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O vasto território de Ferrez

24 DE MARÇO DE 2019 |

Um dos gigantes da fotografia do século XIX no Brasil, Marc Ferrez (1843-1923), cuja obra integra o acervo do Instituto Moreira Salles desde 1998, já teve sua trajetória explorada sob diversos aspectos em exposições e livros publicados pelo IMS. Na última década, porém, as pesquisas em torno do fotógrafo foram intensificadas pelo instituto dentro e fora de seu próprio arquivo, e o resultado é um olhar mais profundo e completo sobre o artista, que pode ser visto em Marc Ferrez: Território e imagem, em cartaz no IMS Paulista a partir de 26 de março de 2019, e que no IMS Rio será apresentada entre dezembro de 2019 e março de 2020. A mostra revela ao público, de maneira mais estruturada, tanto o excepcional fotógrafo, mais conhecido pelas icônicas imagens do Rio de Janeiro, como também o empreendedor e pesquisador inquieto, curioso, que enxergou o imenso futuro do campo da imagem e investiu nele, sempre em estreito diálogo com a ciência e tecnologia.

Sob a curadoria de Sergio Burgi, coordenador de fotografia do IMS, a retrospectiva acompanha os passos de Ferrez, filho de franceses nascido no Rio, durante 55 anos (de 1867, quando começou, até 1922). São mais de 300 itens, entre imagens, câmeras e documentos, incluindo dois álbuns originais, emprestados pelo Getty Museum de Los Angeles e mostrados pela primeira vez no Brasil, com os registros da Comissão Geológica do Império (1875-1878). A primeira expedição que percorreu o país de ponta a ponta para realizar o levantamento geológico do imenso território nacional teve Ferrez, aos 32 anos, como fotógrafo oficial. A exposição apresenta ainda uma versão reduzida de Marc Ferrez, uma cronologia da vida e da obra, abrangente linha do tempo do artista lançada por Ileana Pradilla Ceron, responsável pelo Núcleo de Pesquisa em Fotografia do IMS.

O Ferrez que emerge da mostra é um artista completo, que ajudou a registrar momentos fundamentais da história de modernização do Brasil, enquanto transformava a história da própria fotografia com suas experimentações tecnológicas. “A ideia é mostrar um pouco a questão da expansão do país e também do território da imagem, como ela vai se transformando e como o protagonismo do Ferrez também se transforma”, conta Burgi. “Passa do fotógrafo clássico do século XIX ao sujeito que aprende e domina toda a técnica, a habilidade do fazer, até expandir suas atividades com os filhos”.

A exposição vai revelando, em blocos, um profissional que foi muito além em sua trajetória de paixão pela imagem. O interesse genuíno de Ferrez pela ciência e tecnologia ampliou-se desde seu primeiro contato com a Comissão Geológica, criada por d. Pedro II e liderada pelo geólogo canadense naturalizado americano Charles Frederick Hartt (1840-1878). Burgi destaca que no álbum da Comissão há 40 fotografias feitas com câmera estereoscópica, que confere às imagens profundidade e volume. “Ele está documentando a cachoeira de Paulo Afonso em estereoscopia, dando uma percepção volumétrica do espaço, da geografia, usando um recurso tecnológico. Ou seja, não está encarando isso como uma brincadeira em 3D, está pensando a imagem a serviço do conhecimento, na construção do conhecimento”, afirma.

O interesse pela pesquisa em torno das imagens transparece em novos trabalhos comissionados que levaram o fotógrafo a outras regiões do país, registrando a construção de ferrovias, pontes, portos. Foram oportunidades nas quais ele estreitou relações com geólogos, engenheiros e cientistas. Ao fotografar obras como a Curitiba-Paranaguá, estrada de ferro que desafiava a engenharia da época, conta o curador, Ferrez está pesquisando e usando chapas de grande formato para dar conta de documentar a complexidade da construção. A mostra também reúne imagens realizadas na década de 1880 em Minas Gerais, quando ele passou por cidades como Congonhas, Sabará, Mariana, Ouro Preto, fotografando das obras de Aleijadinho às minas de ouro. “Ele vai acompanhando Paul Ferrand, engenheiro francês que é um dos professores da Escola de Minas de Ouro Preto naquele momento. Para fotografar dentro das minas ele começa a usar a luz artificial, de magnésio, que funcionava como um flash”, diz Burgi.

