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Elegia para um jambeiro

11 DE FEVEREIRO DE 2019 |
As chuvas que castigaram o Rio na quarta-feira, 6 de fevereiro, devastaram mais que os jardins da sede do IMS na Gávea, que reabriu à visitação pública no dia 19 de fevereiro. Romperam laços afetivos de quem nos últimos anos não passava indiferente sob a copa de algumas árvores especiais no belíssimo conjunto paisagístico projetado por Burle Marx. O poeta Eucanaã Ferraz, consultor de Literatura do IMS, lamenta a queda do jambeiro monumental diante da entrada principal da casa: “E agora, tucanos, macacos, bem-te-vis, o que será de nós?”

Uma de minhas alegrias era oferecer um jambo caído no chão a quem nunca havia comido um daqueles. Escolhia um que estivesse menos machucado pela queda e oferecia a pequena pera de pele vermelho intenso, rosa fechado, quase roxo. Quando a expressão de surpresa brilhava no rosto já à primeira mordida, eu gostava de dizer: não tem gosto de rosa? Ou, à maneira portuguesa: sabe a rosas! A carnadura fresca, um tanto ácida, quase mineral, branca de pureza salina e no entanto sutilmente adocicada tem mesmo o sabor e o olor – sim! – das rosas. Espanto maior: sob a copa, o luxo oriental do tapete de flores que largavam suas pequeníssimas pétalas, filetes acesos num abandono místico.

Lá estava ele, plantado à frente da entrada principal do IMS, como um cão, como um mordomo, como o dono da casa. Como uma criança. Não entendo que não esteja mais lá. Para mim, na verdade, a casa ficava diante do jambeiro; não o contrário. E de todo o jardim e de toda a casa era ele que secretamente me pertencia. Eu o exibia com orgulho aos visitantes que queriam ver as maçanetas talhadas e as obras de arte em exposição. Haveria tempo para todo o resto. Meu – nosso – jambeiro parecia saído de uma daquelas esplêndidas telas pintadas pelo gênio paisagístico do século XIX. Mas sua presença era, ao mesmo tempo, monumental e discreta. As magníficas jaqueiras, ao lado, pareciam velhas vizinhas barulhentas se comparadas com o talhe e o caráter do jambeiro, silencioso, enigmático, sem nenhuma afetação. Podíamos passar por ali e simplesmente ignorá-lo. Podíamos esquecê-lo com a pressa, cegos pelos prazos e planilhas. Podíamos, machucados de calor, gozar de sua sombra sem lhe responder com um gesto de gratidão. E lá estava ele em sua realeza transparente, muda, como se não existisse.

Como ignorá-lo, porém, quando floria e o chão em volta ficava coberto de inumeráveis estrelas luzindo em rosa-luz intensíssimo, como se o nome da cor tivesse surgido daquelas flores e não da flor que leva o nome da cor?

O mistério do rosa e da rosa com o jambeiro e o jambo é uma maravilha que me ocupa os dias sem que eu, no entanto, tenha feito a mais breve pesquisa, digamos, científica, sobre isso. Senti sempre como se devesse chegar ao conhecimento por iluminação. Como se eu – Buda –, posto sob a copa altiva de meu irmão, um dia, simplesmente, sem esforço, viesse a saber. Sim, a admirável vida rosa em rosa do jambeiro e de seu fruto.

Não está mais lá. E agora, tucanos, macacos, bem-te-vis, o que será de nós? O vento e a chuva, juntos, derrubaram a árvore. Imagino que ela tenha lutado como terá lutado noutras vezes contra as intempéries. Por isso, floria com a cintilação densíssima dos sobreviventes. Há de ter pelejado com a força vegetal que vem da terra e vai para a terra, que vem da luz e se lança em direção ao céu.

Manuel Bandeira escreveu um terrível e belo poema no qual um cacto enorme tomba sobre a rua. Um dos versos, talvez o último, afirma que ele era “belo, áspero, intratável”. Meu jambeiro – nosso jambeiro, o jambeiro da Beth, do Cícero, do Wagner, da Cristina, do João, de todos – era, ao contrário, manso, de bom trato, amigo e, como já disse, discreto. Caiu sem machucar ninguém, claro. Mas houve, decerto, um estrondo majestoso quando seu corpo bateu no chão. Talvez fosse jovem.

Preciso ficar feliz. Tenho de lembrar que ele não tombou a golpes de machado nem viveu o horror dos dentes de alguma motosserra em sua cintura. Caiu em luta com o vento e a chuva. Seus amigos, enfim. Caiu lindo, como uma flor miudinha.

  • Eucanaã Ferraz é poeta, consultor de literatura do IMS e professor de Literatura Brasileira na UFRJ

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