Edição 2020
Modos de ver, de figurar, de imaginar. Diálogos entre fotografia e cultura imaterial. Maureen Bisilliat e Marcel Gautherot
Inscrições: 1 de outubro a 22 de novembro de 2020
Resultado da seleção: dezembro de 2020
Edital e anexos
O Instituto Moreira Salles, entidade cultural sem fins lucrativos, institui o presente edital, que regulamenta o concurso para a seleção de um projeto eleito à BOLSA IMS DE PESQUISA EM FOTOGRAFIA, edição 2020.
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Edital 2020 | Anexo I: Eixo temático | Anexo II: Referências e fontes para o projeto
1.1. Constitui o objeto do presente edital a seleção de um projeto para o estudo das coleções de fotografia conservadas no Instituto Moreira Salles.
1.2. A bolsa tem por objetivos:
a) Contribuir para a capacitação de pesquisadores que desejem investigar a história da fotografia no Brasil;
b) Fomentar pesquisas que contribuam para promover e disseminar o conhecimento sobre autores, obras, conjuntos, coleções de natureza fotográfica e arquivos documentais sobre a fotografia, sob a guarda do Instituto Moreira Salles e de outras bibliotecas, coleções, instituições arquivísticas e museológicas brasileiras;
c) Estimular a realização de estudos críticos sobre o lugar da fotografia na formação de representações históricas, sociais e culturais no Brasil.
2.1. Estão aptas a se inscrever pessoas físicas, brasileiras ou estrangeiras, radicadas no Brasil há, no mínimo, 01 (um) ano, que possuam o título de mestre ou superior, com ou sem vínculo acadêmico ou institucional.
2.2. Não poderão se inscrever as pessoas físicas que sejam funcionários do Instituto Moreira Salles ou que tenham vínculo de parentesco com funcionários do Instituto Moreira Salles.
3.1. O Instituto Moreira Salles concederá uma bolsa de pesquisa para um projeto de estudo sobre o seguinte eixo temático, que se encontra detalhado no Anexo I deste edital:
Modos de ver, de figurar, de imaginar. Diálogos entre fotografia e cultura imaterial. Maureen Bisilliat e Marcel Gautherot
3.2. Os candidatos deverão apresentar um único projeto de pesquisa inédito, assim entendido como um projeto de pesquisa não apresentado publicamente nem resultante de dissertação ou tese para conclusão de curso de graduação ou pós-graduação universitária.
3.3 A fim de auxiliar na elaboração do projeto de pesquisa, os Anexos I e II deste edital contém informações complementares, links do Instituto Moreira Salles com referências sobre os dois fotógrafos e referências bibliográficas.
3.4. Devido às restrições ao trabalho presencial impostas pela epidemia de Covid-19, ainda vigentes na data de lançamento deste edital, o trabalho de pesquisa excepcionalmente poderá ser desenvolvido de forma remota.
3.5 Para a realização da pesquisa, o bolsista terá acesso aos acervos de Maureen Bisilliat e Marcel Gautherot que se encontram digitalizados no Cumulus, banco de imagens do Instituto Moreira Salles.
4.1. As inscrições estarão abertas no período de 01 de outubro a 22 de novembro de 2020.
4.2. As inscrições serão realizadas em duas etapas:
- Preenchimento do formulário de inscrição online, no endereço: http://bit.ly/bolsadepesquisa2020
- Envio do material de inscrição (descrito no item 4.3), exclusivamente por e-mail, até 23h59min do dia 22 de novembro, para o endereço [email protected].
4.3. O material de inscrição a que se refere o item anterior compreende os seguintes documentos impressos:
- Formulário de inscrição online preenchido;
- Cópia de RG e CPF;
- Para estrangeiros, documento que comprove residência no Brasil há, no mínimo, 01 (um) ano;
- Cópia do diploma de mestrado;
- Currículo do candidato, incluindo formação acadêmica, atividades profissionais, publicações e trabalhos técnicos realizados (arquivo em pdf);
- Cópia do projeto de pesquisa (arquivo em word e pdf) com, no máximo, 10 páginas, especificando:
• Tema da pesquisa;
• Objetivos;
• Metodologia;
• Pertinência do projeto;
• Fontes e materiais documentais e iconográficos a serem pesquisados nos acervos do Instituto Moreira Salles e em outras instituições;
• Resultados previstos.
5.1. O processo seletivo será realizado em duas etapas:
- Habilitação dos candidatos, com o objetivo de verificar o cumprimento das exigências previstas neste edital;
- Avaliação do currículo e do projeto dos candidatos, segundo os critérios previstos neste edital, por uma Comissão de Seleção, a ser constituída por três profissionais, indicados pelo Instituto Moreira Salles;
Eventuais entrevistas, preferencialmente via zoom ou outra plataforma de reunião à distância, poderão ser requeridas pela Comissão de Seleção, para fins de esclarecimentos ou desempate.
5.2. A Comissão de Seleção levará em consideração as seguintes diretrizes:
- Qualificação do candidato e sua experiência em projetos de pesquisa correlatos;
- Qualidade e pertinência do projeto apresentado.
5.3. A análise dos projetos e currículos, assim como eventuais entrevistas ocorrerão no período de 23 de novembro a 11 de dezembro de 2020.
5.4. O resultado final com o nome do bolsista selecionado será divulgado no site do Instituto Moreira Salles (https://ims.com.br/), em dezembro de 2020.
