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Contraste

Iole de Freitas, anos 1970 / Imagem como presença


Texto da curadora

Sônia Salzstein

Esta exposição reúne trabalhos realizados por Iole de Freitas há mais de cinco décadas, alguns raramente exibidos, muitos deles conhecidos apenas de um círculo restrito de admiradores. É a primeira vez que se apresenta um conjunto tão numeroso e representativo da produção desse período fundador na carreira de Iole. Embora as fotos, os filmes e as instalações da mostra talvez surpreendam o público que, desde o início da década de 1980, se habituou a associar a artista ao campo da escultura, são obras que já anunciavam características que de um modo ou de outro emergiriam em tudo o que ela produziria depois – mesmo que as peças em exibição, a diferença das esculturas, sejam feitas de algo tão imponderável e esquivo como a matéria luminosa das imagens.

A principal característica dessas obras talvez seja sua obstinação em perscrutar a plasticidade do corpo, a fascinante capacidade que nosso corpo tem de transformar o espaço conforme se veja envolvido por ele ou lhe ofereça resistência. As imagens fílmicas e fotográficas, tal como resultaram das primeiras incursões de Iole, potencializam a um grau de tensão máxima essa característica, que não deixa de se manifestar, embora de outro modo, nas esculturas e instalações que a artista realiza até hoje. Não obstante voltar-se especificamente ao trabalho produzido na década de 1970, a exposição passou longe de ambições historiográficas. Preocupou-se, em vez disso, em instar o passado a se pronunciar sobre o presente, e esse passado só se deixaria iluminar em face da autenticidade e pungência com que o trabalho atual de Iole fosse capaz de interpelá-lo.

Chegou-se a uma constelação de obras – dentre elas, foram reconstituídas três instalações que, conforme se avaliou, seriam capazes de contextualizar com limpidez e simplicidade o ambiente de ideias no qual haviam brotado as linhas de força do trabalho. O fato de a mostra consistir num conjunto de fotos e filmes - naquilo que à época se consideravam os ''novos media'' – está, decerto, ligado ao grande interesse que usos heterodoxos desses meios (junto ao vídeo) despertavam entre jovens artistas, premidos pela crise que colocava em xeque os grandes cânones da tradição cultural do Ocidente.

Como Iole, eles buscavam emancipar-se da parede do museu, submergir num espaço fenomenológico, testar potências estéticas e políticas que poderiam advir de um aparato tecnológico de produção de imagens, portátil e de fácil manejo, pronto a selar a liquidação de um coisificado objeto artístico. Convivendo com a artista durante os quase 12 meses que antecederam esta exposição, aprendemos que, a despeito de nos defrontarmos com peças concebidas há mais de meio século, a reunião delas numa situação nova terá tido um resultado surpreendente. A mostra inteira revelou-se, de fato, como o trabalho mais recente de Iole: uma espécie de grande instalação, que fala eloquentemente ao presente e sobre o presente.

Em 1970, então na casa dos 20 anos, a artista se mostrava decidida a consolidar a carreira, desde sempre direcionada à arte. Partia para Milão no início da década, levando consigo uma experiência envolvente em dança moderna, que vinha desde a infância, como também estudos iniciais em design, realizados junto a Escola Superior de Design do Rio de Janeiro. O amor pela dança e o gosto pelo design carreariam a toda a obra subsequente o interesse decisivo pelo movimento, pela escala que o corpo vai naturalmente impondo ao espaço à medida que se desloca, dessa maneira modificando-o sem cessar. Tanto o Rio de Janeiro, para onde se havia transferido com a família, ainda criança, proveniente de Belo Horizonte, como a Milão que encontrava em 1970 se ofereciam, então, como estimulantes laboratórios de ideias a uma jovem artista.

Na capital carioca, havia frequentado um ambiente artístico no qual se havia radicalizado a tradição construtiva modernista e se forjara o neoconcretismo, que marcara decisivamente muito da arte que desde então se fez no país. Era exemplo dessa efervescência a mostra Nova objetividade brasileira, aberta no MAM do Rio em 1967 e visitada pela artista, na qual estavam presentes as correntes mais irrequietas da arte brasileira do período. Iole decerto não permaneceria indiferente às poéticas do corpo que haviam brotado no rastro desse ânimo experimental, nem à ênfase que muitos artistas saídos do neoconcretismo, pouco mais velhos do que ela, conferiam às dimensões eróticas e sensoriais do corpo.

O Rio de Janeiro seria, ademais, importante caixa de ressonância do movimento tropicalista, cujas facetas anárquicas eletrizavam o debate político e estético nacional desde o final da década precedente, e sob os anos mais sombrios da ditadura civil-militar que se instalara no país em 1964. É irresistível conjecturar que a franqueza e a verdade com que os processos construtivos se oferecem na obra de Iole se devam, em alguma medida, à primeira formação da artista, realizada no rastro das práticas experimentais que haviam animado a arte brasileira dos meados dos anos 1950 ao final dos anos 1960. Do mesmo modo, o tropicalismo ecoa sutilmente, por exemplo, no filme Elements, de 1972, em cujo início ouvimos Caetano Veloso interpretar, numa rascante trilha sonora, o vocalise da canção Asa branca, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira.

