Otto Stupakoff: beleza e inquietude
TEXTOS DA EXPOSIÇÃO
Pioneiro da fotografia de moda no Brasil, Otto Stupakoff foi um dos fotógrafos brasileiros de maior projeção internacional. Além de ensaios de moda e retratos de celebridades internacionais do mundo das artes e da política, produzidos para revistas como Harper’s Bazaar, Life, Esquire, Glamour, Look e Vogue, Stupakoff, que passou a parte mais produtiva de sua carreira vivendo em Nova York e Paris, deixou conjuntos menos conhecidos de retratos, nus, instantâneos de rua, fotografias de suas incontáveis viagens pelo mundo – inclusive pelo Ártico – e experimentações no limite do abstracionismo. Para contemplar toda a sua trajetória, a exposição Otto Stupakoff: beleza e inquietude se divide em quatro grandes temas: seus anos de formação e primeiros trabalhos nos anos 1950; os anos de 1960 a 1970 e sua colaboração com as principais revistas de moda do mundo, como a Harper's Bazaar e a Vogue francesa, além de retratos de personalidades como Jack Nicholson e Truman Capote; sua série de nus; e uma sala dedicada às viagens que fez.
O fundo infinito para o fotógrafo equivale à folha em branco para o escritor. Ambos precisam ser preenchidos. E são onde, digamos assim, abstrações se concretizam na forma de fotografias e ideias escritas. O fotógrafo, no entanto, trabalha com questões técnicas específicas e, diferentemente do escritor, tem a câmera e as luzes como constantes necessárias à execução de seu trabalho. O resto, tanto para um como para o outro, é terreno fértil para a invenção.
O habitat do fundo infinito, na imensa maioria das vezes, é o espaço de um estúdio, um posto onde os fotógrafos, ditos de moda e/ou de retratos, exercem seu rito. Porém, como cada fotógrafo tem seu modo, cada estúdio tem sua especificidade; alguns são laboratórios de experimentações, outros funcionam como posições de segurança e controle. E muitos, ainda, são a própria casa do fotógrafo.
Em que pese a obra de Otto Stupakoff ser mais ampla e rica quando realizada em ambientes externos, portanto muito mais afeita ao imponderável e ao improviso – e estes aspectos são claramente constituintes de parte de seu processo de trabalho –, ele, entre idas e vindas, acabou tendo diversos estúdios. Em todos eles, de alguma forma, foi muito produtivo, e todos, ao final, se configuraram como antíteses de um estúdio formal. Mesmo o primeiro, em Porto Alegre, construído especialmente como tal, guardava características de um “não estúdio”.
Todos os imóveis que desenhou, ergueu ou ocupou ao longo de sua vida foram sempre tentativas de fazer do estúdio um lugar de acolhimento e conforto, muito mais próximo a um ateliê de artista do que a um estabelecimento próprio à função profissional. A profusão de coisas, objetos e obras de arte presentes nesses ambientes são o retrato de uma mente em constante ebulição e atestam as múltiplas facetas de seus interesses.
Otto ainda encontrava nesses espaços um refúgio, e fazia deles sua oficina de fundição de ideias e de exercício de suas aptidões: ora como fotógrafo de retratos ou publicidade, ora como autor de engenhosas colagens. Além do que, no âmbito desees recintos, ultrassedutores, recebia suas amigas e amigos, artistas e intelectuais. As fotos de moda, ao contrário do que faziam alguns de seus contemporâneos, eminentes fotógrafos de estúdio, como os americanos Richard Avedon e Irving Penn, aconteciam quase sempre em locações externas ou internas.
Enfim, para ele, o ateliê/estúdio era frequentemente seu porto seguro, um local fechado em si, protegido das variações do tempo, da imponderabilidade das cenas exteriores, do choque com a realidade das ruas e, mais que tudo, palco para suas fabulações e esquetes, onde pôde exercer parte de sua variada e particular dramaturgia.
De certa forma, não obstante todas essas considerações acima, o estúdio, com suas quatro paredes e seus fundos infinitos, não o continha, não comportava sua personalidade exuberante e aventureira. Sua folha em branco haveria de ser preenchida no planeta todo, subordinada ao seu olhar obsessivo em busca da beleza, a qual sempre dizia perseguir. Por isso seu périplo pelo mundo.