5.5. A pesquisa será iniciada em fevereiro de 2021, tendo como pré-requisito a formalização dos documentos referidos no item 6.4 a seguir.
6.1. A Bolsa IMS de Pesquisa em Fotografia – edição 2020 terá duração máxima de 01 (um) ano.
6.2. O valor bruto da bolsa será de R$ 30.000,00 (trinta mil reais).
6.3. O pagamento da bolsa será efetuado em 12 (doze) parcelas mensais no valor bruto de R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais), sobre o qual serão descontados o imposto de renda à alíquota estabelecida pela Receita Federal do Brasil na ocasião do pagamento e eventuais tributos instituídos durante a vigência da bolsa.
6.4. O bolsista selecionado deverá entregar ao Instituto Moreira Salles, no prazo de até 7 (sete) dias úteis a contar da data da publicação do resultado, os seguintes documentos:
- Dados bancários (banco, agência e conta corrente);
- Comprovante de residência; e
- Contrato assinado.
6.5. Não serão aceitos pedidos de reconsideração do resultado final da seleção.
6.6. O material de inscrição dos projetos de pesquisa não selecionados será inutilizado.
7.1. A Bolsa IMS de Pesquisa em Fotografia tem estimulado o contato direto do pesquisador com os acervos sob a guarda do Instituto Moreira Salles. Devido às condições sanitárias atuais, excepcionalmente, o bolsista selecionado não terá obrigação de realizar as atividades de pesquisa de forma presencial.
7.2. Contudo, as pesquisas presenciais serão autorizadas, caso as condições sanitárias o permitam. Nesta hipótese, se o bolsista selecionado não for residente na cidade do Rio de Janeiro, o Instituto Moreira Salles custeará passagem, estadia e per diem para alimentação e transporte local para um período de 10 (dez) dias corridos.
7.3. Para acompanhar o desenvolvimento do projeto, serão realizados encontros bimensais, online, entre o bolsista selecionado e a coordenação da Bolsa IMS de Pesquisa em Fotografia.
7.4. O bolsista deverá entregar três relatórios parciais, um a cada 90 (noventa) dias, a começar pela data de início da pesquisa. A continuação das atividades e a vigência da bolsa serão condicionadas à aprovação dos relatórios pela Comissão de Seleção.
7.5. Após a conclusão do projeto de pesquisa, o bolsista deverá apresentar os seguintes resultados finais: (i) relatório final, (ii) artigo de conclusão da pesquisa, e (iii) palestra aberta ao público, presencial ou online de acordo com as condições sanitárias do momento, sobre os resultados de sua pesquisa, em local a ser definido pelo Instituto Moreira Salles.
7.6. Eventuais mudanças no projeto de pesquisa deverão ser discutidas com a coordenação da Bolsa IMS de Pesquisa em Fotografia.
7.7. O pagamento da última parcela da bolsa está condicionado à entrega do relatório final, aprovado pela Comissão de Seleção, e do artigo referidos no item 7.5 acima.
7.8. O pesquisador selecionado licenciará ao Instituto Moreira Salles o direito de exclusividade para divulgar, reproduzir, publicar, traduzir e/ou utilizar os resultados finais do projeto pelo prazo de um ano, a contar da data de pagamento da última parcela da bolsa.
7.9. Após o prazo referido no item 7.8 acima, o Instituto Moreira Salles terá o direito de exibir, divulgar, reproduzir, publicar, traduzir e/ou utilizar, por qualquer meio ou forma, os resultados finais do projeto em todo e qualquer evento, atividade e projeto de natureza comercial, institucional e/ou cultural do Instituto Moreira Salles;
7.10. Após o prazo referido no item 7.9 acima, o bolsista selecionado poderá dispor integralmente dos resultados finais do projeto, observada a disposição do item 8, a seguir.
Toda e qualquer divulgação dos resultados finais ou parciais do projeto deverá ser sempre acompanhada do seguinte crédito: “Realizado com incentivo da Bolsa IMS de Pesquisa em Fotografia – edição 2020”.
9.1. O ato da inscrição implica a plena aceitação das normas constantes no presente edital.
9.2. Os casos omissos serão apreciados e resolvidos pela Comissão de Seleção, ficando desde logo eleito o Foro Central da Comarca do Rio de Janeiro para dirimir eventuais questões relativas a este edital.
9.3. O Instituto Moreira Salles não se responsabiliza pelas licenças e autorizações necessárias à realização do projeto selecionado, sendo estas de total e exclusiva responsabilidade do bolsista selecionado.
9.4. A inexecução total ou parcial do projeto contemplado neste edital implicará a adoção de medidas judiciais cabíveis e a devolução, por parte do bolsista selecionado, dos recursos recebidos, atualizados de acordo com a legislação vigente à época em que se realizar a respectiva quitação.
9.5. O bolsista selecionado será o único e exclusivo responsável pela realização do seu projeto, isentando o Instituto Moreira Salles de qualquer responsabilidade sobre o mesmo.
Eixo temático: Modos de ver, de figurar, de imaginar. Diálogos entre fotografia e cultura imaterial. Maureen Bisilliat e Marcel Gautherot
A Bolsa IMS de pesquisa em Fotografia em sua edição 2020 promove uma investigação crítica sobre os diálogos entre fotografia e manifestações culturais populares e de origem indígena e afro-brasileira, a partir das coleções dos fotógrafos Maureen Bisilliat e Marcel Gautherot, sob a guarda do IMS.
