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Papel, tinta e chumbo:

fotolivros e ditaduras sul-americanas


Texto do curador

Miguel Del Castillo

A memória coletiva de períodos ditatoriais costuma entrar na mira de governos antidemocráticos, que buscam manipulá-la ou simplesmente apagá-la. A arte, quando lida com o mesmo tema, não raro trilha o caminho inverso, resgatando e expondo a violência de Estado. Esta exposição é composta por fotolivros que, de diferentes maneiras, abordam as ditaduras militares ocorridas na América do Sul, mais precisamente em Brasil, Argentina, Chile e Uruguai, entre os anos 1960 e 1990.

Num primeiro grupo, há trabalhos fotográficos feitos na época, ainda que editados posteriormente: um documento da Greve do ABC publicado pela Agência F4 ainda durante o regime militar – misto de denúncia à queima-roupa e signo de esperança –, o registro de Paz Errázuriz das dissidências sexuais e de gênero no Chile de Pinochet, a compilação de fotografias sobre a atuação de mulheres nos movimentos sociais em São Paulo por Rosa Gauditano e o esforço de Luis Weinstein em mostrar o cotidiano possível e os muitos “guerreiros anônimos” com que cruzava ao acaso.

O aspecto de sobrevivência, os vestígios e as consequências calamitosas dos anos de chumbo – nas pessoas e nos lugares – se veem claramente em trabalhos como Desapariciones, da argentina Helen Zout, e Condor, do português João Pina, que viajou pelo Cone Sul documentando o que restou da maior operação coordenada entre os governos militares da região para eliminar a oposição política.

Outros artistas contemporâneos lidam com as ditaduras a partir de arquivos, muitas vezes acrescidos de outros materiais, para reativar memórias coletivas à beira do esquecimento. Rosângela Rennó parte do acervo resgatado de um fotógrafo do Partido Comunista uruguaio para mostrar a aura inquietante e tensa de fotografias feitas logo antes da instalação do regime militar, característica que também remete a algumas imagens selecionadas por Shirlene Linny e Julio Cesar Cardoso para contar a história de um diplomata brasileiro perseguido e morto pela ditadura – para encobrir a corrupção por detrás da nebulosa construção de uma hidrelétrica. Diego Di Niglio compila histórias de pessoas atingidas pela repressão, e Gilvan Barreto se ocupa de um lugar – o arquipélago de Fernando de Noronha, que foi cárcere de presos políticos – para fazer um salto ao Brasil de 2019, cujo presidente pouco antes homenageara, do palanque do Congresso e em rede nacional, um torturador confesso.

E há, por fim, fotolivros realizados pela geração dos filhos de militantes e desaparecidos políticos, que costumam trazer histórias bastante pessoais. Todos eles se constituem como exercícios do que a teórica romena Marianne Hirsch chamou de “pós-memória”, termo inicialmente cunhado para explicar a relação dos filhos de sobreviventes ou vítimas do Holocausto com as memórias de seus pais, mas que tem sido aplicado também a outros grandes eventos traumáticos: lembranças que são transmitidas entre as gerações e que são incorporadas de tal modo que os filhos precisam elaborá-las. Exemplares desse conjunto são os trabalhos de Lucila Quieto e Celeste Rojas Mugica, compostos de imagens privadas que, como diz a pesquisadora Ana Maria Mauad, “se politizam ao ganhar o espaço público”.

Nas páginas desses títulos polifônicos, encontramos a iminência dos golpes de Estado, a atuação da repressão, o cotidiano e os dramas familiares, as lutas de resistência, os lugares indizíveis, o exílio, as dissidências ocultas e os efeitos da ausência dos desaparecidos. Entrecruzam-se imagem e memória, história e política, indivíduo e coletivo. Livros sobre esse tema nunca serão suficientes, e se fazem ainda mais necessários num país como o Brasil, em que o legado da Comissão Nacional da Verdade – ponta inicial de lucidez num mar de esquecimento advindo da anistia aos militares e da escassez de políticas de acesso à informação – se viu ameaçado nos últimos anos por um governo federal que celebrava a ditadura e buscava reescrever com cinismo a história, apagando uma memória que mal começamos a recuperar.