Texto extraído do catálogo Alécio de Andrade, publicado pelo IMS em 2008.
Alécio de Andrade: um monumento de fraternidade
Pedro de Souza
1964. Um jovem fotógrafo carioca se despede do Rio, e dos amigos. Alécio de Andrade tem 26 anos e vai para a Europa, para Paris. O espírito de Ipanema está no auge nesse ano em que as sombras da ditadura se espalharam sobre o Brasil. A primeira exposição de fotografia de Alécio, na Petite Galerie da praça General Osório, foi um sucesso, mereceu até um poema de Carlos Drummond de Andrade: “Olha, descobre este segredo: uma coisa são duas – ela mesma e sua imagem”. Alécio chegou com um vocabulário completo, amadurecido, nessa exposição pioneira de fotojornalismo. E no entanto ele fotografava havia pouco – dois, três anos. Certamente seus estudos de piano e seu trabalho de poeta (premiado em 1961) lhe proporcionaram precocemente a disciplina que a criação exige. Alécio parece ter atingido a plenitude do seu talento desde as suas primeiras imagens – instantâneos de crianças, um dos temas que ele vai trabalhar ao longo da vida. “Agora vai para a Europa estudar, isto é, ver, ver muito – o mundo é grande, os horizontes infinitos e infinitos os territórios do sonho!”, anunciava Marques Rebelo no fôlder da exposição.
Na França, Alécio encontra a República do general De Gaulle no seu ápice. Desembaraçado da guerra na Argélia, o país moderniza-se a passos largos, vive os “30 anos gloriosos”, como os franceses se referem ao período que separa o fim da Segunda Guerra Mundial do primeiro choque do petróleo. Paris atrai então grandes intelectuais, artistas e escritores de todo o mundo, como Julio Cortázar e James Baldwin, com quem Alécio se relacionaria depois, e devolve ao mundo o novo saber de figuras como Braudel e Lévi-Strauss. No cinema, Godard e Truffaut abandonam os estúdios pelas ruas da cidade – Truffaut, cujo olhar carinhoso sobre o cotidiano tanto lembra o de Alécio. Com Blow-up, uma adaptação livre de um conto de Cortázar ambientado na swinging London, Antonioni mostra que a fotografia encobre a verdade e a revela. Paris será a “Nova Ipanema” de Alécio (afinal, por que só as terras dos outros podem ser batizadas de Nova York, Nova Escócia?). Alécio não parou mais de descobrir Paris, todas as dobras das suas mais ínfimas ruas. Ficou como se chegasse a cada dia, até o fim.
E criando, com sua sensibilidade sutil, e toda a sua irreverência. A figura cardeal da fotografia na época era Henri Cartier-Bresson, o arauto do “instante decisivo”. Alécio, como vimos, parece ter vindo “pronto” à fotografia. O mesmo aconteceu com Cartier-Bresson, que expõe em 1932, aos 24 anos, obras acabadas que podem ser consideradas contemporâneas às da sua maturidade. Mas a influência de Cartier-Bresson é de tal forma onipresente na fotografia moderna que o seu trabalho estabeleceu, por assim dizer, um padrão. Um padrão de rigor – preto-e-branco, ausência de retoques ou reenquadramento das tiragens, ausência de flash – que Alécio faz seu. Alécio é também um mestre do instante, como o provam tantas imagens definitivas que fazem parte da nossa memória visual, como a fotografia das três freiras observando, no Louvre, As três Graças, de Jean-Baptiste Regnault, da qual foram vendidas já mais de 200 mil reproduções; a do mímico, que simula na frente de um bistrô um tocador de flauta, mas mais parece comer o sanduíche anunciado no toldo do bistrô; ou a do pointer inglês que examina cauteloso um bronze representando um cachorro.
Será que a genialidade do fotógrafo se limita então a descobrir e registrar situações curiosas, ou coincidências significativas? É claro que o fotógrafo, ao retratar um “motivo”, não se limita a “registrá-lo”. Ele cristaliza nesse instante toda uma sensibilidade adquirida, que altera substancialmente esse “motivo” e, em última instância, o “faz existir”. Simplesmente o tempo na fotografia não se exprime na luta artesanal com as palavras, os sons, as formas ou as cores, que seria o apanágio das Artes com “A” maiúsculo. O tempo do fotógrafo precede e acompanha o olhar, capta o tempo dos outros e, no caso de Alécio, ensina-nos que nada é forçosamente aquilo que parece.