Como ponto de partida sugerimos indagar quais foram as representações que a fotografia elaborou das expressões populares, na obra dos dois autores citados, e, por sua vez, investigar de que maneira a natureza dinâmica, coletiva e plural dessas manifestações permearam a forma da fotografia ver e construir suas imagens.
Maria Inez Turazzi estabelece uma instigante ponte entre a fotografia e a cultura, que aqui adaptamos à cultura imaterial. Para a pesquisadora, se a “cultura molda o olhar de uma sociedade sobre si mesma e, simultaneamente, sobre as demais”, a fotografia “é um recurso visual particularmente eficaz na formação do sentimento de identidade (pessoal ou coletiva), materializando em si mesma uma “visão de si, para si e para o outro, assim como uma “visão do outro” e das nossas diferenças”.1
A terceira edição da Bolsa IMS de Pesquisa em Fotografia busca, em suma, estimular uma reflexão sobre as trocas possíveis entre a fotografia e a cultura imaterial, duas formas de moldar olhares, de construir identidades, de materializar as diferenças, totalmente distintas, mas igualmente poderosas.
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1 Turazzi, Maria Inez. “Introdução – uma cultura fotográfica”. In: Revista do Patrimônio (Fotografia). Rio de Janeiro, n. 27, 1998, p. 9
Alguns recortes temáticos sugeridos
Religiosidade e resistência
Boa parte das manifestações culturais populares está associada a tradições religiosas de diversas matrizes. Festas, como a do Senhor do Bonfim, na Bahia, o Círio de Nazaré, no Pará, a romaria do Bom Jesus da Lapa, a Festa do Divino, e o próprio Bumba meu Boi, várias delas registradas como patrimônio imaterial brasileiro, incluindo o próprio carnaval, tem origem em celebrações rituais. Elas, contudo, acabaram por ampliar seu caráter eminentemente devocional, gerando outras expressões que adquiriram vida própria.
O ofício das baianas do acarajé, por exemplo, registrado entre os bens imateriais da Bahia, é indissociado de práticas ligadas ao candomblé. O artesanato de miriti, produzido em Abaetuba, igualmente reconhecido pelo IPHAN como patrimônio imaterial paraense, está associado à tradição do Círio de Nazaré.
Algumas das manifestações relacionadas à temática religiosa, nas lentes de Marcel Gautherot e Maureen Bisilliat:
- Romaria de Bom Jesus da Lapa
- Festa de Iemanjá
- Festa de Nosso Senhor do Bonfim
- Candomblé
- Bumba meu Boi
- Auto dos Guerreiros
- Círio de Nazaré (Gautherot)
- Afoxé de Caboclo (Bisilliat)
- Tambor de Mina (Gautherot)
Potência feminina
No final dos anos 1930, a antropóloga norte-americana Ruth Landes pesquisou o candomblé na Bahia. Em artigos e posteriormente em seu livro Cidade das Mulheres, ela revelou a crescente presença das mulheres nos candomblés nagôs e de homossexuais, nos cultos de Caboclos. Essa revelação originou uma violenta onda de críticas vinda de intelectuais brasileiros e de seus pares norte-americanos. Mas esse approach que causou tanto desconforto, parece confirmar-se não apenas nas imagens de Candomblé, mas em outras expressões tradicionais.
O lugar do feminino nas lentes de Bisilliat e Gautherot, pode ser analisado entre outros, nos seguintes conjuntos:
- Candomblé
- Festa de Iemanjá
- Maracatu
- Tambor de Mina (Gautherot)
- Tambor de Crioula (Gautherot)
- Tambor do Divino (Gautherot)
- Afoxé
- Xingu (Bisilliat)
- Vale do Amanhecer (Bisilliat)
Territorialidade
Apesar de suas grandes diferenças, a fotografia em Maureen e Gautherot parece ser motivada por uma profunda empatia pelo outro, que se reflete em seus retratos e nos registros mais próximos dos indivíduos. Essa construção de afetos molda também a relação dos fotógrafos com os outros universos pesquisados, incluindo os ritos, festas e demais manifestações específicas da cultura imaterial.
O olhar dos fotógrafos para a cultura popular está portanto indissociado de seu interesse pela região, pela paisagem, pela vida cotidiana, pelo trabalho de seus protagonistas.
As conexões entre as fotografias de expressões culturais e as séries mais amplas que abrangem territórios geográficos, formas de vida da população, podem ser estudadas em diversos conjuntos, entre os quais:
Salvador:
Gautherot: Lagoa do Abaeté/ Água de Meninos/Lavagem de N. S. do Bonfim/ Procissão N. S. dos Navegantes/ Vendedoras de Acarajé/ Segunda-feira gorda/ Festa de Iemanjá
Bisilliat: Bahia Antiga e Nova/Afoxé de Caboclo
Rio São Francisco
Sertão
Canindé (Gautherot)/ Sertões (Bisilliat)
Xingu (Bisilliat)/ Caiapós e Karajás (Gautherot)
E o carnaval?
