permaneceu no Rio, entre janeiro e março de 1946, ocasião em que conheceu Fernando Sabino e aproveitou para divulgar O lustre, lançado no ano interior e elogiado vivamente pela crítica americana na sua tradução para o inglês neste ano de 2018.

Muitos dos amigos do grupo carioca gravitavam em torno de Clarice, equilibrando-se entre amizade e amor, não se sabe bem como, ou misturando um e outro na confusão do feitiço. Eram jornalistas, na maioria, assim como a própria Clarice seria depois, quando, em 1967, sob as bênçãos de Rubem Braga, passou a cronista do Jornal do Brasil.

Do quarteto mineiro, seria Paulo Mendes Campos, no início da década de 1960,  a viver, com ela, um romance ardoroso, mantido com a discrição conveniente a um homem casado: desde 25 de outubro de 1951, mesmo dia em que lançou seu primeiro livro de poemas, A palavra escrita, Paulo, ao pé do altar, jurou amor eterno e fidelidade à inglesa Joan Abercombie. Quanto a Clarice, aos quarenta anos, naquela fase da vida que Adélia Prado chamou de “demais para uma mulher”, podia viver a paixão livremente: estava separada de Maury desde 1959, e dava-se por inteiro ao amante, com a intensidade que a caracterizava.

Clarice Lispector, 1964. Agência O Globo/ Fotógrafo não identificado. Arquivo Clarice Lispector/ Acervo IMS. Paulo Mendes Campos, 1960. Arquivo Paulo Mendes Campos / Acervo IMS.

Dessa ligação quem dá notícia é Benjamim Moser em Clarice, uma biografia.

Segundo ele, o romance, vivido em 1962, teria sido breve, o que não lhe diminui o fervor. A julgar pelos dados biográficos dos amantes, o ano foi importante para eles: Paulo lançava mais um livro de crônicas, Homenzinho na ventania, e fazia, em consultório médico, uma experiência com o uso de LSD. Emoções fortes, portanto. Clarice, por sua vez, recebia o Prêmio Carmen Dolores pelo romance A maçã no escuro, publicado no ano anterior, além de se firmar como cronista na revista Senhor.

Ivan Lessa – conta Moser – via o casal “andando furtivamente pelas ruas secundárias do Leme”, bairro onde Clarice morava, ou entrando num apartamento que Sérgio Porto emprestava ao casal, onde ela se apresentava ao porteiro simplesmente como “Madame”.

Segue o biógrafo a afirmar que, segundo Rosa Cass, grande amiga da escritora, ela amou Paulo Mendes Campos até o fim da vida, em 1977, aos 57 anos. E Rosa devia estar certa – é o que prova uma anotação ligeira, mas expressiva, feita por Clarice na folha de uma espécie de agenda que integra a segunda parte dos manuscritos de Um sopro de vida, chegada ao IMS neste ano de 2018. Em meio a notas corriqueiras, como lembretes de horário com a manicure ou o maquiador, a escritora, que misturava construção literária com registros do cotidiano, escreveu no topo da página:

Santo Antônio, pelo amor de Deus,

ache o PMC para mim, para sempre,

mesmo que só como amigo! Amém.

Página do manuscrito de Um sopro de vida. Arquivo Clarice Lispector / Acervo IMS. Clique na imagem para ampliá-la.

 

Mas Santo Antônio nem ouviu. Diante da ameaça de Joan de voltar para a Inglaterra levando os dois filhos do casal, PMC optou pela família e deixou Clarice – arremata o biógrafo Benjamin Moser. Cercado pelos seus, o cronista de “O amor acaba”  morreria em 1991, aos 69 anos de idade.

Ainda assim, lê-se na cronologia feita por Nádia Gotlib para os Cadernos de Literatura Brasileira que PMC esteve solidário em 1967, quando, à custa de várias cirurgias, Clarice se recuperava das queimaduras que sofrera durante um incêndio, em casa. Deve ter sido solidariedade discreta, porque a página da agenda em que se lê a súplica a Sto. Antônio exibe também um lembrete de consulta ao dr. Jacob David Azulay, com quem ela começou a fazer sessões de psicanálise em 1968. Portanto, a oraçãozinha é deste ano ou dos seguintes, em que ela seguiu com as sessões e continuava a sofrer de saudades, anos depois de terminada a relação amorosa.

Clarice Lispector e PMC eram duas sensibilidades convergentes. E se, na juventude, tinham vivido, separados e cada um a seu modo, experiências de alguma felicidade, não deixavam de se aproximar por meio de um certo modo de ver o mundo. O Paulo Mendes Campos de “Relógio de Sol”, poeta dos versos “o meu coração arbitrário/ girando em sentido contrário/ à parábola do poente”, muito tem a ver com o espírito clariciano.

Sem ser um pessimista, ele é o mesmo que escreveria: “Nada do que é humano me é estranho, a não ser a joie de vivre”, aforismo que podia perfeitamente ter sido escrito por Clarice. Não seria ela mesma a declarar na crônica “Ao correr da máquina” o quanto absorvia “as dores do mundo”, e concluir com a interrogação: “Que fazer, se sinto totalmente o que as outras pessoas são e sentem?”

Importa pouco se o romance entre Clarice e PMC foi breve. A duração nada tem a ver com a profundidade do sentimento que os uniu; com a força do mistério que determina a atração inelutável entre duas pessoas.

O que não se sabe é o dia em que ele viu “peixinhos nos olhos de Clarice”, como os identificou, certa vez, Manuel Bandeira. Se os descobriu, pode ter sido nesse instante que o “coração arbitrário” de PMC desgovernou-se.

Agradeço ao professor Carlos Mendes de Sousa por ter descoberto e mostrado a página da agenda aqui comentada.

 

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