Otto Stupakoff (São Paulo, 1935-2009) transitou entre a imagem fotográfica, as artes plásticas e o texto na busca por um processo permanente de criação capaz de acalmar sua alma irrequieta. Tanto a vida como a obra de Otto foram significativamente marcadas por essa constante inquietude, que estimulou e aguçou seu olhar ao longo da vida, mantendo-o sempre em deslocamento, como um eterno viajante em busca de um porto sempre desejado e constantemente reimaginado. A percepção humana é, antes de tudo, um ato de imaginação, e, por consequência, também indutora por excelência dos processos criativos e da própria criatividade. O interesse precoce de Otto pela fotografia e pelo cinema denota sua afinidade pela imagem como campo privilegiado de percepção, experimentação e criação. Sobre fotografia e as artes, escreveu: “É de vital importância para um fotógrafo manter o foco não só na fotografia, mas também buscar referências na literatura, pintura, desenho e música”.
A relação de Otto Stupakoff com o circuito das artes, tanto no Brasil como no exterior, foi sempre muito intensa, desde seus anos de formação na Art Center School de Los Angeles, no início dos anos 1950, até sua participação intensa, dez anos depois, no grupo realismo Mágico de São Paulo, liderado por Wesley Duke Lee, e também no circuito de artes em Nova York, na segunda metade da década de 1960, em torno do Departamento de Fotografia do moma, de fotógrafos, como Diane Arbus e Richard Avedon, e de diretores de arte e artistas gráficos, como Bea Feitler, da revista Harper’s Bazaar.
Esta exposição apresenta seus principais trabalhos fotográficos em São Paulo, em Nova York e também em Paris, onde colaborou intensamente com a revista Vogue francesa entre 1973 e 1975. Também percorre extensivamente sua produção fotográfica pessoal, de caráter autoral.
A obra de Otto Stupakoff se aproxima daquilo que Umberto Eco, em sua História da beleza (Milão, 2004), definiu como a beleza inquieta do Renascimento, em que forma, proporção e equilíbrio convivem com estranhamento e inquietação. As incursões de Otto nas artes plásticas ao longo de toda a sua trajetória, particularmente por meio de suas colagens e assemblagens, em paralelo às suas fotografias de naturezas-mortas e construções imagéticas quase surrealistas, convivem com fotografias verdadeiramente icônicas, de grande beleza e encantamento. Destacam-se, em especial, as imagens do universo feminino e da infância, em retratos, nus, fotografias de viagens e registros de seu âmbito familiar e íntimo, concebidas e realizadas dentro de uma linguagem fotográfica que transita entre a modernidade e a pós-modernidade. Inquietude, imaginação, liberdade e beleza formam, assim, a matéria-prima essencial da obra de Otto Stupakoff.
1953-1957
Em maio de 1953, aos 17 anos, Otto Stupakoff embarcou para os Estados Unidos. Iria cursar fotografia na Art Center School, em Los Angeles. Durante esse período, conviveu com o trabalho de grandes nomes da fotografia, como Edward Weston, em Carmel; foi correspondente da revista Manchete em Hollywood; tornou-se amigo íntimo de Carmen Miranda; e viveu sua primeira e profunda paixão, por uma colega de curso.
Retornaria ao Brasil no início de 1955, onde imediatamente projetou e construiu seu primeiro estúdio fotográfico, num processo simultâneo de catarse e rito de passagem da adolescência à maturidade. O espaço, construído no distante sítio paterno, nos arredores de Porto Alegre, sintetizava e simbolizava sua visão, suas angústias e suas aspirações de jovem artista e fotógrafo em busca, a partir daquele momento, de um percurso criativo próprio.
Estabeleceu-se profissionalmente no Rio de Janeiro a partir de início de 1956. Publicou seu trabalho fotográfico e o projeto de seu estúdio construído em Porto Alegre na prestigiada revista Módulo, dirigida por Oscar Niemeyer. Encomendou ao arquiteto Sergio Rodrigues o sofá mole, precursor da poltrona mole, para seu novo estúdio na rua Sambaíba, no Leblon. Em seu período no Rio, realizou uma exposição fotográfica individual na Galeria oca e fotografou a capa do primeiro lp de Dorival Caymmi, sob encomenda de André Midani, da gravadora Odeon. No fim de 1957, mudou-se para São Paulo.
1958-1965
Em 1958, Otto construiu na rua Frei Caneca, em São Paulo, um estúdio-hangar para campanhas publicitárias de grande porte. Mantendo seus relacionamentos no circuito carioca, realizou, nesse período, na casa de Heitor dos Prazeres, no Rio, o primeiro ensaio de moda no país, com a modelo Duda Cavalcanti. Intensificou suas relações com a agência Standard Propaganda, e passou a realizar grandes campanhas de moda para a Rhodia, que culminaram no encarte publicitário que circulou junto com a revista Manchete intitulado “A personalidade da moda para o inverno 1961”, maior ensaio sobre moda veiculado na imprensa no país até aquele momento. O trabalho teve enorme repercussão pelos retratos de personalidades, como Tom Jobim, Jorge Amado, Oscar Niemeyer, Manabu Mabe, Millôr Fernandes e outros, fotografados em seus ambientes de trabalho e criação junto com as principais modelos da época.
