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Imagem Pensada

14 de março DE 2022 |
Tenente na parada militar do 7 de Setembro de 1976. Foto de Orlando Brito

 

Morto na sexta-feira, 11/3, o fotojornalista Orlando Brito é um dos 40 convidados em evidência no site Testemunha Ocular, que o Instituto Moreira Salles lançará em abril. Além disso, uma foto sua, realizada durante a ditadura militar no Brasil, terá destaque na seção Imagem Pensada, em que um autor comenta uma imagem emblemática do fotojornalismo brasileiro. Antecipamos aqui o texto elaborado sobre a fotografia (acima) de Brito, assinado pelo jornalista e escritor Mário Magalhães, autor, entre outros livros, da biografia Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo. O texto foi produzido antes da morte do fotógrafo

 

O longo braço da censura

por Mário Magalhães

O repórter fotográfico Orlando Brito completava dez anos de profissão em 1976. Na parada militar do 7 de Setembro daquele ano, quando retratou em Brasília um tenente do Exército envergando a braçadeira com a inscrição “IMPRENSA”, Brito perenizou um tempo tormentoso.

Dois meses antes, braços de censores do Ministério da Justiça tinham aplicado o carimbo “vetado” na tradução da Declaração de Independência dos Estados Unidos que o semanário Movimento pretendia publicar. A certidão de nascimento dos EUA fazia aniversário de dois séculos. De julho de 1975 a meados de 1978, a ditadura proibiu que o Movimento imprimisse 3.093 textos ou 4,5 milhões de palavras – e 3.162 ilustrações.

O Movimento não estava só. Quem lia o jornal Opinião poderia folhear exaustivamente os exemplares em busca da Declaração Universal dos Direitos Humanos, mas não a encontraria. Os funcionários da censura prévia, imposta pelo governo, não permitiram. A carta da ONU estabeleceu em 1948 o direito de “procurar, receber e transmitir informações e ideias”. Em sua brava existência de quatro anos e meio, o Opinião veiculou 5.796 páginas. Para isso, teve de produzir 10.548, pois a censura bloqueou 4.752. A derradeira edição, de 8 de abril de 1977, foi apreendida.

Os leitores do Jornal da Tarde deveriam mexer sem parar a panela contendo um coco ralado, uma lata de leite condensado e uma colher de manteiga. Era o primeiro passo da receita de bombom de coco. Ela estava ali como protesto e alerta, percebidos por poucos. Receitas culinárias ocupavam o espaço de artigos censurados. Naquele dia de abril de 1974, os censores haviam tesourado uma reportagem sobre restrições à liberdade de imprensa em países das Américas.

Em O Estado de S. Paulo, diário irmão do JT, a censura retalhou ou desautorizou na íntegra 1.136 textos de março de 1973 a janeiro de 1975 – inventariou a historiadora Maria Aparecida de Aquino. No lugar deles, o jornal circulava com versos, sobretudo dos cantos de "Os Lusíadas". Em vez de Camões, o Movimento escalou Castro Alves para preencher os buracos abertos pela interdição de artigos do deputado cassado Chico Pinto. Não deu certo: os censores também encrencaram com o poeta de "O Navio Negreiro".

Nem com o fim da censura prévia – n’O Pasquim em março de 1975, no Movimento em junho de 1978 –, os censores sossegaram. Em outubro de 1975, agentes da ditadura mataram na tortura o jornalista Vladimir Herzog e fabularam a versão de suicídio. O conjunto do jornalismo foi impedido de noticiar o que de fato ocorrera. O pesquisador Paolo Marconi revelou uma determinação da Polícia Federal decretando silêncio até sobre homenagens: “De ordem superior, fica proibida a divulgação, através de emissoras de rádio e TV, de notícias, entrevistas, comentários, reportagens, vinculadas ao culto religioso em memória do jornalista Vladimir Herzog”.

Nos seus 21 anos (1964-1985), a ditadura foi encabeçada por dois marechais e três generais. Os presidentes militares e seus parceiros civis multiplicaram e endureceram a legislação antidemocrática sobre apreensão de periódicos e livros, censura e punição a jornalistas. Perseguiram e asfixiaram a parcela da imprensa que manteve a altivez jornalística e recusou a cumplicidade.

Não se sabe se o tenente da imagem do Dia da Independência difundia notícias ou organizava e controlava o trabalho de repórteres. Isso é o de menos. A foto de Orlando Brito eterniza um instante da história. Lembra e adverte: o esquecimento é amigo da barbárie.

Mário Magalhães é carioca, nascido em abril de 1964, jornalista e escritor. Trabalhou nos jornais Tribuna da ImprensaO GloboO Estado de S. Paulo e Folha de S.Paulo. Recebeu cerca de vinte prêmios e menções honrosas, entre os quais o Every Human Has Rights Media Awards, o Prêmio Vladimir Herzog e o Prêmio Esso de Jornalismo. É autor de Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo (2012) e Sobre lutas e lágrimas: Uma biografia de 2018, o ano em que o Brasil flertou com o apocalipse (2019). (Foto: Daniel Ramalho)