Mas a arte do instante, que foi se impondo na fotografia ao longo do século XX, é também uma homenagem à vida, e nisso Alécio foi mestre por si só. O seu olhar sobre o humano é quase etnográfico, não existe contradição entre a sua criatividade e o fotojornalismo. Em Paris, Alécio descobre-se repórter. Durante 20 anos, de meados dos anos 1960 até a década de 1980, Paris atua como uma etapa crucial na produção fotográfica mundial, favorecida pela sua posição geográfica central na Europa e entre o Oriente e as Américas. As grandes semanais norte-americanas, como Time e Newsweek, pagam os fotógrafos franceses e estrangeiros colaboradores de agências como Gamma, Sygma e Sipa, e, num outro registro, a Magnum, para cobrir em cor a atualidade nos quatro cantos do mundo. E as sobras e cópias dessas reportagens, viajando de avião, alimentam revistas de todo o mundo. A onda do digital não banalizara ainda a fotografia. Alécio cobre para a Manchete, então no seu auge, alguns dos grandes acontecimentos do fim dos anos 1960 e início dos 1970: maio de 1968, a Revolução dos Cravos em Portugal… Em 1970, Alécio entra como membro associado da agência Magnum, a meca do fotojornalismo de autor, onde imperam Cartier-Bresson e fotógrafos como Ian Berry, Elliot Erwitt, Cornell Capa, Josef Koudelka… E passa a fotografar para a elite das revistas mundiais – Elle, Stern, Fortune, Newsweek –, provando que, se no seu trabalho pessoal o preto-e-branco domina, a sua sensibilidade à cor, viva e precisa, é raramente igualada nos trabalhos dos seus companheiros de reportagem.
Conheci Alécio de Andrade nos anos 1980, e creio que a simpatia mútua foi imediata. Chefe de escritório da Editora Abril em Paris, na época eu era “paulista”, e Alécio, “terrivelmente” carioca. Mas muita coisa nos unia: a cultura francesa, o amor visceral por Paris, a atração pela noite e um bom copo de vinho. Entre uma reportagem, uma viagem e outra, nos encontrávamos para jogar conversa fora. Alécio era da raça dos grandes papos, herdara o dom das noites cariocas, de amigos como Marques Rebelo, Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Carlinhos de Oliveira, Antonio Bulhões de Carvalho, Ismael Cardim, Hélio Pellegrino e Augusto Rodrigues, com quem partilhava a fascinação pela infância. E, além de tudo isso, éramos ambos estrangeiros, por mais que eu fosse um português engravatado e engomado, e Alécio, um híbrido de Macunaíma com anjo. Um anjo que soltava a sua inconfundível gargalhada diabólica, famosa lá pelo bairro do Marais, onde Alécio morou anos a fio, gratificando seus vizinhos com seus recitais pianísticos solitários e inspirados.
Por vezes, ele vinha em casa. Impecável, sempre revestido de uma estranha sobreposição de veludos escuros, animados pela pincelada discreta de uma lavallière de seda, Alécio seduzia todos os presentes com a sua cabeleira revolta e seus olhos malandros piscando atrás dos óculos de intelectual. São dessa época as provas fotográficas que me ofereceu, entre as quais uma que me agrada particularmente: a imagem nua de um pasto irlandês, onde uns carneiros, remotos flocos de algodão, nos observam com toda a humana estranheza do mundo. A imagem de um mundo feito de pouco mais que olhares. Por vezes, eu o desafiava a tocar, num velho piano desafinado, “para ver se era verdade”, na realidade, para provocar a sua grande timidez, e dizer-lhe sem pompa quanto o admirava pelo seu talento múltiplo. O talento que lhe valeu o reconhecimento e a amizade de artistas como Alfred Brendel, ele também pianista e poeta, a quem Alécio fotografou anos a fio para a imprensa e para as capas de discos.
Não me arrependo de ter forçado a sua intimidade artística, pois pouco pudemos trabalhar juntos. Com o tempo, as imposições de “formato” das revistas aumentaram. As redações exigiam que a fotografia fosse vertical e não horizontal, indicavam a pose das personagens, o ângulo. Para alguém da exigência de Alécio, era difícil ver-se transformado num acessório da máquina fotográfica. No fim dos anos 1970, Cartier-Bresson praticamente pendura a sua Leica. Alécio nunca o fez. Até o fim da vida, a sua Leica surrada fez parte do seu corpo, escondida entre a camisa e o paletó, mas o fotojornalismo entrava em lenta decadência e foi abandonando Alécio.