Entre 1958 e 1965, Otto estabeleceu em São Paulo forte vínculo com o circuito de artes e vanguardas, em particular com o movimento Realismo Mágico, que se reunia em seu estúdio e era formado por Wesley Duke Lee, Maria Cecília Gismondi, Pedro Manuel-Gismondi, Carlos Felipe Saldanha e Thomaz Souto Corrêa. Otto dedicava-se a colagens e pinturas e produzia um trabalho fotográfico autoral fortemente influenciado pelo grupo. Participou também de happenings e instalações, ao lado de Wesley Duke Lee, como o Grande Espetáculo da Arte de 1963, no João Sebastião Bar, com a exibição de um filme produzido e filmado por Wesley e Otto no centro de São Paulo.
Em 1963, realizou uma importante mostra individual na Petite Galerie (avenida Paulista, 1731), com fotografias e colagens, a primeira mostra de fotografias em uma galeria de arte no país até aquele momento. Essa exposição tornou-se referencial para a trajetória posterior de Otto.
1965-1972
No início de 1964, Otto voltou para os Estados Unidos. Revisitou Los Angeles e realizou um denso ensaio fotográfico intitulado Betsy e Johnas, que resgatou, dez anos depois, um intenso relacionamento de juventude. Conheceu John Szarkowski, curador de fotografia do moma de Nova York, com quem manteria um relacionamento contínuo. Ainda na década de 1960, doaria ao moma cerca de 40 fotografias de sua autoria, que passaram a integrar as coleções do museu, entre elas imagens do ensaio realizado em Los Angeles.
Em 1965, mudou-se definitivamente para Nova York, rompendo com sua trajetória pessoal, familiar e profissional estabelecida em São Paulo nos anos anteriores. Estabeleceu um recomeço de carreira, fotografando novamente capas de lp, agora para a Columbia Records. Realizou os primeiros trabalhos para a Harper’s Bazaar a convite de Bea Feitler, diretora de arte da revista entre 1963 e 1972, junto com Ruth Ansel. A convite do arquiteto Pedro Ramírez Vázquez, fotografou as coleções do Museu Nacional de Antropologia, na Cidade do México, para publicação de um importante livro sobre o museu. Otto também lecionou fotografia na Parsons School of Design.
Em 1967, fez seu primeiro editorial de moda para a Harper’s Bazaar, com Leslie Bogart, e a partir daí sua carreira editorial se desenvolveu significativamente, passando a colaborar também em outras publicações, como Look, Esquire e Glamour. Transferiu seu estúdio para o Carnegie Hall, onde manteve convivência permanente com artistas, entre eles os fotógrafos Art Kane e Diane Arbus, amiga próxima de Bea Feitler.
Nesse período, fez retratos de muitas personalidades, como Jack Nicholson, Richard Nixon, Leonard Cohen, Truman Capote, Tom Stoppard, Marisa Berenson, Sharon Tate, Grace Kelly, Omar Shariff, René d’Harnoncourt e Harold Pinter, entre outros.
1972-1975
Seu período em Nova York durou até 1972, quando, já casado com Margareta Arvidsson, miss Suécia e miss Universo em 1966, mudou-se para Paris. Na capital francesa, passou a trabalhar principalmente para a Vogue local, realizando editoriais de moda marcantes, como um número especial sobre Baden-Baden, na Alemanha, e editoriais com os principais nomes da alta-costura e do prêt-à-porter, como Emanuel Ungaro, Christian Dior, Yves Saint Laurent e Givenchy.
Produziu editoriais de moda ao lado dos fotógrafos Guy Bourdin, Frank Horvat, Helmut Newton e Philippe Halsman, entre outros. Essa intensa atividade para a Vogue, entre 1972 e 1975, o levou a ser listado no rol de fotógrafos que integraram a publicação Vogue Book of Fashion Photography (Londres, 1984).
A partir de Paris, intensifica seus deslocamentos por diversos países e continentes em editoriais variados, de moda, de viagens, de personalidades, realizados para diversas publicações internacionais.