A aproximação do fotógrafo com outros saberes pode ser vista em diversos  momentos na retrospectiva. Estão lá, por exemplo, as fotos do meteorito de Bendegó, transportado da Bahia para o Rio entre 1887 e 1888 pelo engenheiro Henrique Antunes. Uma operação de grande complexidade, dado o tamanho e peso da pedra, um dos poucos itens sobreviventes ao incêndio que destruiu o Museu Nacional do Rio de Janeiro em 2018 – no qual sucumbiu também o acervo da Comissão Geológica, incluindo negativos de Ferrez. As imagens, feitas pelo próprio Antunes, estão no acervo de Ferrez porque o trabalho do fotógrafo ia além da revelação, edição, ou eventual finalização dos álbuns em seu estúdio, diz Burgi. “As imagens estão lá porque o diálogo que ele mantém com engenheiros e cientistas é maior. Ele provia esses profissionais com equipamentos, soluções, e era um sujeito que discutia as dificuldades do trabalho. Não fazia um mero serviço de fotografia”.

Paul Ferrand no pico do Itacolomi. Ouro Preto, MG, c. 1888. Foto de Marc Ferrez. Coleção Gilberto Ferrez / Acervo IMS

Outro diálogo interessante ele estabeleceu com os astrônomos Luis Cruls e Henrique Morize, do Imperial Observatório do Rio de Janeiro. No acervo de Ferrez estão fotos feitas pelos dois cientistas em 1894, quando foram chamados para delimitar o quadrilátero onde seria construída, quase 70 anos depois, a cidade de Brasília. Mais tarde, em 1912, Ferrez chega a acompanhar Morize até Passa Quatro, em Minas Gerais, para tentar registrar o eclipse solar que confirmaria a Teoria da Relatividade de Albert Einstein. O fotógrafo aparece nos jornais trabalhando com astrônomos franceses, mas chove, e ninguém vê nada. Em 1919, quando Ferrez está na França, para onde viaja depois da morte da mulher, Morize vai a Sobral, no Ceará, organizar a documentação de um novo eclipse, esse sim, registrado como o fenômeno que embasaria a teoria de Einstein. “Vários historiadores dizem que o mundo moderno começa em Sobral com a documentação desse eclipse”, atesta Burgi. “Morize faz fotos do acampamento, e o filho de Ferrez manda o relato do cientista para ele. Isso mostra a relação próxima entre os dois”.

O país em ritmo de progresso registrado por Ferrez está presente nas imagens de ferrovias, navios, de obras urbanas como a instalação de aquedutos e a abertura da Avenida Central, no Rio, álbum no qual trabalhou durante anos e virou uma espécie de cartão-postal de sua produção. No conjunto, porém, também há retratos de um Brasil que patina entre o moderno e o arcaico: nas fotografias das grandes fazendas de café, economia em franca expansão na segunda metade do século XIX, que investia em novos processos de mecanização de colheita, continua em primeiro plano a mão-de-obra escrava. Ferrez estava fotografando as fazendas a serviço dos produtores de café, não tinha um projeto abolicionista, simplesmente flagrou a realidade de uma sociedade escravocrata. Os rostos de homens, mulheres e crianças negras escravizadas deixam claro o sentimento diante de sua condição. “A fotografia tem essa virtude. Ela fala, tem um diálogo”, observa Burgi.

A exposição segue mostrando um artista sempre inquieto, buscando técnicas cada vez mais modernas e precisas, com as quais vai ampliando seus horizontes. Na década de 1880 passou para os negativos de gelatina e prata, processo que facilitaria bastante a difusão da fotografia amadora e a própria formação do cinema, como lembra Burgi. Também começou a usar mais frequentemente as câmeras de médio e grande formato, entre elas uma panorâmica de varredura, a Brandon, comprada na França em 1878. Cada imagem produzida pela câmera, que rotacionava a partir de um mecanismo de relógio,  tinha 110cm de extensão. Ferrez trabalhou durante três anos para aperfeiçoar a Brandon. “Ele depende totalmente dessa habilidade de artesão para executar o que se propõe. Ele carrega o passado para chegar ao futuro”, comenta o curador.

