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Moderna pelo avesso: fotografia e cidade, Brasil, 1890-1930


Ruas de mão dupla: entre arquivos e fotografias

Iara Lis Schiavinatto

No âmbito da preparação da exposição Moderna pelo avesso: Fotografia e cidade, Brasil, 1890-1930, a disciplina Tópicos Especiais em Midialogia VI - Pesquisa em curadoria e exposição de arquivos fotográficos em formatos audiovisuais, ministrada no 2º semestre de 2021 na Graduação da UNICAMP, enfocou duas importantes séries fotográficas pertencentes ao Arquivo Edgar Leunroth (AEL) da UNICAMP e ao Instituto Moreira Salles. Privilegiamos a série fotográfica que tem um papel fundacional no AEL por ter sido formada no projeto sobre a Industrialização em São Paulo, coordenado por Paulo Sérgio Pinheiro e do qual resultou os conhecidos documentários Libertários e Chapeleiros de Lauro Escorel e Adrien Coper, respectivamente. Três dos videoensaios realizados pelos graduandos na disciplina centraram-se nessas séries procedentes do AEL e um videoensaio dedicou-se ao notável acervo fotográfico de Marc Ferrez pertencente ao IMS.

Nas coleções fotográficas compulsadas, mapeamos procedimentos para garimpar um argumento válido a partir de quais critérios nessa vasta documentação fotográfica que acompanhassem as relações entre as cidades e a expansão da produção, da circulação e do consumo das imagens na cultura de massas da virada do século XIX para o XX.

A contrapelo, a modernidade, aqui, em sua pluralidade funciona enquanto um passado-presente – i. é, passados habitam o presente. Na disciplina, juntos, os estudantes, eu mesma na condição de docente, o pesquisador associado Carlos Rogério Lima Junior e um conjunto de profissionais técnicos muito qualificado dessas instituições desenvolvemos um projeto coletivo acerca dessas séries fotográficas. Em comum, inquerimos como tais fotografias foram vistas num primeiro momento, suas formas de acervamento e como podem hoje ser mostradas e vistas. Interrogamos práticas expositivas em torno de um volume significativo de imagens e de que formas poderiam ser recompostas e reelaboradas no momento pandêmico e pós-pandêmico.

Na disciplina, a pesquisa coletiva de curadoria transcorreu em um ambiente de mídia que englobou não apenas o uso de domínios específicos, (o formato remoto online das aulas ou os grupos de WhatsApp), mas sobretudo de um repertório midiático, no qual os acervos online com sua rotina de produção, consulta e consumo foram motivo de debate.

O teórico alemão das mídias Wolfgang Ernst assinalou a redefinição contemporânea da noção de memória arquivística e seus usos. Ele argumenta que ocorreu uma mudança do “espaço arquivístico” para o “tempo arquivístico” devido à dinâmica da transferência permanente de dados. Para o autor, no ciber “espaço”, a noção de arquivo se torna uma ideia anacrônica. Antes descrita em termos topológicos, matemáticos ou geométricos, ela passa a ser substituída cada vez mais por uma memória delineada pela transferência permanente de migração de dados[1]. Disso decorre que o potencial do arquivo digital se realiza na experiência de temporalidades mais complexas do eu e dos outros, quando os ambientes online proporcionam um sentido mais visceral do eu como um nó na mídia e na memória social.

No processo incontornável de digitalização da cultura em todas as instâncias sociais, as imagens se tornam interfaces de mediação do cotidiano. Nessa medida, estudamos as dimensões sociais e modernas das séries fotográficas selecionadas como se fossem também um domínio de figurações comunicativas garimpadas na prática curatorial desenvolvida na disciplina sobre acervos visuais online.

No todo, essa parceria institucional motivou a produção de quatro videoensaios, que não deixam de ser uma contribuição no campo da cultura da história das imagens na perspectiva de uma história pública. A forma videoensaio se apresentou como um ponto de cruzamento entre os esforços ensaísticos de decomposição e recomposição de experiências, permitindo convocar figuras que circulam em diferentes contextos para refletir sobre as imagens do mundo e os dispositivos que as conformam e modulam.

Na política global partilhada da memória cultural, cabe notar que o audiovisual se erige numa técnica de memória que remonta à sua emergência nos oitocentos. Nesta história intelectual, a emergência na atualidade de uma política da memória lida com a reciclagem, a retroalimentação e a formas de se fazer visível do arquivo midiático.

Esse processo de produção e transmissão da memória social no contexto midiático e fotográfico, neste caso, permite politizar os modos de construção dos arquivos fotográficos – eleitos a temas centrais na pesquisa curatorial na disciplina. Esta abordagem postula a noção de que a cultura visual é capaz de interrogar e prefigurar a violência contida nos arquivos, ao desafiar sua origem e as formas através das quais elas se estruturam em nossa realidade. Assim, indagamos a dualidade do arquivo[2]: ser, ao mesmo tempo, fonte de legitimação de uma autoridade constituída (no mais das vezes o Estado) e lugar onde se guardam os vestígios que podem inquerir e destituir seu poder. Atentamos também, nos arquivos, à invisibilidade que os caracteriza.

Na esteira da arqueologia das mídias, o arquivo é pensado como uma estrutura de poder e produção de sentido, um locus de agência que molda nossa percepção das temporalidades. Ele permite analisar e reconsiderar os regimes de memória e historicidade em relação às práticas de uma cultura material. Permite, também, pensar como artefatos midiáticos que atravessavam e modulavam as experiências no passado, em especial aqueles envolvidos na cultura de massa dos oitocentos, e como sobrevivem em novos contextos, novas telas e máquinas no tempo presente.

Nessa perspectiva, uma equipe de estudantes notou que o filme-ensaio borra as fronteiras entre domínios historicamente sedimentados - ficção, documentário e experimental - para produzir, como resultado deste processo, figurações do pensar ou do pensamento na imagem-movimento, considerado como um discurso constituído sobre a mobilidade das imagens materialmente aplicável a conjunto de configurações audiovisuais.

Os 4 videoensaios podem ser vistos aqui:

A Memória da Ruína

Por Gabriel Vinicius da Rosa, Giulia Roberta Gonçalves Ribeiro, Leonardo Forti Christofoletti e Thales Augusto Silva.

 

Novas Vistas

Por João Felipe Rufatto Ferreira, Laura Manganote, Leonardo Zago Leoni e Lucas Manuel Mazuquieri Reis

 

Criminosos

Por João Gabriel, Nicolas Salviano, Rodrigo Martinhão

 

Dupla Jornada

Por Bruno Denardo, Gabriel Nardi, Katheleen Costa

 

É auspicioso indicar que esse acordo institucional entre a UNICAMP e o IMS bem integrou a graduação e a extensão universitárias com a iniciativa privada de uma atuante política cultural do IMS. Ele transformou os acervos fotográficos online em laboratórios de estudos curatoriais, convidando a pensar visualmente os nexos entre as fotografias e as cidades no passado-presente.

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1 ERNST, Wolfgang. The Archive As Metaphor. Open, 4, 2007.

2 Esta dualidade aparece de várias experiências históricas apresentadas na Agenda para a Fotografia organizada por Ana Maria Maud e Marcus Oliveira numa parceria entre LABHOI da UFF e o GT de Imagem, Cultura Moderna e História da ANPUHRJ. Ver Acervos e Coleções fotográficas na pesquisa histórica. https://www.youtube.com/playlist?list=PL1-1ZfnSk3LPadDK4TJm9a4MRKLAT_8Qw. Acesso em 20 de setembro de 2022.