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A descoberta de Florence

01 de junho de 2014

A descoberta isolada da fotografia no Brasil em 1833 por Antoine Hercule Romuald Florence (1804 – 1879) representa um importante marco na história da fotografia mundial, por comprovar que as informações essenciais para o desenvolvimento desta nova tecnologia, oriundas de pesquisas realizadas na Europa nos séculos XVII e XVIII, já haviam percorrido o mundo no início do século XIX, permitindo que um jovem artista e pesquisador nascido em Nice e radicado no Brasil desde 1824 desenvolvesse na distante Vila de São Carlos, atual cidade de Campinas, no Estado de São Paulo, a sensibilização de papéis fotográficos utilizando-se dos sais de prata fotossensíveis, como o cloreto de prata.

Contando com a colaboração de Joaquim Corrêa de Mello, boticário local, Florence (veja as obras que integram o acervo do IMS) dedica-se inicialmente a pesquisas em torno da fotografia com a câmera escura e posteriormente com objetivo de obter um processo para produção de impressões de textos e desenhos, processo este que pudesse simplificar e baratear os custos de impressão até então determinados pelas técnicas de litografia, gravura e tipografia, que exigiam a instalação de equipamentos gráficos caros e pouco práticos.

Florence descreve suas primeiras pesquisas e experimentos na área gráfica no manuscrito de sua autoria intitulado L’Ami des Arts livré a lui même ou Recherches et decouvertes sur différents sujets nouveax:

“Tendo tido o desejo em 1830 de publicar uma Memória tendente a fazer da voz dos animais um novo objeto de Estudos da Natureza, e estando em país onde não há tipografia, compreendi o quanto seria útil que esta arte fosse simplificada em seu aparelho e em seu processo, a fim de que todos pudessem imprimir quanto lhes fosse necessário. Desde então foi que me dediquei ao estudo das artes de impressão, com os poucos livros que então possuía e vi que a litografia, que é a que pode se tornar mais geral ainda, tinha pedras muito pesadas, volumosas e caras, que o seu processo é ainda assaz complicado e exige materiais que só se encontram nas cidades grandes.

A gravura necessita de pranchas de cobre, muito bem polidas, o que é custoso, e ao mesmo tempo impossível de se encontrar em todos os lugares. A arte tipográfica está bem longe, por seu grande aparelho, de estar ao alcance de quem se encontra em minhas circunstâncias.

Entreguei-me pois a pesquisas que me levaram pouco a pouco a uma descoberta cuja utilidade já me foi provada por cinco anos de experiências, e que me apresentam duas grandes vantagens, às quais não ambicionava: 1ª, a planche (tábua) embebida (fournie) de tinta uma única vez para toda a tiragem; 2ª, a  impressão simultânea de todas as cores. Há seis anos e meio que eu trabalho na poligrafia; minhas pesquisas têm sido penosas ao ponto de me cansar…”

Pesquisador e inventor de diversos processos gráficos, Florence buscou sempre a simplicidade e a eficiência, reagindo dessa maneira no âmbito da investigação científica às condições de isolamento e falta de recursos materiais que enfrentava na Vila de São Carlos, situada no interior do Brasil do século XIX.

Desde 1831, Florence buscou reconhecimento de suas experiências, tanto a nível nacional quanto internacional:

“…dans la même année de 1831 une mémoire où je revelais tout le secret de la polygraphie a accompagné de deux épreuves, l´une d´un écrit autographe, l´autre d´un indien Apiacá. M. Pontois m´écrivit qu´il allait remettre ces pièces au Ministre de L´Interieur à Paris, mais je n´ai jamais reçu aucune réponse”.

(Correspondance et Pièces Scientifiques  p.02)

Com o anúncio da daguerreotipia em 1839 em Paris, Florence reage a uma sensação de perda da oportunidade de reconhecimento de uma de suas invenções, escrevendo à imprensa e enviando exemplares de seus resultados a diversos jornais, o que contribuiu para que seu trabalho sobrevivesse e para que esta importante contribuição à história da fotografia brasileira e mundial por parte deste pesquisador de origem francesa trabalhando isoladamente no Brasil se fizesse conhecida e reconhecida. Além dos próprios esforços de Florence em registrar suas descobertas, devemos ressaltar o trabalho de Boris Kossoy, pesquisador brasileiro e emérito historiador da fotografia brasileira, que registrou e comprovou a descoberta isolada da fotografia no Brasil por Hercule Florence.

