Uma grande leitora de poesia
24 DE AGOSTO DE 2021 | Eucanaã Ferraz
Marlene de Castro Correia pautou sua longa vida acadêmica distante das exigências de órgãos de fomento que passaram exigir “produtividade” a qualquer custo. Na verdade, sua geração não assistiu a um estado da vida universitário que transformou o conhecimento numa obrigatoriedade burocrática, conquistada numa espécie de chantagem na qual estão em jogo bolsas de estudo e de pesquisa, financiamento de grupos de estudos e de publicações etc.
Assim, Marlene seguiu fiel a seu modo de ser: discreta, rigorosa, exata. Seu rigor – demasiado quando era ela mesma o objeto de suas exigências – explica, por exemplo, sua obra crítica pouco volumosa, e, assim, em desacordo com sua amplidão intelectual. Mas sua presença no mundo universitário, e literário, é gigante. E sua principal atividade foi, sem dúvida, o magistério.
A poesia estava no centro de sua atenção. No seu coração, para ser mais exato. E o lugar de destaque coube a um de seus grandes amigos: Carlos Drummond de Andrade.
Sua carreira teve início em 1955, na Faculdade Nacional de Filosofia, onde deu aulas de Literatura Espanhola até 1966 – a Espanha e os autores espanhóis eram paixões recorrentes em suas conversas. No ano seguinte, passou a lecionar Literatura Brasileira, com atenção especial à poesia e a seus autores de eleição: Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Manuel Bandeira, Mário de Andrade, João Cabral de Melo Neto – uma precursora dedicação à literatura de cordel – e, sempre, Carlos Drummond de Andrade. acabaria por exigir uma concentração cada vez maior. Para sorte e privilégio de seus alunos, Marlene engendrou um pensamento sólido e original em torno da lírica drummondiana – dramática e trágica, como ela sublinhava – levando-o ao diálogo na sala de aula, difundindo-o generosamente, criando novos leitores e novas leituras.
Leitura de "A flor e a náusea", de Drummond, por Marlene de Castro Correia, no filme Consideração do poema (2012)
Em 2015, organizei uma reunião de seus ensaios sobre a poesia de Drummond, publicada pelo IMS com título Drummond: jogo e confissão. Na apresentação do volume, anotei: “Tive muitas vezes a feliz oportunidade de acompanhar como aluno esse pensamento em voz alta, que se expressava com a eloquência encantadora dos apaixonados e com a justeza dos que manipulam a balança analítica e zelam pelo equilíbrio de tudo o que está em jogo; “paixão medida”, portanto; pensamento empenhado, que ia buscar a si mesmo em fichas, anotações, cadernos, nas margens dos livros, e que se projetava tanto na fala quanto na escuta generosa, sempre ponderada e nunca transigente com a tolice ou a presunção, porque o prazer autêntico não encontra ocasião para condescender com aquilo que o amolece, que lhe tira o vigor, enfim, com o seu oposto: o desprazer.”
Marlene faleceu hoje, na manhã de 24 de agosto, terça-feira. É tristíssimo perder uma amiga. É um vazio para nós todos perdermos uma grande leitora de poesia neste “tempo de partidos, tempo de homens partidos”. Marlene era sólida. Um tanto de ferro em sua integridade, eu diria; exatamente como seu amigo mineiro.
Eucanaã Ferraz é poeta e consultor de literatura do Instituto Moreira Salles (foto de Ana Carmo)
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