Além de ser a maior e talvez a mais longeva festa popular brasileira, em sua pluralidade, o carnaval é talvez um dos principais integradores culturais do país. Cada uma de suas diversas modalidades: de rua, desfile de escolas, blocos, bailes, urbano, regional, possui um universo próprio, abundantemente registrado por muitos fotógrafos do acervo do IMS. Essa multiplicidade, motivo principal de sua riqueza, convida a abordar as visualidades do carnaval como assunto independente, objeto possível de outro projeto de pesquisa, não contemplado nesta edição da Bolsa.
Entretanto, a abrangência do carnaval é tal, que outras expressões fotografadas por Maureen e Gautherot, como os diversos afoxés, o maracatu, o frevo, que tem uma existência, por assim dizer, independente, fazem parte também do “ritual” do carnaval.
Ponto de Partida
Em todas as épocas, o desconhecimento dos modos de vida e dos costumes de outros povos tem gerado preconceitos, suspeitas e desconfianças de que resultam as divergências que degeneram em guerras. Ainda hoje, a ignorância ou a incompreensão podem levar a fricções perigosas. As causas do desentendimento não são apenas de ordem política, muitas vezes também são econômicas, raciais e culturais. Para edificar uma paz duradoura, devemos primeiro compreender todos os fatores que produzem os estados de tensão e procurar eliminá-los.1
O Instituto Moreira Salles tem o privilégio de possuir em seu acervo uma vasta coleção fotográfica de manifestações culturais oriundas de comunidades indígenas, afro-brasileiras e de outros povos formadores de nosso país. Cerca de 9500 itens, entre fotografias individualizadas, folhas de contatos e de cromos, que registram práticas, rituais, saberes e festividades de diversas regiões do país constam atualmente no banco de dados da instituição.
Esse conjunto heterogêneo, produzido por olhares distintos com propósitos também variados, revela o país como ele é: enorme, plural, resistente, desigual, constituído por gentes de matrizes étnicas e culturais diversas. A longevidade de várias de suas manifestações culturais, de algumas há registros que remontam ao século XVII, é prova de sua capacidade de resistência, de sua potência cultural e de sua atualidade.
O reconhecimento pelo Estado do valor da cultura, de forma geral, e das manifestações imateriais, especificamente, está inscrito no próprio texto da Constituição Federal Brasileira, promulgada em 1988 e até hoje vigente. Inserido no artigo 215, que trata dos direitos culturais, o inciso primeiro sem rodeios atribui ao Estado a proteção das “manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das expressões de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”. O artigo 216, por sua vez, reconhece como patrimônio imaterial “os modos de criar, fazer e viver” dos “diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”.
A fim de implementar ações de salvaguarda e de registro desses modos tradicionais de fazer e de viver, reconhecidos por sua diversidade e por seu caráter constitutivo da sociedade brasileira, em agosto de 2000, por decreto presidencial, foram instituídos o Programa Nacional de Patrimônio Imaterial (PNPI) e o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial. Essas ações serviram de referência para a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, promovida pela Unesco em 2003, em vigor até hoje.
Em 2020, trinta e dois anos depois da promulgação da Carta Magna, o Brasil assiste entre apavorado, indignado e incrédulo ao que parece ser um programa oficial de destruição, que não tem precedentes em nossa história. Ataques e ameaças à liberdade de expressão, às populações vulneráveis, em especial às indígenas e de origem africana, às instituições de guarda e de memória, a reconhecidos agentes da arte e da cultura, só para ficarmos no âmbito cultural, existiram em diversos momentos da história, e alguns foram brutais. Mas nunca estivemos diante de uma política que parece buscar, por método e por prazer, a devastação cultural do país. Muito menos quando promovida pelo próprio Estado brasileiro e por seus agentes credenciados.
O momento atual fica ainda mais turvo devido à epidemia que assola o mundo desde o início de 2020. Curiosamente, para salvaguardar vidas, o vírus nos obriga ao isolamento, e à suspensão de qualquer tipo de aglomeração. As manifestações culturais populares, as festividades, os folguedos, as procissões, em sua maioria se desenvolvem no espaço público; por natureza, causam aglomerações. Por essa ameaça potencial, em 2020, várias das manifestações consideradas patrimônio imaterial brasileiro, algumas em atividade ininterrupta há mais de 200 anos, foram canceladas, adiadas, ou tiveram de mudar algumas de suas características fundamentais para adaptar-se aos tempos online.
A morte de mais de oitocentos indígenas por Covid-19, entre os quais diversos anciões e lideranças fundamentais, como os caciques Aritana Yawalapiti, do Alto Xingu, Amâncio Munduruku e Paulinho Payakan, dos Kayapó, guardiões por excelência da história de suas tribos e territórios, deixou ainda mais patente a fragilidade em que se encontram nossos povos ancestrais.
Neste momento crítico do país, é mais do que nunca necessário buscarmos estratégias que contribuam para o fortalecimento de todas as formas de expressão cultural, e sobretudo daquelas cujos saberes e tradições estão vitalmente ligadas a grupos étnicos, sociais e culturais que hoje se encontram em risco.
Registros visuais do patrimônio imaterial (um resumo a voo de pássaro)
Relatos históricos, memorialísticos ou literários de ritos, práticas e saberes indígenas existiram praticamente desde que os primeiros viajantes europeus se aventuraram por estas terras. O reconhecimento de seu valor enquanto bem cultural, assim como o das manifestações produzidas pelos povos de origem africana, e por outros grupos sociais tradicionalmente excluídos, por parte das esferas intelectuais e governamentais, é contudo muito mais recente.