As principais invenções e investigações de Hercule Florence estão registradas no sumário de seu volume manuscrito intitulado Le Amis des Arts…:

Prospectu

Découverte de la Polygraphie

Décoverte de la Photographie, ou Imprimerie à la lumière solaire

Recherches sur la fixation des images dans la chambre obscure

De l´action de la lumière sur les corps, appliquée à la photographie et à la fixation des images dans la chambre obscure

Noria Hydro-pneumatique, tendant à produire une grande force, au moyen d´une eau stagnante

Etudes de ciels, à l´usage des jeunes paysagistes

Recherches sur la voix des animaux, ou  Essai d´un nouveau sujet d´Etudes, offert aux amis de la nature

Moyens d´imiter parfaitement le clair de lune et l éclat des étoiles dans les tableaux transparents

Essais sur l´impression du papier monnaie, d´une manière entièrement inimitable

De la compressibilité du gaz hidrogène, appliquée à la direction des aerostasts

Essai sur l´ impression des tableaux à l´huile, ou Estampes coloriées

Fabrication au métier, des chapeaux du Chili, et de toute espèce de chapeaux de paille

L´inventeur au exil.

Antes de discutirmos em detalhe os principais aspectos relacionados à descoberta da fotografia por Florence, é importante que se conheça seu perfil e sua trajetória.

Após alistar-se na marinha imperial francesa em 1822, trabalhando como desenhista, Florence embarca no navio Marie Thérèze em viagem com destino a América que se inicia em fevereiro de 1824, desembarcando 45 dias depois no Rio de Janeiro, onde decide permanecer. Ainda em 1824, responde a anúncio do Barão Georg Heinrich von Langsdorff (1774-1852), cônsul-geral da Rússia no Brasil, que buscava um segundo desenhista para a expedição que realizaria pelo interior do país. Florence candidata-se e é aceito.

Trabalha muito próximo a Langsdorff, sendo encarregado de realizar no segundo semestre de 1825 os preparativos para a expedição fluvial, a partir de Porto Feliz em São Paulo. Lá conhece sua futura esposa, Maria Angélica Alves Machado e Vasconcellos, com quem viria a casar-se após o término da expedição, que perdurou de 1825 a 1829. Seus desenhos e aquarelas realizados durante a expedição são de excelente qualidade e o colocam no mesmo nível do trabalho do primeiro desenhista da expedição Amado Adriano Taunay.

Ao estabelecer-se na Vila de São Carlos em 1830, dá continuidade às suas investigações e pesquisas científicas, dirigindo-se a partir de 1832 em direção à experimentação com materiais fotossensíveis, em particular o nitrato de prata, por indicação de Joaquim Corrêa de Mello.

Alcança resultados práticos em 1833 e registra em seus diários científicos já em 1834 pela primeira vez o nome Photographie, anteriormente ao uso do termo por John Frederick William Herschel (1792-1871) na Inglaterra em 1839.

A existência no acervo do Instituto Moreira Salles de exemplares anotados por Florence dos resultados de suas diversas invenções na área gráfica, incluindo um exemplar do processo fotográfico que desenvolveu – Epréuve Nº2 (photographie) –, é extremamente relevante para a história da fotografia brasileira e mundial. Estes exemplares formam um conjunto representativo dos diversos dossiês enviados por Florence a jornais e personalidades no Brasil, após o anúncio da invenção da fotografia por Daguerre em 1839, para registrar publicamente suas descobertas, em especial a poligrafia. Este conjunto que integra o acervo do Instituto permaneceu desconhecido até recentemente, o que favoreceu inclusive a preservação do exemplar fotográfico aqui reproduzido, objeto extremamente fotossensível.