O futuro, para Ferrez, tinha nome certo: cinema. Já consagrado como fotógrafo e como grande comerciante de equipamentos fotográficos, em 1905 ele dá um passo mais firme em direção à sétima arte, iniciando conversações com a Pathé Frères para a distribuição de filmes no Brasil.  Em 1907, ele e os filhos Julio e Luciano viram revendedores exclusivos de equipamentos da empresa francesa e, em agosto daquele ano, inauguram o Cinema Pathé, o terceiro no Rio, mas o primeiro considerado de luxo. Em 1908 também passam a representar os filmes produzidos pela Pathé, e criam uma empresa apenas para esse setor. “Eles são um dos principais canais para viabilizar a aventura do começo do cinema no Brasil. Os Ferrez são os fornecedores de equipamentos e filmes não apenas para as casas burguesas da Avenida Rio Branco, mas também para os cinemas mambembes do interior do país”, conta Burgi.

Entrada da Baía de Guanabara. Niterói, RJ, c. 1885. Foto de Marc Ferrez / Acervo IMS

Os registros dão conta de pelo menos 40 filmes assinados pelo fotógrafo e pelos filhos como produtores ou diretores. Nhô Anastácio chegou de viagem, de Julio Ferrez, lançado em 1908, é considerada a primeira comédia nacional. Infelizmente quase nada sobreviveu ao tempo, e a exposição no IMS Paulista mostrará um fragmento de um minuto do primeiro filme apresentado na inauguração do Cinema Pathé, uma breve ficção sobre um patinador no gelo na França, não produzido pelos Ferrez. Estará em exibição, porém, 30 segundos de um filme sobre uma regata na Baía de Botafogo, do qual Ferrez é produtor, junto com a Pathé. “Quando Ferrez começa no cinema os filmes são todos de curta duração, têm apenas alguns minutos. Então as sessões eram híbridas. Junto com os curtas, documentários, pequenas ficções, havia nos intervalos a projeção de imagens, e aí temos um repertório enorme delas no acervo”, adianta Burgi, contando também que o público pode ver na mostra duas lanternas mágicas, os projetores do século XIX, emprestados pela artista plástica Rosângela Rennó.

Enquanto investe no cinema, o fotógrafo continua a experimentar novidades, e em torno de 1912 passa a trabalhar com fotografias coloridas, utilizando os autocromos, processo patenteado pelos irmãos Lumière poucos anos antes. A retrospectiva no IMS Paulista apresenta um conjunto relevante destas imagens. Neste período o fotógrafo também usa bastante a estereoscopia, renascida com a popularização da fotografia amadora. Em 1915, um ano após a morte de Marie, sua mulher, Ferrez decide ir para a França, de onde continua a atuar como curador dos filmes que serão exibidos por sua empresa no Brasil. A farta correspondência entre ele e os filhos revela o processo de aprendizado em relação à indústria em expansão, com observações de Julio sobre o avanço da ficção americana em relação à europeia, e a constatação de que é o ator, e não o produtor, a figura que definirá o sucesso de determinada produção no mercado.

Uma suíça. Marecottes, Suíça, 1915. Fotografia de Marc Ferrez. Coleção Gilberto Ferrez / Acervo IMS

Em agosto de 1922 Ferrez retorna definitivamente ao país, coincidentemente no mesmo navio que trazia o aviador Alberto Santos Dumont e o grupo Oito Batutas, do qual faziam parte Pixinguinha e Donga. Na Exposição Internacional daquele mesmo ano, que celebrava o centenário da independência brasileira, ele registrou pavilhões em fotografias estereoscópicas e autocromos. De acordo com a pesquisa de Ileana Pradilla Ceron, as imagens formam o último conjunto de fotografias assinadas por Ferrez, que morreu em janeiro de 1923.


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