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Os diários de Rubens Brando

13 de setembro de 2019 |

Rubens Brando conheceu Claudia Andujar em 1979, aos 27 anos. O jovem recém-formado pela Escola Paulista de Medicina havia retornado de um trabalho no Xingu. Em 1978 esteve também nas reservas Xavante de Areões e Culuene, sempre interessado em estudar saúde indígena e buscar as soluções adequadas para cada caso. Como membro da Comissão Pró-índio, participava de seminários e atos políticos.

Enquanto isso, a já experiente fotógrafa preparava o mais ambicioso projeto de sua vida. Em pouco meses, deixaria a fotografia em segundo plano para criar e comandar a Comissão pela Criação do Parque Yanomami (CCPY), com o intuito de demarcar o Parque Indígena Yanomami, feito alcançado 13 anos depois.

A situação na região era dramática. Após o início da construção da rodovia Perimetral Norte, grupos Yanomamis entraram pela primeira vez em contato com brancos, fato que provocou incontáveis mortes. Aldeias inteiras desapareceram. Sem resposta do governo brasileiro sobre a retirada dos milhares de garimpeiros ilegais, a CCPY definiu seu primeiro plano de ação: uma campanha emergencial de saúde, com remédios e vacinas para estancar o avanço das epidemias. Plano traçado, Claudia Andujar entrou em contato com a Funai, solicitando acesso irrestrito à área Yanomami, incluindo regiões parcialmente isoladas e que ela própria nunca havia visitado.

Além de Rubens e Claudia, Francisco Pascallichio, também médico, passou a integrar a equipe. Se nos anos 70 a fotógrafa carregava caixas de isopor com filmes, agora precisava de caixas maiores para transportar vacinas e outros medicamentos floresta adentro.

Anos depois, obcecado com o trabalho, Brando conseguiu emprego na Funai e mudou-se definitivamente para Boa Vista, para ficar mais próximo dos Yanomamis. Ele morreu em um acidente de helicóptero em dezembro de 1982, quando voltava de uma campanha de vacinação. Deixou esposa e filhos, além de uma série de cartas e diários, das quais apresentamos os trechos abaixo, acompanhados das fotos de identificação feitas por Claudia Andujar, que hoje conhecemos como parte da série Marcados.

Rubens Brando é também autor de duas importantes peças na pesquisa para a exposição Claudia Andujar, A luta Yanomami: o Relatório de Saúde 1982, e um mapa com anotações da região, do qual extraímos informações que aparecem na versão que integra a exposição e o catálogo.

Pouco antes de iniciar a primeira viagem para Roraima, onde encontraria Claudia, Rubens Brando escreveu para um colega: “Fiquei pensando muito em Roraima. O projeto de criação do Parque é muito bem feito. Você precisa ver. E é gostoso olhar no mapa. Fico imaginando o relevo da região e as casas. Será que os Yanomami brincam como o pessoal lá do Xingu?”

O médico logo descobriria.

Ângelo Manjabosco é pesquisador de fotografia contemporânea do Instituto Moreira Salles

Desenho em traço preto mostrando cidades, postos da FUNAI e missões no território Yanomami no Brasil
Mapa da área Yanomami no Brasil em 1981, feito pelo médico Rubens Brando

Catrimani

A primeira parada da equipe é em Ajarani, região próxima a capital Boa Vista. Em seguida, do Catrimani, lugar em que Claudia permaneceu por longos períodos nos anos 70, Brando faz o primeiro registro em seu diário com as impressões colhidas desde a saída de Boa Vista.

“A passarada já diminuiu a algazarra que nos acordou neste delicioso lugar. Enquanto aguardo o sino do café, aproveito para algumas linhas.

Pasca, Claudia e eu saímos de Boa Vista no sábado. Lá estávamos na casa do Bispo, que nos tratou muito bem, porém com receio. A oposição (governador, deputados e fazendeiros) é forte – até o telefone do Bispo é censurado.

Boa Vista é uma aprazível cidade pré-planejada, com vento para amenizar o calor e belas praias do rio Branco enfeitando a cidade. Vê-se muito índio na rua a ponto de lembrar a Bolívia. De Boa Vista fomos em Toyota da Funai até Ajarani [início da área Yanomami], às margens do rio homônimo. Há 5 malocas nas imediações do Posto da Funai ali instalado. Uma festa iria ocorrer. Havia muito macaco defumado e preparativos gerais.

Ótimos banhos de rio no Ajarani. Comida muito boa. Queixada no almoço e jantar, além de peixe. Aqui no Catrimani, então, é luxo. Tem um freezer, o que facilita demais.
Neste exato momento sou chamado para o café.

As instalações da Missão (aqui não tem posto da Funai) são excelentes, tudo de muito bom gosto. Até o macaquinho é mais bonito e fica solto, ao contrário do Ajarani, onde a casa também é boa, mas os porcos soltos ao redor impregnam com mau cheiro.

Os índios da Missão, como admitem os funcionários da Funai, são bem conservados. Praticamente não usam roupas, tem um aspecto saudável e de fácil contato – as crianças vêm ao colo, brincam com a gente, etc. Os do Ajarani tem cara mais malandra e desconfiada.