Florence não utilizou o tiossulfato de sódio para fixação das imagens. Experimentou com diversos sais, com amônia e também com urina. Dessa forma, todos os exemplares conhecidos dos experimentos de Florence não foram totalmente fixados, o que o levou inclusive a anotar nos  próprios exemplares que enviou à imprensa recomendações expressas para que os mesmos não fossem expostos à luz e que fossem mantidos em envelopes ou estojos fechados em locais secos e frescos.

‘Gardées dans un portefeuille, les épreuves par nitrate argentique peuvent se conserver des années, sans altération; jén ai qui ont dejá 3 ans…’

(Le Amis des Arts… p.50)

As manchas escuras que observamos no original são causadas por fenômenos físico-químicos posteriores à produção do objeto, como a redução da prata iônica não reduzida originalmente a prata metálica durante a exposição à luz no momento da impressão original, seja em função de reações de oxi-redução aceleradas por elementos ambientais como a temperatura e umidade, ou por ação posterior direta da própria luz, o que provoca a formação de áreas de maior densidade que apresentam tons rosáceos e arroxeados, conforme Florence descreve em seus diários quando discute as dificuldades que enfrentou relativas à fixação de seus exemplares fotográficos. Este original, portanto, não pode ser exposto à luz por períodos prolongados, mesmo dentro dos níveis de iluminação recomendados internacionalmente para exposições fotográficas, o que requer a exibição de fac-símile para permitir ao público o exame deste resultado que documenta as experiências de Florence no campo da fotografia.

Florence buscava um método de reprodução e impressão semelhante às tentativas de Niepce e Talbot voltadas para utilizações gráficas dos materiais fotossensíveis. Produziu desenhos em ponta de metal sobre vidro escurecido com carvão, para assim criar uma matriz de impressão que atuava como negativo na exposição à luz do sol em contato com papel sensibilizado com sais de prata, posteriormente lavado em água corrente e fixado parcialmente com sais e amônia.

Embora Florence tivesse realizado grande parte de suas pesquisas fotográficas com um objetivo claramente voltado para possíveis aplicações gráficas, ele, como relata abaixo no Livre d’Annotations et de Premiers Máteriaux, na realidade iniciou seus experimentos com uma câmera escura e descreve em seu diário os resultados alcançados no início de 1833:

“15 de janeiro. Creio antever que um dia se imprimirá pela ação da luz. Toda gente sabe que a luz descolore os objetos; vi, pelo menos, que isso acontece com as dobras das peças de indianas expostas à claridade. Se eu fosse químico, talvez conhecesse uma substância suscetível de colorir-se ou descolorir-se à ação da luz, ou de mudar de cor, ou de escurecer… a única substância que sei possuir a virtude de enegrecer ao sol, mas o que seria preferível a tudo, é a que de preta se tornasse branca, ou cuja cor, ao menos se tornasse facilmente mais clara. Ora, se assim acontecesse, como o creio, colocar-se-ia uma folha de papel, ou outro qualquer corpo de superfície lisa, coberta de uma camada dessa substância numa câmara escura. A própria escuridão seria favorabilíssima, para impedir a descolorização do que se deveria conservar intacto; as meias tintas favoreceriam a descoloração só pela metade e as claridades do objeto que seria representado na câmara escura, apresentando-se formadas pela própria luz, esta descoloriria perfeitamente nesses lugares. Desta maneira, sendo a ação da luz proporcional à sua intensidade sobre a citada superfície, o objeto permaneceria nela representado, mesmo após ter sido retirado da câmara escura. Ele não estaria caracterizado pala coloração, mas suas diferentes tintas lhe marcariam a aparência.