Não datam dessa época as outras vertentes de sua obra. Na realidade, mesmo quando fotorrepórter a soldo de publicações de todos os quadrantes, e enquanto suas fotos eram reproduzidas em inúmeros projetos editoriais, Alécio prosseguia uma obra silenciosa, que surgia de tempos em tempos como uma flor reticente, e que se desdobrou em três linhas paralelas. Em primeiro lugar, as fotos de crianças, desde sempre a grande paixão de Alécio, que resultaram depois em um belo livro assinado por ele e pela grande psicanalista francesa Françoise Dolto. A paixão de Alécio pela infância mereceria um estudo aprofundado, de tal forma que ela aparece com uma riqueza única no panorama da fotografia do século XX. Ao saber que sua companheira estava grávida, Alécio escreveu, numa carta a Françoise Dolto: “E finalmente eu estava do lado do maravilhoso sem o saber: Patricia criava um pequeno sonho no seu ventre […]”. O “pequeno sonho” dessa carta, que mereceria ser citada na íntegra de tanto que espelha a inventividade do mundo de Alécio, era Florencio, seu filho mais velho, a quem se seguiu Balthazar, o caçula. Para Alécio, a criança era a espontaneidade, o sonho, sem um grama de pieguice nisso. E de alguma forma, quando em dias mais negros, na década de 1990, eu lhe falava que devíamos voltar para o Brasil, o que o impedia de sequer evocar essa ideia era a consciência de que os seus sonhos de menino do Rio estavam mortos e de que, mais que os pesadelos presentes, é a ausência dos sonhos que dói.
A outra linha é Paris, literalmente coroada na obra Paris, ou a vocação da imagem, acompanhada de um belo ensaio de Cortázar sobre a cidade visitada por um “viajante gato”, alguém de cuja presença se suspeita apenas, mas sem a qual nada acontece. A arte de Alécio diante de um dos “cenários” mais fotografados do mundo é aí posta à prova de forma definitiva. E o que surge das suas constantes deambulações por Paris é um tecido humano pincelado de cinza, um entrecruzar de linhas do tempo nos famosos instantes furtivos, como acordes de um piano, de onde nunca está ausente o humor. Humor que, no caso de Alécio, não assume as formas do sarcasmo, mas que acaba se dirigindo ao autor: vejam como vocês são, e eu, como vocês.
Esse reflexo de empatia, certamente um dos traços mais pessoais do trabalho de Alécio, está onipresente na sua obra de retratista e, sobretudo, no seu longo trabalho sobre o Louvre. O fotógrafo olha alguém que olha um quadro do museu, como se todos nós fôssemos artistas e personagens, banhando-nos num mundo onde arte e vida, a invenção sublime e a existência mais trivial misturam-se indissociavelmente. O projeto sobre o Louvre, que não foi publicado, ocupou os seus últimos anos de vida e trouxe-lhe muitos dissabores pela incapacidade de financiar a sua edição, apesar dos apoios que recebeu. Alécio acabou virando agente e mecenas de si mesmo, uma carga dolorosa e pesada demais para os ombros de um homem que se sentia o sobrevivente de uma vida consagrada à arte, sem o reconhecimento que nunca procurou, mas certamente merecia que lhe tivesse sido oferecido.
Alécio estava de mal com um Brasil que não conhecia mais, onde os seus amigos, que ele adorava como um areópago de deuses, tinham morrido, tinham sido exterminados, dizia ele. A última exposição de sua obra no Brasil data de 1981, há 27 anos, uma eternidade para quem só o instante contava. Alécio morreu em Paris no dia 6 de agosto de 2003, durante a grande vaga de calor estival que matou milhares de franceses. Ele, que vinha do calor, reservou-nos para o fim essa pirueta triste. O seu acervo fotográfico reúne cerca de 4 mil contatos em preto-e-branco e 3 mil cromos, a que se deve somar os originais que constam nos arquivos da Manchete e outras publicações. Uma obra gigantesca em apenas 40 anos de trabalho. Um monumento de fraternidade. A fraternidade com que Alécio tratava suas personagens, e que, com seu jeito tímido, pedia para si. A fraternidade que, no meu caso, ele conquistou.
25 de junho de 2008
Pedro de Souza é português de Lisboa e licenciado em filosofia pela Universidade de Paris. Recusando-se a combater nas últimas guerras coloniais portuguesas, refugiou-se em São Paulo, onde foi contratado pela Editora Abril em 1971. Em 1977, abriu o escritório da editora em Paris, que dirigiu até 2002. Atualmente, coordena as atividades do Centro Celso Furtado, no Rio de Janeiro.