Desde o século XVII, viajantes estrangeiros em missões científicas ou culturais ao país produziram registros iconográficos de manifestações culturais de matrizes africanas e indígenas. O frontispício de Historia Naturalis Brasiliae, de Willem Piso e Georges Marggraf, publicado em Amsterdam em 1648 representa, ao fundo da cena, um ritual indígena. Ainda durante o período holandês, Frans Post, e Zacharias Wagener registraram em suas obras danças de origem africana2. Seu contemporâneo Albert Eckhout, por sua vez, elaborou uma conhecida pintura tendo por tema a Dança ritual dos índios Tapuias3.
Da mesma forma, Jean-Baptiste Debret e Augustus Earle e João Mauricio Rugendas, já na primeira metade do século XIX, entre outros, tornaram visível o cotidiano escravista da Corte, e mostraram como nele se inseriam práticas africanas como a capoeira, o batuque e as congadas4. Em aquarelas e desenhos, estes e outros viajantes, como Maximilian Wied-Neuwied5, também documentaram, ainda que de forma idealizada, não apenas tipos indígenas e artefatos de algumas tribos brasileiras, mas festividades e rituais.
Seja por limitações técnicas nas primeiras décadas de vida, seja pela crença na superioridade da produção cultural europeia, ou ainda estimulada pela criminalização republicana das expressões culturais de origem africana, a fotografia oitocentista no Brasil não elegeu as manifestações oriundas de culturas não europeias como objeto de sua investigação.
Diversos fotógrafos, em sua maioria estrangeiros, produziram retratos de pessoas negras, indígenas e mestiças, em sua maioria representados como tipos, figuras exóticas ou, no caso das populações escravizadas ou recém libertas, contextualizadas em sua função no trabalho: “vendedor”, “ama de leite”, “colhendo café” etc. Poucas e raras exceções se encontram nas fotografias “Congada”, do pintor e fotógrafo Arsênio da Silva, cerca de 1860, e “Congada dos Pretos em Moro Velho”, de Augusto Riedl, realizada em 1868 durante a Viagem do Duque de Saxe e seu irmão D. Luís Philippe ao interior do Brasil. Ambas se encontram no acervo da Biblioteca Nacional. Outra exceção é a das fotografias realizadas pelo alemão Albert Frisch em sua viagem à Amazônia em 1867, que retrata indígenas em seu habitat natural.
Manifestações culturais indígenas, afro-brasileiras, e populares começaram a aparecer a partir das últimas décadas do século XIX, na literatura e na ensaística, impregnadas pelo espírito romântico ou cientificista, por sua vez imerso no tema da identidade nacional.
Alguns textos como As bellas-artes nos colonos pretos no Brazil: a esculptura, do médico maranhense Nina Rodrigues, publicado na Revista Kosmos em 1904, lançaram mão de fotografias como forma de registro e de ilustração.
Mas não será antes do movimento modernista nos anos 1920 e, sobretudo, graças Mário de Andrade, que o interesse pelo Brasil popular será traduzido em ações de documentação fotográfica. Macunaíma, um dos maiores romances brasileiros, não existiria sem as pesquisas do autor sobre folclore, tradições culturais, antropologia e etnografia, que começam a tomar forma em nosso meio cultural. As viagens do escritor entre 1927 e 1929 para as regiões Norte e Nordeste, registradas em diários intitulados O Turista Aprendiz, foram acompanhadas de fotografias de sua autoria.
A Missão de Pesquisas Folclóricas, em 1938, também ao Norte e Nordeste, nascida dentro do Departamento de Cultura da Cidade de São Paulo, durante a gestão do próprio Mário de Andrade entre 1935 e 1938, constituiu um riquíssimo registro em áudio, fotografia e filme de cunho etnográfico.
Nas palavras de Maria Inez Turazzi, foi precisamente Mário de Andrade quem “instaurou no SPHAN o que poderíamos chamar de uma política de documentação fotográfica das manifestações culturais, históricas e artísticas, populares e eruditas, edificadas e não edificadas que constituíam a identidade do Brasil e, por conseguinte, formariam através da iconografia uma visão do seu patrimônio”6.
De fato, foi somente a partir da criação do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) em 1937, cuja primeira proposta foi elaborada pelo próprio Mario de Andrade, que teve início uma política nacional de preservação do patrimônio cultural, que incluía as manifestações da cultura popular, do folclore e de comunidades tradicionais, embora tivessem menos peso que o patrimônio edificado. Essa política de preservação compreendia a “política de documentação fotográfica”, mencionada por Turazzi.
Obviamente que esse movimento estava alinhado, e foi alimentado, por outros contextos contemporâneos, como o surgimento dos cursos acadêmicos de Ciências Sociais nos anos 1930 nas universidades brasileiras, sobretudo na recém criada Universidade do Estado de São Paulo (USP); a presença de pesquisadores e professores estrangeiros com formação em antropologia, etnografia, história nessas universidades, e a atuação de intelectuais brasileiros interessados no então denominado folclore e cultura afro-brasileira, como Edson Carneiro, Câmara Cascudo, Gilberto Freyre, Artur Ramos, entre outros.