20 de janeiro de 1833. Domingo. Descoberta muito importante. O que eu disse no artigo precedente, datado de 15 acaba de confirmar-se hoje, mediante duas felicíssimas experiências. 1ª experiência. Fabriquei muito imperfeitamente uma câmara escura, utilizando uma caixinha, que cobri com minha paleta, /p. 132/ em cujo orifício introduzi uma lente que pertencera a um óculo (estas minúcias evidenciam a precariedade dos meios). Coloquei o espelho e, a conveniente altura, dentro pus um pedaço de papel embebido de fraca dissolução de nitrato de prata. Coloquei esse aparelho numa cadeira, em sala naturalmente escura. O objetivo que se representava na câmara escura era uma das janelas, com a vidraça fechada: viam-se os caixilhos, o teto duma casa fronteira e parte do céu. Aí deixei isso durante 4 horas; em seguida, fui verificar e (…)*  retirando o papel nele encontrei a janela fixamente representada, mas, o que deveria mostrar-se escuro, estava claro, e o que deveria ser claro, apresentava-se escuro. Não importa, porém; achar-se-á logo remédio para isso. Receoso de que o resto do papel e tudo o que estivesse claro na janela escurecessem à luz, lavei-o sem demora, para extrair o nitrato de prata; o que já estava preto, nada perdeu de sua intensidade ao sol, durante 1 hora; o que já era branco, tornou-se, em verdade, um pouco escuro, mas  jamais o bastante para fazer desaparecer o desenho.

Ora, só falta encontrar o meio de impedir que /p. 132 vº / a menor das coisas embace o que é branco, assim como fazer que fique escuro no papel o que é escuro no objeto. Não demoraremos a cuidar disso, mas tratemos da 2ª experiência, que agora é bem mais concludente. Para minha particular satisfação, direi que esta última experiência é, ao contrário, a minha primeira, porque a fiz antes da outra. Quando eu procurava o resultado que obtive na outra experiência, sem cogitar do feliz descobrimento a que chegara nesta última, havia preparado minha câmara escura e a expusera ao sol, no jardim(…), por causa do mau aparelho, de sorte que os objetos ficaram mal desenhados no papel, o que nem por isso deixava de contentar-me contudo, notavam-se aberturas que permitiram a penetração dos raios do sol no papel, fora do foco da lente; tais raios enegreceram a olhos vistos o lugar em que incidiram, e isto me fez, sem perda de tempo, retirar o papel; no tocante à paisagem, nada tinha restado, porque ela mal se fazia aparente, havendo, ademais, demasiada luz na câmara escura. Mas, à vista do papel enegrecido nos lugares em que o sol batera, nasceu-me a idéia seguinte, cujo resultado previ tão seguro quanto o foi, com efeito, depois da experiência. Tomei um pedaço de caixilho, escureci-o à fumaça / p.133/ de uma candeia e nele escrevi, com um buril muito fino, estas palavras: “Empresta-me teus raios, ó divino sol”. Ajeitei, embaixo, um fragmento de papel, preparando como já tive o ensejo de dizer, e o expus ao sol. Dentro de um minuto, as palavras aí se fizeram visibilíssimas e com o maior primor possível. Lavei imediatamente e durante muito tempo o papel, para evitar que seu fundo também escurecesse.  Deixei-o ao sol, por uma hora, e o fundo do papel adquiriu leve cor. Contudo, o que nele estava escrito continuou sempre inteligível, conservando-se assim o papel por vários dias, até que simples curiosidade de saber qual seria a ação do calor numa débil porção de nitrato de prata, me induzisse a queima-lo. Incríveis vantagens trará esse descobrimento. O aparelho reduz-se a um pedaço de vidraça, e os ingredientes, a uma dissolução de nitrato de prata. Imprimir-se-á no maior tamanho que se queira, e com bem mais capricho do que o visto na gravura, que é a melhor arte para produzir o belo. Isto é fácil de explicar, pois bastará escrever ou desenhar um traço em camada tão fina quanto a da fuligem de uma candeia. Aperfeiçoamentos. Para que a camada de fuligem fique bem preta e se apreste mais depressa, será preciso uma tocha de matérias que produzam muita fuligem; poder-se-á também fazer a camada de uma outra maneira qualquer, talvez melhor. ”

Devemos ressaltar ainda as reflexões que Florence faz de sua própria descoberta e de sua possível aplicação futura no registro e fixação das imagens projetadas na câmera escura, como no manuscrito Livre d’annotations et de premiers máteriaux:

A Pintura e a fixação das imagens na câmara escura

A Pintura tem atrativos para toda gente mas os pintores, os conhecedores, sentem mais suas belezas. Os cientistas conhecem sua influência na civilização e sabem quanto ela embeleza a existência e, portanto, quanto contribui para a ventura.

