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Sobre José Ramos Tinhorão

Sua primeira matéria assinada, sobre o Natal, foi publicada em 25 de dezembro. Levou um susto quando leu: “Reportagem de J. Ramos Tinhorão para o Diário Carioca”. Procurou Pompeu de Souza, chefe de redação, e fez a queixa: “Pompeu, você assinou com meu apelido de redação? Eu tinha colocado J. Ramos…”. Ao que o outro retrucou, com uma gargalhada: “J. Ramos é nome de ladrão de galinha, tem um monte na lista telefônica. Tinhorão vai ser só você”.

O jovem redator ficou no Diário Carioca até o final de 1958, quando se transferiu, a convite de Janio de Freitas, para o Jornal do Brasil, em que passou a escrever no suplemento dominical. No início de 1959, fez, em parceria com Nilson Lage, uma matéria sobre música de Carnaval.

 

Nessa época, virou personagem do escritor Nelson Rodrigues, que, entre agosto de 1959 e fevereiro de 1960, publicou, na Última Hora, o folhetim Asfalto selvagem. O Tinhorão imaginado por Nelson era, nas palavras de Ruy Castro – biógrafo do dramaturgo –, “um jovem sátiro a bordo de um calhambeque e mantendo um caderninho onde anotava os nomes de suas conquistas”: moças que ele iludia com a promessa de se tornarem capa da revista O Cruzeiro – e entre elas estava a jovem Silene, filha da protagonista Engraçadinha.

O Caderno B (suplemento cultural do JB) surgiu em 1960, criado por Reynaldo Jardim, que teve a ideia de pedir a Tinhorão que escrevesse uma série sobre a história do samba, nos moldes do que Luiz Orlando Carneiro havia feito com o jazz para o mesmo caderno. O jovem redator argumentou que a série sobre o jazz havia sido possível porque Orlando possuía uma vasta bibliografia sobre o assunto, mas sobre samba não existia praticamente nada. Jardim, então, sugeriu a ele que falasse com Sérgio Cabral, colaborador do Caderno B que conhecia todo o mundo das escolas de samba. Sugeriu ainda que fossem feitas entrevistas com essas pessoas.

Nasceu, assim, o Tinhorão pesquisador da música popular. Dessas entrevistas (feitas com Ismael Silva, Alcebíades Barcellos – o Bide do Estácio –, Donga, Pixinguinha, Almirante e muitos outros) surgiu a série Primeiras lições de samba – uma tentativa de história da música popular no Rio, publicada na página ocupada por Sérgio Cabral. Em 1962, alguns artigos dessa série foram incluídos no livro Música popular: um tema em debate. Editado pela Saga, tornou-se a obra de Tinhorão mais reeditada até os dias de hoje. No mesmo ano, começou a publicar, também no Jornal do Brasil, suas Novas contribuições à bibliografia da MPB, feitas a partir de material avulso recolhido por ele em diversos periódicos.

Durante os anos 1960, escreveu – sempre fundamentado no materialismo histórico, abordagem metodológica proposta por Marx – artigos e colunas para diversos veículos de comunicação, além do próprio JB: Tribuna da Imprensa, Jornal dos Sports, Espírito Santo Agora, Jornal Rural (de Juiz de Fora), Singra, entre outros. Nessa época, a fama de polêmico e maldito já havia começado. Tinhorão, desde o início, foi ferrenho detrator da bossa nova, colecionando, por conta disso, vários desafetos.

Tendo saído do JB em 1963, passou pelas redações do Correio da Manhã e da TV Excelsior, da qual foi demitido – sempre fez questão de frisar a data – em 31 de março de 1964, dia do golpe militar. Foi então para a TV Rio e, em 1966, foi contratado como redator do Jornal da Globo. Paralelamente ao jornalismo, começou a fazer pesquisas para outros órgãos, tornando-se colaborador da revista de cultura do Ministério da Educação e da revista Senhor.