A vinda do Ajarani para o Catrimani durou umas 3 horas e foi um dos momentos que mais gostei. Tem uma ponte quebrada no caminho, atravessamos o rio de barco e do lado de cá viemos na carroceria aberta de um caminhão suíço da 2ª guerra. Dezenas e dezenas de araras azuis e amarelas atravessaram a estrada em pequenos bandos e acompanhavam um pouco o caminhão, gritando em cima da gente. Dos dois lados,a mata exuberante. Rastros de bandos de queixadas, anta e maracajá – os bichos mesmos não vimos, só as aves: jaburus, garças e tucanos.

O pequeno índio doente, após muito trabalho, já foi entregue a seus pais. Quando íamos às autoridades em Brasília e Manaus ele ia conosco e sempre mexia muito nas mesas dos bichões, gritando. De volta ao lar, já está sem roupa (tem um pouco de vergonha quando nos vê), com o pinto amarrado num barbante à moda local e com queimaduras de sol. Parece satisfeito”.

Boas Novas

Na região de Boas Novas, ao norte do território yanomami e próxima da fronteira da Venezuela, Brando encontra um grupo indígena com hábitos novos, fruto de intenso contato com garimpeiros e comerciantes brancos.

“Há 3 dias chegou uma canoa com motor, e a Cláudia, o piloto (tem relógio mas não sabe ver as horas) e mais uma família e eu descemos o rio Coimin e subimos o rio Uraricaá até a aldeia mais próxima – 6 horas de motor. Atravessamos 2 cachoeiras – coisa muito emocionante. Desce o pessoal, descarrega a canoa, que é arrastada entre pedras e espuma. Me senti um moleque participando de brinquedo de adulto. Foi ótimo e emocionante demais ajudá-los. Cheguei a ter câimbras de tanto esforço, mas é uma delícia vencer um obstáculo aparentemente intransponível. E o cenário é muito bonito.

Chegamos na maloca à noite, exaustos. Lá, tentamos dormir, mas os índios ficaram bebendo e fazendo discurso até as 3 da manhã. Ao acordar, corri para as vacinas e vi que após 4 dias no gelo ainda estavam a 32º. Colhemos as amostras e conseguimos trazer metade da população numa outra canoa com motor. Hoje o Pasca e Seu Pedro desceram para lá para vacinar a outra metade e tentar atingir mais um grupo.

Agora tem duas meninas duns 12 anos e dois meninos de 6, 7 e uma menor de 2 anos e meio aqui na maloca. A meninazinha tem uma boneca daquelas de plástico, ruiva, de vestido verde, que é a atração do momento! Incrível – a maior agora está arrumando o cabelo da boneca. Nesta maloca – 8 casas, umas 50 pessoas – só um fala português mais ou menos. E o dialeto é diferente do Catrimani – não dá pra Claudia entender”.

Surucucus

Alguns dias depois, no coração da terra yanomami, em Surucucus, o médico descreve com detalhes a paisagem e a comida local.

“Estamos na aldeia Aykantheri, na serra dos Surucucus. A paisagem é belíssima. Quatro crianças não me deixam escrever. Ficam pondo o dedo no meu óculos, me enfiam gafanhotos na boca, procuram piolho na minha cabeça, puxam minha caneta, é sempre assim. E como não falamos a mesma língua é fogo. Eles conversam com a gente, falam, falam, falam. A paisagem então é assim. Do topo deste morro, 4 malocas de pau e palha, avista-se mais duas no topo do morro a direita. As vertentes de ambos os morros estão com as matas praticamente (voltaram as crianças) derrubadas (agora tiram meu dedo de cima do rabisco que fizeram – trouxeram outra para ver). Então, em volta tem as roças entre os paus caídos, mandioca, banana, taioba e cana, bastante cana. Da face que estou não dá pra ver muito, pois é íngreme demais. Mas ao longe a gente vê várias sequências de serras. Me lembra um pouco as regiões de ski do Colorado. A esquerda do outro morro com maloca, quase em frente a mim, tem um paredão enorme, de pedra em parte e o resto mata. Agora começou a garoar. Está bem nublado. Incrível como de fato aqui no Surucucu faz frio. Na maloca com todas aquelas fogueiras nem tento, mas no Posto não é fácil. Levamos 5 horas de sobe e desce morro, no meio do mato, para chegar aqui. População estimada em 150 pessoas, vacinamos 110. Uns indiozinhos, 10-15 anos carregaram nossa bagagem.

Amanhã deveremos voltar para o Posto [da Funai]. Ontem após a sesta acordei como uma cesta de banana com camarão. São minúsculos os pituzinhos, mas bem vermelhinhos e gostosos. A tardinha chegaram os caçadores – não conseguiram nada. Hoje sairão para caçar outra vez. Não estão desnutridos, embora de fato, proteína pareça mais difícil por aqui. Malária tem pouca, possivelmente devido à temperatura (varia entre 14 e 25 graus). Leishmaniose até que tem bastante – vimos uns 3 ou 4 casos. No mais é ferimento. Ah, pium, borrachudo tem bem – estão inclusive me incomodando no momento. Vou voltar para a maloca”.