Sobre o registro de manifestações afro-brasileiras, é importante lembrar sumariamente de iniciativas como o I Congresso Afro-Brasileiro, no Recife, em 1934, organizado por Gilberto Freyre e Ulysses Pernambucano. Embora o CAB apresentasse uma proposta bastante arrojada para a época, e fosse apoiado por diversos agentes da cultura negra, está sendo ressignificado atualmente à luz da crítica contemporânea ao mito da democracia racial, que Freyre e outros participantes do CAB contribuíram para construir.
Contemporâneas a esse movimento foram as pesquisas realizadas pela antropóloga norte-americana Ruth Landes sobre o candomblé na Bahia, em 1938 e 1939. O trabalho de campo de Landes produziu uma rica e rara documentação fotográfica, atualmente nos arquivos do Smithsonian National Museum of Natural History, em Washington, Estados Unidos. Apesar do pioneirismo e da importância de sua reflexão, sua pesquisa foi violentamente atacada por seus colegas brasileiros e norte-americanos, por afirmar o predomínio feminino e a participação de homossexuais no candomblé baiano.
Em relação à cultura indígena, vale mencionar os registros fotográficos e cinematográficos produzidos pelo Serviço Fotográfico e Cinematográfico da Comissão Rondon, entre 1917 e o final dos anos 1930. De acordo com o fotógrafo e professor Fernando De Tacca, Rituaes e Festas Bororo, de 1917 se destaca dos outros filmes realizados pelo Major Luiz Thomaz Reis por sua narrativa e objeto de documentação serem “o próprio índio com suas práticas tradicionais”7.
Cerca de vinte anos depois, em 1935, o antropólogo Claude Levi Strauss e a etnóloga Dina Dreyfus, com quem era casado então, integrantes da primeira leva de professores vindos da França para lecionar na USP, registraram novamente os Bororo em seus rituais, em filmes e fotografias. Sua viagem ao Mato Grosso foi em parte financiada pelo Departamento de Cultura da Cidade de São Paulo, dirigido por Mário de Andrade.
O término da Segunda Guerra acordou o mundo para a possibilidade real da destruição em massa. A Unesco foi criada em 1946, tendo entre outros o propósito de promover a salvaguarda dos bens culturais e da memória coletiva. Em 1947 foi criada, no Brasil, a Comissão Nacional do Folclore, ligada inicialmente à Unesco e ao Ministério das Relações Exteriores, que reuniu intelectuais e pesquisadores em prol da promoção de ações e políticas para a salvaguarda, registro e difusão das expressões culturais populares. O grupo de intelectuais que atuou na CNF ficou conhecido como Movimento Folclórico Brasileiro.
Desse movimento resultou, inicialmente a Semana Nacional do Folclore e, de forma mais estruturada, a Campanha da Defesa do Folclore Brasileiro, em 1958, primeiro órgão permanente dedicado à preservação das manifestações culturais populares. Três anos depois Revista do Folclore Brasileiro, em 1961, que constituíram uma importante documentação visual, fotográfica e iconográfica, em âmbito nacional. Da revista participaram artistas plásticos como Carybé e Percy Lau, e o fotógrafo francês Marcel Gautherot, que assinou diversas capas.
Fora do âmbito institucional, mas com amplo poder de inserção social, a imprensa, e mais especificamente a revista O Cruzeiro, foi veículo importante para o registro e difusão de expressões culturais populares no Brasil a partir dos anos 1940. Uma das consequências da revolução ocasionada pela chegada do fotógrafo francês Jean Manzon à revista, em 1943, foi a introdução de um olhar para o “Brasil profundo”, que produziu uma profusão de imagens espetaculares de cerimônias afro-brasileiras e de manifestações do folclore do interior do país.
Um dos primeiros ensaios fotográficos nessa linha foi realizado por Edgard Medina, em 1944, sobre a gira de umbanda, no terreiro “Caboclo Cobra Coral”. Uma nota da redação sobre a foto de abertura da matéria, explica que as imagens foram realizadas durante a cerimônia e surpreendiam a macumba “em pleno funcionamento”, anunciando o fato como inédito.
O fotógrafo francês Pierre Verger estreou na revista em 1946, com uma reportagem sobre a festa popular de Nossa Senhora do Carmo, em Paucartambo no Peru, e texto de Vera Pacheco Jordão. No ano seguinte, a revista promoveria uma série de reportagens no nordeste brasileiro sobre folguedos, práticas populares e festas religiosas, iniciada com o fandango em Alagoas, com imagens do piauiense José Medeiros. Mas o grande astro da fotografia das expressões da cultura popular nordestina, em O Cruzeiro, como a capoeira, o frevo, o maracatu, o afoxé, será sem dúvida Pierre Verger.
Seu conterrâneo e amigo Marcel Gautherot também assinou nesse período algumas reportagens na revista, com destaque ao ensaio sobre as Carrancas do Rio São Francisco.
O importante a destacar aqui é a transformação que as imagens sobre expressões culturais populares sofreram em O Cruzeiro, tanto por seu elaborado tratamento plástico, como por seu afastamento da função estritamente documental vinculada à pesquisa e à preservação. Na revista, cada imagem era parte de um conjunto que integrava um ensaio visual. A construção dessas imagens, em pleno acontecimento exigia uma grande interação entre o fotógrafo e o universo a retratar.
Talvez seja Pierre Verger quem mais longe levou essa relação de integração partir da fotografia com o universo cultural afro-brasileiro e africano, ao tornar-se, não apenas um estudioso profundo da diáspora africana, de sua cultura, como parte integrante dela, ao iniciar-se como babalaô e, posteriormente, como oju-obá no terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, em Salvador.