Voltou para São Paulo em 1968, graças a um convite para trabalhar na nascente revista Veja, na qual criou as seções Gente e Datas. Em 1969, lançou o livro O samba agora vai: a farsa da música popular no exterior; em seguida vieram Música popular, teatro e cinema (1972) e Pequena história da música popular: da modinha à canção de protesto (1974).

Convidado pela sucursal paulista do Jornal do Brasil para colaborar novamente com o Caderno B, em 1974, passou a escrever sobre os produtos da indústria cultural da música brasileira, o que o levou a colecionar ainda mais desafetos. Um dos folclores em torno do seu nome surgiu nesse período. Certa vez, escreveu – de maneira um tanto jocosa – sobre um LP que Hermínio Bello de Carvalho gravou como cantor para a Odeon. Hermínio e Tom Jobim (um dos artistas mais duramente atacados por Tinhorão, desde o surgimento da bossa nova) elaboraram uma vingança: ao serem entrevistados, declararam que viam o crítico apenas como uma planta herbácea da família das Aráceas, que costumavam “regar” diariamente com as próprias urinas.

Foi colaborador do Pasquim até 1989. Nos anos 1990, largou de vez o jornalismo e passou a se dedicar integralmente à pesquisa histórica e à produção de livros. Fez pós-graduação em história social pela Universidade de São Paulo, em 1999. De sua dissertação nasceu o livro A imprensa carnavalesca no Brasil: um panorama da linguagem cômica, editado em 2000.

NO IMS

José Ramos Tinhorão passou mais de 40 anos juntando raridades para a sua coleção – que ele chama de “acervo temático”, pois os itens mais variados (discos, livros, fotografias, folhetos, periódicos etc.) se complementam, ajudando a contar a história de fatos e personagens da nossa música popular. Seu pequeno apartamento não conseguia mais abrigar pilhas e pilhas de documentos.

Em 2001, vendeu seu acervo ao Instituto Moreira Salles. Na sede da entidade, em São Paulo, a Coleção Tinhorão começou a ser trabalhada: foi feita a digitalização dos cerca de discos de 78 rotações e a catalogação dos livros. Em fevereiro de 2010, a coleção foi transferida para o IMS do Rio de Janeiro, na Gávea.

O acervo acumulado ao longo de décadas pelo pesquisador, jornalista e crítico musical vai muito além da discoteca formada pelos aproximadamente 10 mil itens: o que ele chama de “conjunto de informações de caráter urbano, com enfoque histórico-sociológico”, é a soma de uma grande variedade de coleções indispensáveis aos estudiosos da evolução da cultura urbana brasileira em geral, e não apenas da música popular. Inclui fotos, filmes, scripts de rádio, programas de cinema e teatro, cartazes, jornais, revistas, rolos de pianola, folhetos de cordel, press-releases de gravadoras e uma biblioteca especializada em obras sobre música, que abrange também ficção, crônica e memórias, além de 11 coleções de suplementos literários de jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo, publicados a partir da década de 1940. Completam o acervo fitas de áudio com depoimentos de personalidades, gravações de palestras e programas de televisão de que o próprio Tinhorão participou. No quadro geral, o período histórico coberto vai da segunda metade do século XIX ao final do século XX.

A discoteca em si é formada por cerca de 6 mil discos de 78 rpm (gravados e lançados no mercado fonográfico entre 1902 e 1964), e p4 mil discos de 33 rpm. Cobre todos os ciclos e movimentos da música popular brasileira no século XX, com algumas de suas peças mais valiosas, pela raridade, concentradas no período do nascimento do samba.

No dia 13 de abril de 2010, a Reserva Técnica Musical do IMS inaugurou uma exposição dos itens raros do acervo, com a curadoria do próprio Tinhorão – que, aos 82 anos, trabalhou com a vitalidade de sempre. Na mesma ocasião, foram lançados três livros (com a presença dos autores): A música popular que surge na era da revolução e Crítica cheia de graça (ambos de autoria de J. R. Tinhorão) e a biografia Tinhorão, o legendário, escrita pela jornalista Elizabeth Lorenzotti.

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