Abaixo, seguem trechos da introdução que João Paulo Farkas, filho de Thomaz, escreveu para o livroThomaz Farkas – Uma Antologia Pessoal (2011). Segundo João, aqui se relatam a edição do livro e “histórias que não são contadas em filme” e “vale a pena contar”.
Para mim, como editor fotográfico e como filho, trabalhar em sua produção foi um privilégio. Talvez pela primeira vez pudemos visitar detidamente toda a produção fotográfica do Thomaz – e, dirigidos por ele, chegar a um livro capaz de convidar a uma revisão abrangente e profunda de sua obra.
Na minha infância, como terceiro filho de Thomaz e Melanie, o pai que fui descobrindo era um apaixonado pelo Brasil, sua gente, sua música e muitas outras manifestações culturais: da cachaça à arquitetura modernista, do samba à cozinha rústica nordestina, transitando sem nenhum preconceito entre a mais antenada visão de mundo e as mais profundas tradições populares. Mas a fotografia que fora o foco e a origem de seu trabalho expressivo estava arquivada. A partir da década de 1960, sua fotografia ocupava-se apenas do registro cotidiano da família, dos amigos e do trabalho, ou de suas andanças pelo Brasil. As ampliações premiadas e os troféus conquistados em exposições internacionais andavam esquecidos nos cantos menos frequentados da casa na rua Itaperuna.
Muito influenciado por uma visão de mundo à esquerda, o Thomaz agora levava sua curiosidade e seu espírito empreendedor para as fronteiras do registro e da busca de transformação da vida social. O cinema documentário tornara-se a sua paixão. Foram influências importantes o contato com seu professor Villanova Artigas e seus concunhados James e Jorge Amado.
Examinar pela primeira vez todos aqueles negativos ofereceu a mim e ao Kiko uma experiência de reconstrução afetiva e de descobertas estéticas. A magia da conservação das tiras numeradas do 35 mm é inigualável em nos apresentar tentativas e buscas, erros e acertos percebidos ou não pelo fotógrafo, em preservar, portanto, seu percurso criativo e seu diálogo com o ofício expressivo. Como editor de fotografia, passei bons anos debruçado sobre mesas de luz, editando o trabalho de uma talentosa geração de fotojornalistas brasileiros. Ali, aprendi as regras básicas do ofício, que obriga a navegar entre a subjetividade do autor, as limitações objetivas da tecnologia e o universo perceptivo do público. Mas nunca tivera o privilégio de ver, no intervalo de algumas semanas, o longo desenvolvimento de um fotógrafo.
Contato a contato, pasta a pasta, ano a ano, um olhar inicialmente técnico foi ganhando contornos de uma visão pessoal influenciada por um mundo real e significativo, e não apenas simbólico ou gráfico. O jovem húngaro começava a encontrar o eixo de seus interesses, deixava-se envolver pelo turbilhão da brasilidade. Nascia um fotógrafo, na acepção nobre desse ofício.
[Sobre a] emoção de mergulhar num conjunto de imagens muito mais amplo do que as poucas fotografias ampliadas e guardadas que eu e Kiko conhecíamos, duas coisas nos mobilizaram de forma profunda. Em primeiro lugar, o registro da vida privada (anterior ao nosso nascimento) que o Thomaz não nos mostrara até então: seus tios, os pais, a infância, os primos, as primeiras férias e passeios em Visconde de Mauá, em Valinhos, na várzea do Tietê e nas margens da represa Billings. São imagens de grande valor estético, além do aspecto documental, mas que serão objeto de publicação exclusiva oportunamente. E, por outro lado, a lenta perseguição de um olhar próprio e das imagens definitivas que construíram sua identidade como criador e seu lugar na história da fotografia brasileira.
Nossa excitação e deslumbramento foi crescente à medida que descobríamos personagens sem registro em nossas retinas/memórias. Mais que tudo, foi emocionante descobrir imagens importantíssimas e inéditas, imagens que acrescentavam tanto ao conjunto da obra que nos perguntávamos: por que ficaram esquecidas, por que não foram ampliadas? Durante o processo de edição deste livro, várias vezes o Thomaz comentou: “Não me lembrava desta…”, e foi lentamente incorporando uma série delas e descartando outras, até chegar a um corpo realmente essencial de sua produção.
Talvez se tratassem de imagens cujo grau de experimentalismo deixava-as fora do contexto estético da época, fotografias que não se encaixavam nos “temas” consagrados nos salões e nas publicações. Mas um encontro eventual com Milton Guran nos sugeriu outros motivos possíveis para esse esquecimento de fotogramas geniais; numa fórmula deliciosa, Guran disse: “É que o olho do fotógrafo é mais rápido do que a mente”. Talvez, de fato, o raciocínio visual dos fotógrafos ande mais rápido que o reconhecimento estético da época em que vivem. E esse é um dos grandes apelos da fotografia: a possibilidade de criar imagens “perfeitas” ou “acabadas” quase que automaticamente, sem passar pelos filtros racionais que qualquer outro processo artesanal impõe.
Thomaz nunca teve preconceitos formais. Suas tentativas de corte não obedecem a imagem “completa” do negativo. O Kiko, que tem escritório ao lado do escritório do Thomaz, recorda a cena recorrente de Thomaz entrando em sua sala, geralmente sem sapato, e pedindo uma tesoura para perpetrar os cortes mais radicais nas imagens que estava trabalhando.
Ao longo dos anos, os cortes foram ganhando versões relativamente diferentes a cada nova ampliação ou publicação. Para este livro, repassamos cada possibilidade, e Thomaz definia, por fim, a versão ‘definitiva’ (pelo menos por enquanto), fazendo uso de sua ainda incrível acuidade visual e de sua consciência intuitiva do efeito das imagens.
Redescobrir e reconhecer um pai (experiência que se pode ter ao abrir uma caixa perdida de fotografias de família), acompanhar o desenvolvimento de um fotógrafo, rever lugares e pessoas que não existiriam mais, não fosse a alquimia das emoções fixadas pelos preciosos sais de prata, dividir esta emoção de olhar, esta paixão e curiosidade pela vida, celebrar a infinita diversidade das almas humanas que se comunicam por uma janela no tempo e no espaço, transformando em universal o episódico, reinstaurando o sonho e a transcedência que a um só tempo está, pela fotografia, presa e liberta da “realidade” – por tudo isto agradecemos ao Thomaz.
João Farkas é fotógrafo e produziu o still dos filmes O homem que virou suco (1981), Certas palavras com Chico Buarque (1980) e A caminho das Índias (1979).