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Les amis d'Alécio

Alfredo Ribeiro
12.11.18

 

Alécio de Andrade foi um cidadão do mundo. Do melhor dos mundos possíveis naqueles quase 40 anos em que o fotógrafo carioca viveu intensamente Paris, a partir de 1964. Fez por lá amigos como o americano James Baldwin, o argentino Julio Cortázar e o pianista austríaco Alfred Brendel, entre tantas personalidades – Sartre, Foucault, Susan Sontag, Jean Genet etc – que retratou com sua inseparável câmera Leica. Nesta galeria destacam-se também flagrantes de rara intimidade que capturava em reencontros com parceiros da vida toda, cabeças iluminadas com a intensidade de Paulo Mendes Campos, Hélio Pellegrino, Vinicius de Moraes, Ferreira Gullar, Oscar Niemeyer, Glauber Rocha, Celso Furtado, Mario Pedrosa e Lygia Clark.

Quem não conhece bem a figura humana sensível e as imagens poéticas que produziu em grande parte nas ruas de Paris pode começar a recuperar o tempo perdido apreciando a correspondência pessoal apresentada em meio a uma série de portraits afetivos com a assinatura do artista na mostra Cartas de Almir de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Antonio Bulhões, Ismael Cardim, Roberto Alvim Corrêa, Marco Aurélio Matos, Elza Proença, Marques Rebelo, Otto Lara Resende, Fernando Sabino a Alécio de Andrade, em cartaz na Pequena Galeria do IMS Rio (e, especialmente, no livro homônimo).

Fotógrafo de ofício, poeta e pianista de pura curtição, Alécio fez de sua existência uma festa, e não só nesses momentos ilustres da convivência. Em seu dia a dia de trabalho na sucursal parisiense da Manchete, por exemplo, Alécio transformou a passagem de três jovens fotógrafos brasileiros pela redação da revista, entre 1968 e 1973, em tempos de aprendizado, admiração e felicidade. Foi para Luiz Garrido, Chico Mascarenhas e Pedro Pinheiro Guimarães muito mais que referência profissional, um verdadeiro guia. Às vésperas da inauguração da mostra e do lançamento do livro, o trio esteve no IMS Rio para registrar em vídeo de Laura Liuzzi depoimentos sobre o convívio com o mestre em Paris.

Garrido, Pedro e Chico não chegaram a se cruzar na lendária sucursal da Manchete na virada dos anos 1960/70. Luiz Garrido entrou primeiro para o time da revista como protagonista de um golpe de sorte no final de 1968. Depois de trocar a faculdade de Economia por um curso técnico de fotografia, Garrido se virava como paparazzo em Paris, até o dia em que, à espreita de alguma celebridade na porta do Hotel Plaza Athénée na Avenue Montaigne, John Lennon e Yoko Ono cruzaram seu caminho. Foi atrás do casal e essa história acabaria numa sessão exclusiva de fotos em Amsterdã, outra em Londres. A façanha rendeu, afora um frila na Fatos & Fotos (outra revista da editora Bloch), um emprego para Garrido na Manchete. “Era tudo o que eu queria”, lembra como se fosse ontem o dia em que saiu da pindaíba do trabalho avulso em Paris.

 

(Arquivo de Luiz Garrido)

 

O fotógrafo ganhou muito mais que dinheiro quando virou parceiro de Alécio na mesa redonda das reuniões de pauta na redação da revista. “Ele era o cara, um poeta que sabia captar a alma das pessoas.” Este “olhar fotográfico” serviu-lhe como ensinamento. Garrido conta que Alécio não desgrudava de sua Leica nem quando ia ao banheiro e que dividia com os amigos três grandes prazeres: a fotografia, o piano e um bom vinho. “Ele morava no Quartier Latin, em frente ao Hotel Du Levant, vivia de forma plena a Paris do final dos anos 1960.”

Garrido casou, mudou-se para o Brasil e logo depois, no início de 1972, Chico Mascarenhas e Pedro Pinheiro Guimarães, que já eram colaboradores eventuais da Manchete em Lisboa, seguiram de mala e cuia os passos do chefe Cláudio Mello e Souza, jornalista chamado a Paris com a missão de reestruturar a sucursal da capital francesa. Os dois fotógrafos tiveram com Alécio de Andrade um caso de amor à primeira vista. “Não sei se ele foi com a nossa cara ou se achou mesmo que poderíamos ser fotógrafos razoáveis, mas logo nos deu emprego”, brinca Mascarenhas sobre o companheirismo instantâneo estabelecido entre eles. “Saíamos os três por Paris, sempre de leiquinha a tiracolo, passávamos às vezes o dia inteiro juntos”, lembra Pedro.

