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Pasárgada ou Imbituba?

8 de setembro DE 2021 |
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Original datilografado do poema de Paulo Mendes Campos. Presenteado a Bandeira, o documento está na Fundação Casa de Rui Barbosa, que guarda o acervo do poeta

“Não diga Passárgada, é Pasárgada”, advertia Manuel Bandeira a Mário de Andrade em carta de 6 de janeiro de 1930 a respeito do som de z e não de s.

A preocupação do poeta de "Vou-me embora pra Pasárgada" era não só legítima como talvez persistisse até hoje, se vivo fosse para ouvir os que teimam em sibilar o s dessa palavra encantatória. Mais do que preocupado, ele certamente se espantaria de ouvir, como eu ouvi, uma senhora adotar a pronúncia mais improvável, ignorando, não se sabe por quê, o acento agudo sobre a segunda sílaba: ela dizia Pasargada, de boca bem aberta, fazendo do ga a sílaba forte, como em na de patronato, em te de cinemateca ou em mi de camomila, paroxítonas óbvias da língua portuguesa. A mulher tinha o agravante de ser pernambucana como o poeta, o que torna o erro ainda mais inaceitável.

Por ocasião da carta enviada a Mário de Andrade, o autor do poema lançava Libertinagem, sua quarta coletânea de versos, de que faz parte o “Vou-me embora...”, cuja origem está contada em alguns momentos da prosa bandeiriana. Antes mesmo de narrá-la na autobiografia literária, Itinerário de Pasárgada (1958), ele a contou na crônica “Pasárgada”, de 1956. Declara que o nome dessa cidade da antiga Pérsia, hoje o Irã, o seduzira desde os 15 anos, quando o ouviu pela primeira vez numa aula de grego, no Colégio Pedro II, ao fazer a tradução da biografia de Ciro, o Grande. Trintão, quando passou a morar na antiga rua do Curvelo, hoje rua Dias de Barros, em Santa Teresa, num momento de profundo desânimo saltou-lhe do inconsciente o que ele chamou de “grito de evasão”: “Vou-me embora pra Pasárgada”, e ele sentiu aí a célula de um poema. Passados mais uns cinco anos, a composição lhe veio inteira: “Não construí o poema; ele construiu-se em mim nos recessos do subconsciente, utilizando as reminiscênicas da infância”, confessou em “Biografia de Pasárgada”.

Daí em diante sabe-se que ele seria consagrado o Poeta de Pasárgada, e faria para sempre parte do reino onde depositou as lembranças mais caras e os melhores sonhos. O nome da cidade iraniana, hoje um sítio arqueológico, fugiu-lhe do controle: aqui no Brasil houve corretor que deu o nome de Pasárgada a um loteamento no Estado do Rio, apareceu grã-fino que assim nomeou seu iate, além de outros nem tão grã-finos que deram o nome a pequenas propriedades. A popularidade de Pasárgada difundiu-se a tal ponto que, certo dia, o poeta, manifestando estranhamento ao encontrar uma conhecida sua no elevador de uma certa instituição, ouviu dela a seguinte justificativa: “Tenho aqui uma Pasargadazinha...”.

Entre seus pares, Bandeira inspirou não só admiração e vários estudos, como até paródia. Foi o que aconteceu com Paulo Mendes Campos, que, em 1945, aos 23 anos de idade, dedicou-lhe “Vou-me embora pra Imbituba”. Segundo o poeta e cronista mineiro, “é um portozinho de Santa Catarina” que ele visitara poucos anos antes. Situada no litoral sul de Estado, fica a 90km da capital, Florianópolis e, em tempos de pandemia guarda algo de paraíso, além da praia: há registros de não mais que um punhado de casos de Covid entre os seus 50 mil habitantes.

Vou-me embora pra Imbituba
– Pasárgada eu não achei –
Lá não tem muitas mulheres
Com umas três me arranjarei
Vou-me embora pra Imbituba

O tom da paródia é, no entanto, oposto ao original. Enquanto em Pasárgada o poeta pernambucano se livrará de todas as frustrações e realizará tudo o que lhe fora proibido: “e como farei ginástica/ Andarei de bicicleta,/ Montarei em burro brabo/ Subirei no pau de sebo/ Tomarei banhos de mar!”, o mineiro não se livra do desalento. Na paródia não há evasão, e sim desespero incontornável. A cidade não o recompensará. Diferentemente de Pasárgada, que “tem tudo”, Imbituba só lhe oferece nostalgia

Vou-me embora pra Imbituba
Pra morrer de nostalgia
Vou tomar porres terríveis
De fazer com que seu vigário
Convoque a Congregação

Se, tomado de tristeza, o poeta de “Vou-me embora pra Pasárgada”, consolava-se com a certeza de que “– Lá sou amigo do rei –/ Terei a mulher que eu quero/ Na cama que escolherei”, o desesperançoso poeta de Imbituba, nas mesmas circunstâncias, é assaltado por um pensamento trágico:

Mas se a tristeza aumentar
E não se der um jeitinho
Se numa noite a tristura
De todo trepadeirar
Eu não sei se aguentarei
Caminharei para a praia
Mar adentro me entregarei

Talvez volte talvez não

Paulo Mendes Campos escreveu o poema no mesmo ano em que se mudou de Belo Horizonte para o Rio de Janeiro. Aqui se aproximou de Manuel Bandeira e, ao lado de Fernando Sabino, convenceu o pernambucano a escrever suas memórias. Memórias literárias, vale lembrar, porque sendo ele “ferozmente discreto”, como o definiu Augusto Frederico Schmidt, não revelaria experiências além das literárias, apenas brevíssimas referências a uma ou outra circunstância da vida. O relato resultou no Itinerário de Pasárgada, já mencionado aqui, em que, lá pelas tantas, lê-se: “Confesso que já me vou sentindo bastante arrependido de ter começado estas memórias. Fi-lo a instâncias de Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos”.

O arquivo de Paulo está sob a guarda do IMS, enquanto o de Bandeira é o conjunto fundador do Arquivo-Museu de Literatura (AMLB) da Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB). Em ambos há indícios da amizade entre os dois poetas e cronistas: uma versão do poema de Bandeira, “Ubiquidade”, cujo título original era “Estás”, em autógrafo do autor, foi encontrado no arquivo de Paulo, no IMS, e sobre ele escrevi em 2012, quando se fez o achado. É um poema que Edson Nery da Fonseca rezava toda noite, quando ouvia o sino da igreja de Olinda bater seis horas. “Vou-me embora pra Imbituba” foi localizado no AMLB, graças aos esforços de funcionários da instituição que se empenharam em digitalizá-lo nos restritos horários de funcionamento impostos pela pandemia.

Rosto de Elvia Bezerra, coordenadora de Literatura do IMS, visto de perfil

Elvia Bezerra é pesquisadora de literatura brasileira e colaboradora no IMS