Quando for conhecido meu segredo de pintar exclusivamente pela ação da natureza, haverá os que dirão, talvez, que a pintura ficará reduzida a uma arte mecânica, que os desenhos e quadros feitos nos moldes de tal segredo serão muito naturais, muito apreciáveis, porém, que não mais se admirará o talento do artista e que ele não mais produzirá a emoção devida no sentimento e à delicadeza/p.136vº/ que nele se teriam podido reconhecer. Asserções como essas me pareceriam bem susceptíveis de contestação. Afigura-se-me que, se se  interrogasse um artista, sua resposta seria de que o trabalho mecânico da pintura detém, incessantemente, o vôo de sua imaginação; que, a cada instante, a natureza  lhe apresenta as mais interessantes cenas, sem que  delas possa aproveitar; que não busca outra coisa senão assenhorear-se da bela natureza, para dela gozar e fazê-la gozar as almas sensíveis(…)* tenha do mais apurado gosto do mundo, da parte mecânica, que tanto tampo precioso lhe rouba que não procura aplausos, mas somente a felicidade de ser útil e fazer nascer interminavelmente sensações agradáveis ou acompanhadas dos encantos do sentimento, porque estou convicto de que o verdadeiro talento é inseparável da modéstia. A natureza de um e de outro é procurar, se é possível, ultrapassar os semelhantes, mas unicamente com mira em estender-se, comunicar-se sem jamais permanecer superior porque há imperiosa necessidade/p.137/ de que sobrem coisas para que o talento se possa mostrar, se, com efeito, é preciso que mostre! A pintura a óleo e todos os gêneros coloridos, a pintura de tudo o que tem movimento, notadamente a de história, de sentimento, nunca sofrerão prejuízo algum.

Ou ainda novamente no manuscrito Les Amis des Arts:

Conhecendo o ingente trabalho exigido pela arte de pintar, compenetrado das inúmeras belezas que a natureza apresenta, às quais, muitas vezes, não há como não renunciar, por causa das dificuldades oriundas daquela arte e de mil circunstâncias da vida, que parecem opor-se – direi até, com alguma pena – condenar tão bela arte, eu próprio me disse: – não haveria meios de obter os desenhos de todos os objetos, sem tanto trabalho que para isso é necessário?

Não se poderia embelezar a vida, colhendo todas as cenas pitorescas da natureza inorgânica ou vegetal? Essas idéias eram, todavia, bastante vagas, e incluí-as na ordem das que recreiam, parecendo absolutamente irrealizáveis. No entanto levaram-me a refletir sobre a ação que a luz exerce nas cores e em certos corpos. Estudei as respectivas propriedades químicas, tanto quanto meus livros me permitiram, e vi que minhas investigações não eram de todo ilusórias: existem corpos que se modificam rapidissimamente sob a ação da luz solar, ainda que difusa e débil.

Enfrentei a dificuldade de não poder proporcionar-me alguns em que essa propriedade parece saliente e fiquei limitado a desenvolver minhas experiências com o nitrato de prata, que, contudo, é dela razoavelmente dotado, e que me serviu para converter em fato o seguinte princípio: pondo-se na câmara escura papel molhado por uma dissolução de nitrato de prata, os objetos aí se conservam reproduzidos, mas com o inconveniente de que as partes que devem ser claras se apresentam escuras; e vice-versa.

Por este enunciado, deduz-se que se as minhas indagações, por causa do inconveniente apontado, ainda são parcas em resultados, não é menos certo que resultados tenho obtido relativamente a traços, formas e contornos, em harmonia entre si, sem que sejam executados pela mão do homem.”

Como podemos ver, a partir dos textos acima, a descoberta isolada da fotografia no Brasil por Florence é seminal para o entendimento dos aspectos mais importantes da fotografia e de sua influência na cultura contemporânea.