Fotos parisienses de Chico Mascarenhas e Pedro Pinheiro Guimarães

Alécio, de cara, deu aos dois novatos a mesma orientação que serviu de primeira lição a Garrido: que frequentassem museus para aprender composição de imagem e iluminação com os gênios da pintura. “Foi muito importante na formação de meu olhar de fotógrafo”, avalia Chico. A fotografia não era o único interesse da dupla no convívio com o mestre. Pedro logo o identificou como “um cara muito culto, que falava de música, de literatura, de pintura...”

Fora o aprendizado, Pedro Pinheiro Guimarães destaca a diversão que era ser aceito na turma de amigos de Alécio de Andrade. “Ele tinha um lado inteiramente palhaço, a ponto de deixar recado na secretária eletrônica de casa imitando algo parecido com o idioma japonês.” Fazia graça, mas não para todos. “O Alécio indignado ficava de um jeito que eu não queria estar nem perto”, observa Chico Mascarenhas. “Não tinha a menor paciência com certas pessoas, demos sorte de ele ter gostado da gente.” Quando saíam os quatro para almoçar – Alécio, Chico, Pedro e Cláudio Mello e Souza, o chefe da sucursal –, o papo se estendia tanto que dificilmente um deles voltava para o trabalho.

A festa acabou no final de 1973 quando os Bloch – donos da editora da Manchete – varreram a redação com uma onda de demissões. Foi todo mundo para o olho da rua, menos Chico Mascarenhas, que ganhou sobrevida funcional até o nascimento da filha Domingas, alguns meses depois. Mas os laços afetivos entre eles seguiram em frente. Alécio se tornou grande amigo do casal Mascarenhas. “Ele e minha mulher Tintim se adoravam”, conta Chico, que voltou a ver o velho parceiro todas as vezes que pousou na França. Pedro casou-se com Naruna Andrade, irmã de Alécio, a quem conheceu numa festa de São João na casa da atriz Norma Bengell em Paris. “Me lembro de ter perguntado ao Chico quem era aquela menina linda que estava dançando com o Alécio.” A paixão à primeira vista já dura 45 anos.

Depois da Manchete, Pedro continuou em Paris fazendo fotos esporádicas para jornais e revistas brasileiros, antes de entrar para o Théâtre du Soleil, onde fez um pouco de tudo – atuou, cozinhou, pintou cenário, foi telefonista... –, dentro do espírito de trabalho da encenadora francesa Ariane Mnouchkine. Hoje, aos 73 anos, mora no Rio e tem na fotografia um prazer pessoal, íntimo. “Estou aposentado.”

Aos 70 anos, Chico Mascarenhas é hoje o sócio de maior visibilidade do bistrô Guimas, há 37 anos estabelecido no carioquíssimo Baixo Gávea. Em novembro de 2015, expôs 24 de suas fotos, a maioria do acervo parisiense, em mostra individual no Studio 512, no Rio.

Garrido, 73 anos, nunca largou a fotografia depois que voltou para o Rio em 1972. Continuou trabalhando para a Manchete, onde foi parceiro de Walter Firmo, fez trabalhos para diversas revistas de moda e agências de publicidade. Em 1982, fundou com outros parceiros a Casa da Foto, referência carioca de estúdio e laboratório fotográfico até o início dos anos 2000. Lançou livros, participou de exposições individuais e coletivas, é chamado a dar aulas e palestras sobre seu trabalho.

Já fora da Manchete, a partir de 1973, Alécio de Andrade continuou trabalhando para a Magnum – foi o primeiro membro associado brasileiro da agência –, e manteve colaboração frequente com muitos jornais e revistas, como as francesas Elle, Figaro Magazine, Géo, Le Nouvel Observateur, Lui, Marie-Claire, Photo e Réalités, as italianas Il Tempo, Nuova Fotografia e Progresso Fotografico, a alemã Stern, as americanas American Photographer, Fortune e Newsweek, além das revistas brasileiras Fatos e FotosVeja e Isto É e o Jornal do Brasil.

Alécio pecorreu regularmente as salas do Museu do Louvre por quase trinta e nove anos, desde 1964. Nessas visitas, produziu as cerca de 12 mil imagens das quais foram extraídos O Louvre e seus visitantes, exposição e livro organizados (a publicação em parceria com a editora francesa Le Passage) por Patricia Newcomer e pelo IMS, que em 2009 adquiriu 88 imagens deste ensaio fotográfico, somadas a outras 265 fotografias de Alécio em 2008.

Museu do Louvre, 1969 | Três freiras diante das "Três Graças", de Regnault. Museu do Louvre, 1970 (© Alécio de Andrade, ADAGP, Paris, 2018 / Acervo IMS)

O artista morreu em casa no dia 6 de agosto de 2003, um dia da onda de calor que vitimou mais de 11 mil pessoas na França. Seu trabalho foi, segundo os velhos amigos, cuidadosamente mantido por Patrícia Newcomer, companheira do fotógrafo, mãe de seus filhos e fundadora de seu arquivo sediado em Paris

  • Alfredo Ribeiro é coordenador de internet do Instituto Moreira Salles.

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