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O clique perfeito de Erno Schneider

9 de março DE 2022 |

 

Jânio Quadros com as pernas enroscadas. O registro de Erno Schneider, um dos mais icônicos do fotojornalismo brasileiro, ganhou o Prêmio Esso de Fotografia em 1962

 

O leitor pode não ter ouvido nunca o nome de Erno Schneider, mas certamente conhece uma foto dele. Não qualquer foto. O registro do presidente Jânio Quadros olhando para trás, com pernas enroscadas, quase uma metáfora de seu próprio desconcerto como político e o do país naquele abril de 1961, é uma das mais icônicas do fotojornalismo brasileiro. Rendeu a Erno, então trabalhando no Jornal do Brasil, o Prêmio Esso de Fotografia, o mais importante da área na época, e um lugar de honra da seleção dos melhores da profissão.

Morto na segunda-feira 7/3 aos 86 anos, no Rio de Janeiro, Erno é um dos 40 fotógrafos convidados do site Testemunha Ocular, cujo lançamento pelo Instituto Moreira Salles está previsto para abril. Concebido pelo jornalista Flávio Pinheiro, diretor executivo do instituto de 2008 a 2020, o site tem o objetivo de difundir o acervo de fotojornalismo do IMS e de reunir fotojornalistas de diversas gerações, atuando nas cinco regiões do país e no exterior.

 

Erno Schneider é um dos 40 fotojornalistas convidados para integrar o site Testemunha Ocular, que será lançado pelo IMS

 

O nome de Erno surgiu praticamente junto com a ideia do site, puxado pela famosa foto. "Considero a foto do Jânio Quadros a mais icônica imagem do fotojornalismo brasileiro", diz Flávio. "É um momento de sorte, como todo fotógrafo precisa ter – um clique só, não tem uma série, é um relato visual em si, não precisa de legenda. Mas o que acho impressionante é que ela não capta apenas a figura, a fisionomia do Jânio Quadros. Ela capta a personalidade, a incerteza, o impasse que ele vivia. Ele renuncia em agosto, alguns meses depois do registro."

Erno nasceu em 1935 na cidade de Feliz, Rio Grande do Sul. Mudou-se com a família, ainda criança, para Caxias do Sul, onde aprendeu a fotografar no jornal O Pioneiro. Aos 17 anos foi para Porto Alegre. Lá, trabalhou no jornal O Clarim, de Leonel Brizola. Em 1960 chegou ao Rio de Janeiro, onde fez fotos para a revista Manchete, o Diário da Noite e o Jornal do Brasil.  Criou em 1965 o Departamento de Fotografia do jornal Correio da Manhã. Mais adiante, foi editor de Fotografia do jornal O Globo.

O site Testemunha Ocular traz a foto de Jânio, feita para o JB, e mais 19, todas produzidas em sua passagem pelo Correio da Manhã. "Vamos ter no site uma fração do trabalho do Erno, mas uma fração muito relevante, o período no Correio da Manhã é de fotos muito importantes e emblemáticas, talvez tenha sido o período mais produtivo dele como fotógrafo", diz Flávio.  O acervo de fotografia do jornal carioca, cerca de 1,8 milhão de imagens, está no Arquivo Nacional, e Flávio contou com a ajuda de Maria do Carmo Rainho, pesquisadora da instituição, para levantar 35 fotografias. Selecionou 19, que foram levadas para Erno, já doente, por um amigo próximo a ele, Bertholdo de Castro. Erno avalizou a escolha e elaborou, com Bertholdo, as legendas que as acompanham. É de Bertholdo o texto abaixo, escrito em dezembro de 2021 para ser publicado na seção Imagem Pensada do site Testemunha Ocular.

 

Fração de segundos

por Bertholdo de Castro

Lado a lado, quase colados, os dois homens caminham pela ponte. Um a frente, outro mais atrás. O primeiro, vê adiante; o segundo o enquadra na lente da Rolleiflex. De repente, um barulho. O presidente assusta-se. Vira o rosto para a esquerda, enrosca as pernas, enrosca os pés. O fotógrafo clica uma chapa, a única. E numa fração de segundos fica retratado de corpo inteiro o governo Jânio Quadros. A foto dispensa legenda. E grudou-se ao personagem.

A fotografia foi feita por Erno Schneider em 21 de abril de 1961 pouco antes do encontro entre o presidente brasileiro e o argentino Arturo Frondizi na ponte sobre o Rio Uruguai, ligando Uruguaiana a Paso de los Libres. Quando retornou ao Rio, Erno descobriu: o Jornal do Brasil não publicara a foto. Buscou no arquivo e a copiou. Depois, saiu em 23 de agosto de 1961 (dois dias antes da renúncia de Jânio) no jornal para anunciar exposição no Aeroporto Santos Dumont ─ e sempre sumia. Erno a inscreveu no Prêmio Esso de 1962 e venceu, sendo editada na primeira página em 14 de abril de 1962 com o subtítulo “Qual o rumo?” A foto sobreviveu, o negativo não.

Essa fotografia ilustra a maneira de Erno trabalhar, “sempre na rua”. Olhar e, principalmente, enxergar a vida. Observar e clicar, já enquadrando no olhar a fotografia futura. Retratar a história que passa e fica registrada num instante. E buscar o inusitado, como o vira-lata vendo a exibição da Esquadrilha da Fumaça; um guarda-chuva ilhado numa enchente; o presidente-ditador olhando a nudez esculpida das irmãs; o protesto no trote; soldados cercando o Congresso no recesso; o menino aprisionado na janela; e o carinho entre menina e menino. Esse gosto talvez tenha surgido na infância ao ver fotos em jornais e revista em Feliz, na serra gaúcha, onde nasceu em 22 de outubro de 1935.

Ainda menino mudou-se para a vizinha Caxias do Sul ─ arriscou uns chutes no Juventude. Trabalhou num laboratório fotográfico e adquiriu uma American Box, a primeira de suas câmeras. Como freelance n’O Pioneiro, a prática o ensinou a fotografar e lhe deu dinheiro para instalar seu laboratório. Aos 17 anos transferiu-se para Porto Alegre, determinado a ser contratado por um grande jornal. Ouviu negativas e acabou n’O Clarim, de Leonel Brizola, comandado por Carlos Contursi que apostou no jovem aprendiz: “Pega a máquina e vamos fazer uns trabalhos”. Próximo destino: Rio de Janeiro.

Chegou no início dos anos de 1960. Fez fotos para a Manchete, Diário da Noite, Jornal do Brasil, Associated Press, Grupo Abril até chegar ao Correio da Manhã logo depois do golpe militar de 1964, para criar e chefiar o Departamento Fotográfico a convite da herdeira do jornal, Niomar Moniz Sodré Bittencourt. Ali, com sua equipe, “e a maior liberdade”, revolucionou o fotojornalismo, unindo na mesma imagem beleza e informação. E quando o matutino da Avenida Gomes Freire foi arrendado, em 1969, mudou-se com sua equipe para a Rua Irineu Marinho, endereço de O Globo, no qual ficou até 1986. Mas como freelancer continuou pelas ruas a observar e a fotografar flagrantes de vida.