Por um lado, sendo a descoberta da fotografia por Florence um feito realizado por um indivíduo que reunia, no contexto cultural do século XIX, as qualidades de homem da ciência (estudioso e pesquisador científico) e das artes (pintor e artista visual), suas palavras premonitórias reproduzidas acima sobre o potencial desta técnica que acabara de desenvolver, registradas entre 1833 e 1837, portanto anteriormente a divulgação da invenção de Daguerre em 1839 e a todo o debate que se seguiu ocasionado pelo impacto provocado por essa nova forma de representação visual, são surpreendentemente claras quanto ao caminho que a fotografia viria a percorrer em sua função, como diria Siegfried Kracauer, de instrumento de ‘redenção’ da realidade física e em seu embate e/ou complementaridade com as demais formas de representação visual, como o desenho e a pintura.

Por outro lado, representa também a busca por um meio de impressão, não importando se gráfico ou fotográfico, que fosse barato e eficiente, e que portanto facilitasse e desenvolvesse a comunicação visual em todas as suas aplicações, o que efetivamente ao longo do século XIX se tornaria uma realidade a partir da própria descoberta da fotografia e do desenvolvimento gradual dos processos fotomecânicos, o que se constitui na base para a sociedade da informação e do conhecimento que se estruturou ao longo do século XX.

A vida e a obra de Florence inserem-se assim como um belíssimo momento de transição entre o período pré-fotográfico e o fotográfico. Se Florence não deu continuidade a seus experimentos realizados entre os anos 1833 e 1835, e portanto não deixou uma obra fotográfica própria, isto deve-se sem dúvida a sua situação de isolamento e dificuldade de intercâmbio com outros pesquisadores do período. Tivesse ele realizado seus experimentos na França, talvez tivesse sido mais um a transitar pelo universo mágico das décadas de 1820 e 1830 em Paris, onde isoladamente ou em associação entre si, Niépce, Daguerre, Bayard, Chevalier, Arago e outros trabalharam para que a fotografia viesse, a partir de 1839, a ser apresentada ao público mundial como ferramenta pronta para deslanchar uma verdadeira revolução na cultura visual daquele período, com reflexos que se estendem claramente até os dias de hoje.

No âmbito da fotografia brasileira no século XIX, a contribuição de Florence deve ser entendida, portanto, como a de “ponte” ou elemento de ligação entre a produção iconográfica anterior à invenção da fotografia, nesta exposição representada pela obra de Conde de Clarac e pelos próprios exemplos de Florence da poligrafia, e a produção propriamente fotográfica, representada pelo conjunto das imagens originais de época selecionadas para a exposição, como também pela produção iconográfica posterior a 1839 já fortemente influenciada pela imagem fotográfica, nesta exposição representada particularmente pelas litografias de Victor Frond.

A importância do trabalho de Frond é inquestionável e sua relação com as investigações de Florence realizadas cerca de 25 anos antes estão associadas ao fato de que a publicação Brazil Pittoresco, impressa pela Maison Lemercier, foi toda produzida por processo litográfico tradicional a partir das fotografias de paisagem de autoria de Frond realizadas no Brasil entre 1858 e 1860, e configura o primeiro resultado na iconografia brasileira posterior a 1839 que concretiza na pratica a fusão dos esforços originais de Florence em busca do simultâneo desenvolvimento da fotografia e das artes gráficas. Além disso, as fotografias originais de Frond não são conhecidas e, desta forma, este conjunto de litografias cumpre o papel de nos apresentar à produção fotográfica do autor. Isto só é possível graças, por um lado, à extrema qualidade do trabalho litográfico, e por outro, pelo fato de que o conjunto, apesar de não ser ainda diretamente fotomecânico, incorpora nos aspectos formais de cada litografia produzida a qualidade e estética fotográfica das imagens originais de Frond.

Assim, este conjunto litográfico de alta qualidade já indica os caminhos futuros para o desenvolvimento da impressão diretamente fotomecânica e ao mesmo tempo demonstra a já forte influência que a natureza do registro fotográfico teria sobre a cultura e o conhecimento ao longo do século XX. Com a ampla difusão dos processos fotomecânicos, a imagem fotográfica passa a integrar efetivamente o imaginário das pessoas, fazendo com que no século XX fotografias constituam-se no principal instrumento de comunicação visual da humanidade.