A fotografia acompanhou o registro da vida das famílias ao longo de todo o século xx. Com as inovações técnicas que permitiram a disseminação da fotografia amadora, os registros emblemáticos da vida familiar, como nascimentos, casamentos e outras efemérides, passaram a ser constantemente e uniformemente registrados. Mas foram os fotógrafos dos anos 1960 e 1970 que tornaram o registro familiar verdadeiras narrativas poéticas da vida íntima, como fizeram os fotógrafos Harry Calaham e Emmet Gowin, que desenvolveram importantes trabalhos ao redor da própria casa, no universo familiar.
As séries sobre família de Otto incorporaram esse olhar mais íntimo, de enquadramento mais solto e voltado para universos particulares. Em comentário sobre a produção fotográfica da década de 1950 e do início dos anos 1960, John Szarkowski comentou: “Na década passada, uma nova geração de fotógrafos redirecionou a técnica e a estética da fotografia documental para fins mais pessoais. Seu objetivo tem sido não reformar a vida, mas conhecê-la, não persuadir, mas entender. O mundo, apesar de seus horrores, é compreendido como fonte primeira de espanto e fascinação, não deixando de ser menos precioso por ser irracional e incoerente.”
A fotografia de Otto buscava desenvolver esse olhar investigativo e afetivo sobre seu universo mais íntimo, ao mesmo tempo que o estendia também para o registro do mundo exterior. Uma abordagem semelhante foi empregada pelo fotógrafo nas viagens que realizou, ainda que de forma mais fragmentada.
As melhores imagens que Otto produziu sobre o nu e a beleza feminina, em sua maioria em ensaios não comissionados, foram realizadas ao registrar pessoas com quem mantinha um relacionamento próximo e afetivo. Fotografou-as em sessões realizadas em seus estúdios ou em sua casa, com um olhar único e sensual, tentando exaurir todas as possibilidades do encontro, sempre produzindo imagens de forma muito visceral. Otto buscou no rosto e no corpo feminino a expressão maior de sua busca pela beleza, e esse objetivo permeou sua produção ao longo de toda a sua carreira.
Em texto de outubro de 1980, Jorge Amado escreveu sobre o fotógrafo que tão bem conhecia e admirava: “De nossa parte, somos testemunhas da invariável tenacidade do artista, de sua consciência em busca do extremo limite da beleza. Assim nascem as verdadeiras obras de criação, pois essa última luz, a mais bela e verdadeira, Otto traz em seu coração, resulta de seu amor à vida.”
Uma referência na fotografia de Otto sobre o universo feminino foi o pintor francês de origem polaca Balthus, pseudônimo de Balthasar Klossowski (1908-2001). Em toda a sua carreira, Balthus rejeitou as convenções usuais do mundo da arte. Suas pinturas, produzidas a partir dos anos 1930, retratam jovens entre a adolescência e a puberdade, moças em fase de transição inclusive em relação à sua sexualidade, e influenciaram inúmeros artistas contemporâneos.
No fim de 1967 e nos primeiros dias de 1968, durante a Guerra do Vietnã, Otto fez uma extensa cobertura de Saigon, apenas duas semanas antes da ofensiva do Tet, lançada pelos norte-vietnamitas contra o sul do país, que resultou em centenas de mortos. Otto percorreu a cidade, fotografando a juventude e a dinâmica das ruas, produzindo um conjunto de imagens coeso sobre a cidade naquele momento. Ao longo dos 20 anos seguintes, produziria, entre outras, importante documentação sobre as vítimas do Khmer Vermelho no Camboja para o fundo humanitário Cambodia Trust, em 1994, e realizou inúmeras viagens pelo mundo, incluindo quatro viagens ao Ártico.
Na construção dos registros feitos em viagens ao México, Amsterdã, Londres e Índia, utilizou com frequência, mas não exclusivamente, uma linguagem próxima à da street photography na construção de suas narrativas. Trabalhos como os de Lee Friedlander e Garry Winogrand, que conhecera na década de 1960, influenciariam a abordagem de Otto, em particular nas séries mais autorais que produziria entre as décadas de 1960 e 1990. Consciente do potencial de informação e de estranhamento que o registro quase acidental pode trazer para a descrição de um evento, Otto move agilmente sua câmera nesses registros feitos em viagens e deslocamentos: uma clareza baseada não na modelagem definitiva da cena, mas, principalmente, no esboço de formas e linhas apenas sugeridas. Fotógrafos como William Klein desenvolveram abordagens semelhantes na construção de uma iconografia que busca reter, em especial na página impressa das revistas, esse olhar contemporâneo que tende à fragmentação e à fugacidade.