Ainda como antecedente relevante neste processo de reconhecimento, preservação e documentação visual das expressões culturais imateriais no Brasil merece ser citado o Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC), criado em 1975 pelo designer pernambucano Aloisio Magalhães. Ele foi talvez o primeiro a definir a cultura popular e imaterial brasileira enquanto motor de desenvolvimento social e econômico. Para Magalhães, o “produto brasileiro” era antes de tudo os bens culturais produzidos por comunidades tradicionais.
A documentação de saberes brasileiros foi um dos pilares da atuação do CNRC. Por isso, o lugar da fotografia nas pesquisas, quem, o que e como fotografar, a relação entre pesquisador e fotógrafo, foram assuntos amplamente debatidos pelas equipes do Centro. O vasto arquivo documental e fotográfico produzido entre 1975 e 1979 encontra-se no Arquivo Central do IPHAN em Brasília.
Patrimônio imaterial no acervo fotográfico do IMS
À exceção das fotografias de carnaval no Rio de Janeiro, de autoria de Guilherme Santos, a mais antiga datada de 1915, e de algumas fotos da festa em Salvador, de autor anônimo nos anos 1910, praticamente inexistem registros fotográficos produzidos durante o século XIX e as duas primeiras décadas do século XX de manifestações culturais populares, urbanas ou rurais, no acervo do IMS.
Os conjuntos mais antigos de festas e expressões populares datam dos anos 1940. Dentre eles, o mais significativo em termos de quantidade, e de abrangência temática e geográfica, tem a assinatura do fotógrafo francês Marcel Gautherot (1910-1996). Dos 25 mil fotogramas no acervo do IMS, realizados por Gautherot, todos no Brasil, mais de 6000 documentam festas, saberes, rituais e tradições culturais em várias regiões do país.
Outro conjunto fotográfico relevante sobre as expressões culturais populares e as tradições ancestrais pertence à inglesa Maureen Bisilliat (1931-). São cerca 2400 imagens digitalizadas, das 16 mil que estão sob a guarda do IMS, realizadas em sua maioria nas décadas de 1960 e 1970, também em diversas regiões do Brasil.
Boa parte obra de Gautherot foi produzida no âmbito de programas institucionais governamentais voltados para a salvaguarda cultural. Foi um dos fotógrafos profissionais contratados pelo SPHAN, nos primeiros anos de atuação desse órgão. Posteriormente, nos anos 1950 e 1960, participou da Campanha pela Defesa do Folclore Nacional e da Revista do Patrimônio.
Embora seu trabalho sempre tenha estado vinculado à documentação dos bens materiais e imateriais brasileiros, suas imagens parecem distanciar-se radicalmente das fotografias produzidas com finalidade etnográfica ou de documentação patrimonial até então produzidas, pela inegável força plástica, também presente em suas fotografias do patrimônio edificado. Vários autores já ressaltaram a influência da formação arquitetônica de Gautherot em suas fotografias.
Mas, à diferença da imobilidade dos prédios e das ruas, as expressões populares que ele registrou são dinâmicas; em geral não possuem um foco único; se desenrolam no meio da multidão. Gautherot fotografou no próprio calor dos acontecimentos, sem chance de repetir a cena. Essa situação particular, onde é impossível dominar o objeto a ser fotografado, convida a pensar não somente nos recursos que o autor utilizou para registrar o seu assunto, mas até que ponto o resultado dessas fotografias foi permeado pelas expressões culturais que pretendia documentar. Foi muito amigo de Pierre Verger. Entre os dois franceses há um diálogo inegável de linguagens que merece ser aprofundado.
Maureen Bisilliat também fez de sua fotografia “uma investigação fotográfica da alma brasileira”8. Sua obra se constitui em diálogo com as culturas indígenas, afro-brasileiras e do interior do Brasil, e com autores de nossa literatura, e inclui ainda ensaios de suas viagens a diversos países, entre os quais China, Líbano e Costa de Marfim.
Estudou pintura em Paris e em Nova York. Radicou-se no Brasil em 1957 e, em 1962, optou por dedicar-se integralmente à fotografia. Trabalhou como fotojornalista para as revistas Realidade e Quatro Rodas, graças às quais literalmente “rodou o Brasil”. Na década de 1970 envolveu-se de forma intensa com a cultura indígena do Xingu, e com o trabalho de indigenistas e antropólogos, entre eles os irmãos Villas-Bôas. Mais tarde, convidada por Darcy Ribeiro, trabalhou na formação do acervo de arte popular latino-americano da Fundação Memorial da América Latina.
Assim como Gautherot, Bisilliat, também europeia, demonstra um interesse profundo pela cultura popular. Eles compreendem as manifestações culturais inseridas num sentido amplo de territorialidade formada pelas interações entre o espaço, seus habitantes, suas formas de sobrevivência, suas expressões simbólicas e materiais. Os livros Bahia: Rio São Francisco, Recôncavo e Salvador, organizado por Lélia Coelho Frota, com fotografias de Gautherot, e 1995, e Xingu Terra e Sertões, de Maureen, editados por ela mesma, traduzem bem como os dois autores se valeram da fotografia para compreender e comunicar-se profundamente com as realidades escolhidas.