Mucajaí

As atividades religiosas dos missionários na região aparecem diversas vezes no diário de Brando, como nesse trecho escrito em Mucajaí, Roraima.

“Passarada acabando de fazer algazarra. Curioso como eles tem hora certa prá acordar e como são barulhentos. Há uns cem metros estão as corredeiras do rio Mucajaí com o som característico. A vista pelas grandes e numerosas janelas desta magnífica mansão de paus de palmeira é mais bonita ainda do que das outras visitadas. Vê-se o rio com a mata do outro lado.

Ontem de manhã houve culto. Praticamente tudo em Yanomami. Três músicas apenas em português. Tres palavrinhas só, eu sei de cor: ‘Deus é amor’. E a outra: ‘Eu tenho um amigo que me ama, seu nome é Jesus’. Os coitados dos índios, uns velhos inclusive, todos de roupa, ainda trazem seus arcos e flechas e alguns se pintam, como nos rituais tradicionais. Entre as músicas, vários deles falam por algum tempo. Parece que um andou ouvindo a voz de Deus (!) pois durante a prece usual, o gringo agradeceu ‘a intimidade que um homem pode ter contigo, chegando e ouvir a tua voz’. Eles não defendem a criação do parque, porque na proposta nada se diz como será depois. Se for como o Xingu, não apoiarão. Se for para promover o entrosamento com os brasileiros, aí sim. Os velhos [missionários] argumentam: é justo o índio ficar com tanta terra, enquanto o fazendeiro previdenciária muitos empregos pras pessoas necessitadas, etc? Estão aqui desde 1958, criaram os filhos aqui, até a idade escolar, agora tem dois pequenos. Atualmente vivem um casal e uma mulher de uns 33 anos, solteira. Uma outra está de férias. Aparentemente são simpáticos, nos tratam bem, a situação de saúde, em termos de atenção está boa. Tem é tuberculose demais. 27 casos diagnosticados até hoje. Já houve doença venérea, enfim, é a sifilização chegando, né?

Depois do café deveremos ir até uma aldeia a 1 hora a pé daqui, colher mais amostras e ver uns casos. Pasca não acordou ainda. Precisamos estar de volta logo para concluir umas informações. Amanhã vamos para Auaris”.

Auaris e Palimiú

Por fim, de volta à Boa Vista, Rubens Brando escreve sobre as últimas regiões vacinadas.

“Estou aqui deitado numa cama sem lençol num quartinho da Prelazia, em Boa Vista, enquanto o Pasca copia uma relação de vacinados. De ontem a noite até agora (umas 14:30h) já fui mais de 6 vezes ao banheiro. Estou mal, com fraqueza, náuseas, suor frio e diarreia. Ainda bem que começou aqui em Boa Vista, ontem depois que chegamos. A Claudia está com alergia, toda empipocada e se coçando. É a fase das doenças. Esta última etapa foi comprida. De Mucajaí escrevi, de Auaris e Palimiu não deu tempo. Correria. Em Auaris ficamos em dois – Pasca foi para o subposto Olomai. O trabalho correu bem, o alojamento não era tão bom. De curioso receberam, durante nossa estadia, a rápida visita do governador do Território [de Roraima], o chefe da MEVA [Missão Evangélica da Amazônia] e as filhas do governador.

Os índios mataram uma surucucu. Havia uma criança de 10 dias com broncopneumonia e que estava muito mal – parece que melhorou. Choveu bastante. Em Auaris, além dos Yanomami, lá conhecidos como Sanumá, tem os Mayongong, cuja maior parte da tribo fica na Venezuela. São bem diferentes dos Sanumá. São famosos canoeiros, vivem do rio. Vem anualmente para Boa Vista vender canoas. Para voltar levam 40 dias remando! Para vir, 2 ou 3 semanas. A casa, os enfeites, o temperamento, tudo é diferente. Eles já conviviam com os Yanomami antes dos missionários chegarem e ensinaram muita coisa aos Yanomami, que os respeitam muito. Entretanto, caçar e pajelança parece que os Yanomami sabem melhor, segundo disseram. Os missionários não ligam muito para os Mayongong. Evangelizam apenas os Sanumá.

Aliás, no Palimiu vocês precisavam ver a audácia e a loucura do fanático missionário. De manhã cedo após o café ele vinha de bíblia em punho tentar converter a gente. Fora de Cristo não tem salvação! Quando os xapiri (pajés) estão fazendo pajelança é satanás que está ali. A vida dos Yanomami é demoníaca e assim vai babando besteira. A missão na beira do rio é mais bonita ainda que o Mucajaí, mas coitados dos índios. Duas solteironas criam uma meninazinha que com 3 anos e meio já reza na missa – eu vi . Elas abertamente dizem que a coitada vai ser útil para provar aos Yanomami que índio pode aprender ler e escrever, bem como outros hábitos civilizados.

Tomara que se rebele.”


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