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Contraste

São Paulo, fora de alcance

Cidades são organismos vivos – nascem, crescem e se desenvolvem. Raramente morrem e, em geral, sobrevivem àqueles que as moldaram ou que nelas vivem. A convite do Instituto Moreira Salles, o fotógrafo Mauro Restiffe percorreu bairros centrais e periféricos de São Paulo, como Luz, República, Pinheiros, Vila Congonhas e Itaquera. Munido de uma câmera portátil e de filmes em preto e branco de alta sensibilidade, Restiffe palmilhou as ruas para esquadrinhar a vida da cidade num momento de profundas transformações. O resultado está nas fotografias desta exposição -- uma síntese visual da paisagem humana, arquitetônica e topográfica de São Paulo e uma representação aguçada das tensões políticas e sociais que dão forma ao espaço urbano.

Os usos variados que os habitantes fazem da cidade, os conflitos entre o desenvolvimento econômico e o patrimônio arquitetônico, a complexidade de planos e situações que decorrem do relevo urbano – tudo isso faz parte das imagens. Eventos cotidianos, como os deslocamentos diários ou os passeios de fim de semana, convivem com fatos extraordinários, como um dos vários protestos do último ano ou o incêndio no Memorial da América Latina. Cartões-postais como o Museu de Arte de São Paulo dividem a atenção com lugares menos reconhecíveis, como a praça do Pôr do Sol ou os arredores da avenida Jornalista Roberto Marinho. Estamos olhando para o espaço e o tempo da cidade, aquilo que lhe dá corpo e vida.

Parte da frustração e do fascínio que São Paulo exerce sobre seus habitantes vem de seu ciclo de evolução acelerado e da dificuldade em controlar inteiramente o espaço urbano. É o que sugere a fotografia tirada no largo da Batata, ao mostrar um importante entroncamento da cidade ao mesmo tempo em reforma e em ruína. Tão logo surgem, as construções de São Paulo já parecem velhas, como se precisassem ser constantemente substituídas, numa espiral de renovação que não vê fim.

As fotografias de Restiffe apresentam uma complexidade de situações urbanas, algumas claramente visíveis, outras menos. Mesmo que os planejadores de uma cidade fossem indiferentes ao espaço, acreditava o antropólogo Claude Lévi-Strauss, as cidades seriam o produto de uma estrutura mental subjacente, uma ordem quase fora de alcance, que se insinuaria sobre os domínios vagos para se expressar de forma simbólica ou real, “um pouco como as preocupações inconscientes se aproveitam do sono para se exprimir”.

Depois de percorrer e fotografar exaustivamente São Paulo, Restiffe talvez tenha intuído uma ordem própria. Ao expor a complexa interação entre o espaço, as pessoas e a arquitetura, ao sugerir que a experiência urbana é uma realidade fragmentada, definida por microscópicos grãos de prata, o fotógrafo age como um planejador inconsciente, um artista que, talvez sem perceber, constrói uma nova forma visual para representar a cidade.

Thyago Nogueira, curador e coordenador da área de Fotografia Contemporânea do Instituto Moreira Salles.