Ambos também são editores de seu próprio trabalho. A partir de 1986, Gautherot se dedicou a organizar seu arquivo. Maureen, por sua vez, publicou desde os anos 1960 seus próprios projetos fotográficos e foi curadora de suas exposições.
As imagens de Bisilliat, contudo, contrastam com as de Gautherot não só por seu colorido vibrante, onde talvez se evidencie seu passado pictórico, mas pela ênfase na força feminina manifesta em muitas das expressões culturais populares por ela fotografadas.
Entre os dois há vinte anos de diferença. Gautherot chegou ao Brasil durante a ditadura do Estado Novo e sua carreira foi construída dentro da teia institucional oficial. Maureen, por sua vez, elaborou parte significativa de sua obra no período da ditadura militar brasileira, à margem contudo das instâncias governamentais. Embora tenham sido contemporâneos, é evidente que os contextos de produção de cada obra são bastante diferentes, e vale a pena serem analisados.
Embora as obras de Gautherot e Bisilliat tenham sido objeto frequente de pesquisas, dentro e fora do IMS, isoladamente, ao que parece não há estudos que busquem estabelecer uma relação das duas visões de mundo entre si e, de ambas, em torno da cultura popular.
Pesquisar as equivalências possíveis entre as duas obras, para utilizar um conceito empregado por Maureen para pensar a relação entre sua fotografia e obras seminais de nossa literatura, implica igualmente colocar na mesa as tensões entre seus modos de ver e de imaginar as expressões culturais que chamamos de imateriais.
Além de Gautherot e Bisilliat, outros fotógrafos no acervo do IMS, como José Medeiros, Thomas Farkas, Walter Firmo, Jorge Bodansky e, em especial Mário Cravo Neto, que será objeto de uma grande retrospectiva no IMS Paulista ainda em 2020 e no Rio de Janeiro, em 2021, também produziram conjuntos relevantes sobre as expressões da cultura imaterial brasileira.
A fim de oferecer mais referências para a pesquisa, o bolsista poderá consultar conjuntos desses autores na base de dados do IMS.
1 Tradução livre do texto original: De tous temps, l´ignorance du mode de vie et des coutumes des autres peuples a été la cause des préjugés, des soupçons et de méfiance d´où résultent des diferends qui dégénèrent en guerres. Aujourd´hui encore l´ignorance ou l´incompréhension en ce domaine risque d´amener des dangereuses friccions. Les occasions des désaccord ne sont pas toutes d´ordre politique; elles sont souvent aussi d´ordre économique, racial et culturel. Pour édifier una paix durable, il faut dábord comprendre tous les facteurs qui produisent des états de tension et chercher à les eliminer. In Acte constitutif de l´Unesco. Citado por Soares, Ana Lorym. Revista Brasileira de Folclore: intelectuais, folclore e políticas culturais (1961-1976), Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2010.
2 Tratam-se das pinturas de Frans Post A morada de um “lavrador” (plantador de cana de açúcar) no Brasil, anteriormente denominado “A vila de Serinhaem”, Pernambuco” (INV 1722, Museu do Louvre), Paisagem Brasileira com Nativos Dançando e Capela, c. 1660 (coleção privada, Nova York) e a gravura de Zacharias Wagener Negros dançando ao som de tambores e instrumentos de cordas, extraída de Thier Buch. 1641, no Kabinet des Staatlichen Kunstsammlungen, em Dresden, Alemanha.
3 No Museu Nacional da Dinamarca. Possivelmente, os Tapuias de Eckhout, denominação não utilizada atualmente, fossem os Tarairiu, aliados dos holandeses na guerra contra os portugueses. (fonte: https://ensinarhistoriajoelza.com.br/indios-brasileiros-retratados-por-um-holandes/ - Blog: Ensinar História - Joelza Ester Domingues).
4 Ver, por exemplo, Debret: Marimba. Promenade du dimanche après midi, aquarela, 1826, Museus Castro Maya, Rio de Janeiro; Rugendas, Préstito popular no Rio de Janeiro, 1847-50, lápis e guache sobre papel, Museu Republicano Convenção de Itu, SP; “Festa de N. Senhora do Rosário, gravura, c.1835.
5 August Seyffer e J. P. Bittheuster (sculp.) e Maximilian Wied-Neuwied. Dança Camacan, gravura. Ilustração de Kupfer und Karten, 1815
6 Turazzi, op.cit, p. 14
7 TACCA, Fernando de. Rituaes e festas Bororo: a construção da imagem do índio como "selvagem" na Comissão Rondon. Rev. Antropol. [online]. 2002, vol.45, n.1, pp.187-219. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-77012002000100006&lng=en&nrm=iso>. ISSN 0034-7701. http://dx.doi.org/10.1590/S0034-77012002000100006
8 https://ims.com.br/2017/06/01/sobre-maureen-bisilliat/
Fontes para o projeto
Hemeroteca Digital Brasileira
https://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/
No IMS
Marcel Gautherot: gautherot.ims.com.br
Maureen Bisilliat: maureen.ims.com.br
Revista Fotoptica: revistas.biblioteca.ims.com.br/fotoptica
Links com imagens de referência
Sertão (Gutherot)/ Sertões(Bisilliat)
Bom Jesus da Lapa - Rio S. Francisco
Xingu (Bisilliat)/Karajás (Gautherot)
Salvador/Festa do N.S do Bonfim/Lagoa do Abaeté/Capoeira/Baianas
Outras referências bibliográficas
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