Esta nova forma de representação visual, baseada em imagens constituídas por, como diz Florence, “traços, formas e contornos, em harmonia entre si, sem que sejam executados pela mão do homem”, serão, portanto, a matéria-prima para aquilo que posteriormente Roland Barthes entenderia como a verdadeira natureza do registro fotográfico, em seu livro A câmara clara, associando o registro da imagem de um objeto ao momento, único e passageiro, em que é realizado: ‘A fotografia captura a essência do objeto, fixando aquilo que nunca mais poderá se repetir existencialmente’.

Conclui-se, portanto, que a contribuição de Florence é extremamente importante para a história da fotografia também em função de seu legado textual, registrado nos diversos diários manuscritos de sua autoria preservados por seus descendentes, trechos dos quais fizemos questão de transcrever neste texto, para que sua leitura detalhada e seu entendimento possam contribuir para o amplo reconhecimento deste que foi um dos pioneiros da fotografia mundial.

Vejamos então, como conclusão deste pequeno ensaio, o que Florence escreveu nos dias 20 de junho e 3 de julho de 1833, respectivamente, em seu diário Livre d’annotations et de premiers matériaux:

‘A ação da luz desenhou-me os objetos na câmara escura. Ela só fixava as grandes formas, os contrastes salientes e, assim mesmo, com o defeito de converter em claros os escuros e vice-versa. Contudo, esse meio de obter os desenhos produzidos pela natureza e não pela mão do homem, esse meio que, sob tal aspecto, já desperta tanto interesse, sem embargo de sua precariedade, não é susceptível de aperfeiçoamento? Não teria eu iniciado a arte mais do que maravilhosa de desenhar qualquer objeto, sem dar-me ao trabalho de o fazer com a própria mão? Parece-me que vale a pena agarrar-me a essa probabilidade e persegui-la. Se não estiver aperfeiçoada dentro de 5 anos, talvez o estará dentro de 10, 15 ou 20. Como seria agradável converter a natureza em pintora de todos e de tudo! Quanto não seria útil economizar o tempo e o trabalho que há em apanhar uma vista!’

‘Permitisse Deus que se achasse o meio de fixar as cores dos objetos refletidos na câmara escura, sobre o papel que aí se colocasse, e que deles se fazendo, no vidro ou num papel bem transparente, um registro colorido, se pudesse conseguir, igualmente coloridos, os seus exemplares!’

Nestes textos acima, Florence descreve premonitoriamente o que viria a se tornar realidade durante o século XX, com a fotografia colorida presente em todas as esferas da vida cotidiana, fenômeno este que ainda progride de forma muito marcante na sociedade contemporânea com o advento da tecnologia digital, na medida em que hoje qualquer indivíduo com um simples celular provido de câmera fotográfica realiza o que Florence se questionava intimamente em 1833, a partir de suas experiências que resultaram em sua descoberta isolada da fotografia no Brasil: Não teria eu iniciado a arte mais do que maravilhosa de desenhar qualquer objeto, sem dar-me ao trabalho de o fazer com a própria mão?

Sergio Burgi é coordenador de fotografia do IMS.

 

Bibliografia:

BARTHES, Roland. A câmara clara: Nota sobre a fotografia. 2.ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984.

EDER, Josef Maria. History of photography. New York, Dover Publications, 1978.

FLORENCE, Antoine Hercule Romuald. Livre d’annotations et de premiers matériaux, Vila de São Carlos, 1829. Manuscrito.

FLORENCE, Antoine Hercule Romuald. L’Ami des arts livré a lui même ou Recherches et decouvertes sur différents sujets nouveax, Vila de São Carlos, 1837. Manuscrito

FLORENCE, Antoine Hercule Romuald. Correspondance et Piéces Scientifiques, Vila de São Carlos, s.d. Manuscrito

FLORENCE, Antoine Hercule Romuald, Decouverte de la Polygraphie Vila de São Carlos, 1853. Impresso em poligrafia

KOSSOY, Boris. Hercule Florence: 1833, a descoberta isolada da fotografia no Brasil. 2ª edição. São Paulo: Duas Cidades, 1980.

 

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Acervo de Hercule Florence no IMS
Florence, autor do mais antigo registro fotográfico existente nas Américas