Em Milão, Iole encontraria, à do que vivera no Brasil, um ambiente artístico e cultural em plena renovação, no qual sobressaía a radicalidade do debate político e estético e a voz ressoante que o movimento feminista conquistara nesse debate. A cidade despontava, naqueles anos, como um polo cultural cosmopolita, relativamente receptivo à presença de artistas estrangeiros. Iole frequentava, junto ao seu então companheiro, o artista Antônio Dias, os círculos da arte europeus mais atuantes da época, nos quais se entrecruzavam as manifestações da arte povera, da body art e da arte conceitual. Ela encontrava, ademais, um meio artístico no qual era notável a participação crescente de mulheres, como artistas, curadoras, escritoras e militantes feministas, a maior parte delas às voltas com o questionamento das representações do feminino no universo da indústria da cultura. Autoras feministas das mais radicais no período, como Lucy Lippard (que conhecera o trabalho de lole na Bienal de Paris de 1975), Lea Vergine e Annemarie Sauzeau-Boetti dedicaram textos à obra da artista.

Nesta mostra, o entrecruzamento de temporalidades heterogêneas – a década de 1970 e o presente – apenas reafirma a permanência de algumas questões cruciais no horizonte de trabalho de Iole. Vê-se confirmada a aposta da obra na experiência infatigável de descondicionamento do corpo, que é sempre o corpo situado, posto no vértice de um jogo de forças, só essa experiência podendo restituir a autonomia e a integridade que nosso corpo reclama, na permanente aventura do movimento que é sua sina. Não por acaso, trata-se de um corpo feminino, o lugar histórico e social onde essa pugna sem trégua acontece, e o movimento a que nos referimos é o de sua existência psíquica e social, que Iole abriu ao obscuro e ao desconhecido.

Dessa maneira, a jornada exploratória aqui reconstituída adquire um sentido político e estético mais complexo, cujo núcleo incandescente  é a subjetividade feminina, a testar e confrontar formas culturalmente não subjugadas. A autorrepresentação do corpo está presente em grande parte dos trabalhos de artistas mulheres. Em Iole, o processo de que essas obras resultavam era singular: performances silenciosas, cuja única audiência era a própria artista, às voltas com a descoberta da multiplicidade de imagens de si que os movimentos produziam em superfícies reflexivas. As imagens obtidas acabavam por mostrar uma constelação de sombras, texturas, silhuetas – enfim: um cenário sensorial, em que ressaltava a fisicalidade das superfícies, suas marcas e seus pequenos acidentes, a denunciarem a fragilidade que a pele pode revelar daquilo que encapsula. Constituíam o diário de um corpo em permanente construção, a testar suas potências físicas e expressivas.

A artista parece ter mergulhado nessas performances unicamente em prol da satisfação da experiência com que elas lhe acenavam; tratava-se de uma empreitada solitária, que demovia a possibilidade de a protagonista ter seu corpo enquadrado e sublimado na visão de outrem. Como era sempre Iole que se fotografava e filmava, nunca veremos um corpo totalizado em sua anatomia – ao contrário: muitas dessas imagens, ao valorizarem o fragmento e a indeterminação, o não finalismo dos gestos, dissolvem os códigos visuais que historicamente fixaram o que deveria ser a visualidade do corpo feminino. Sobretudo nas sequências fotográficas, o corpo se apresenta como um feixe complexo de membros, a engendrarem uma força motriz que parece buscar esse momento culminante de mudança, de passagem de um estado a outro.

Eles se estiram ou se contraem, distorcem a verticalidade presumida do corpo ''civil'' ereto, chegando mesmo a exercitar a fusão frenética de pés e cabeça, como ocorre em Glass PiecesLife Slices, de 1975. Nesta, como em outras sequências fotográficas, Iole parece encontrar o corpo como lugar ainda e sempre a se constituir, de contiguidades e relações, uma vertigem de superfícies a sugerir, a cada vez, novas estruturas – novas imagens –, o corpo, enfim, como um complexo de passagens que se desdobram em permanente intercâmbio entre si, acenando para outros tantos corpos possíveis.

A aventura da autorrepresentação paradoxalmente acabaria revelando à artista a natureza prismática da subjetividade – não o encontro com um suposto eu idêntico a si mesmo, finalmente pacificado. O trabalho terá rompido, enfim, o princípio dualista da autorrepresentação, com sua promessa de uma interioridade absoluta, em face da qual se erigiria um ''lá fora'' ou um Outro antagônico: o mundo masculino da cidade, dos escritórios, dos prédios anódinos e do rugido monótono dos motores dos carros que se deixa entrever em Light Work (1972). Conforme reza o dualismo, um "lá" distante, onde de fato se exerce o poder, onde as mulheres deambulam, permanentemente acuadas.

Em Iole, o corpo e reencontrado longe desse dualismo:  é contiguidade, passagem continua entre interior e exterior (e vice-versa). Essas experiências, mesmo realizadas no recesso dos estúdios da artista, falam à complexidade da vida contemporânea, ao convulsivo mundo político e social do presente (ao dos anos 1970, como ao de agora). Sob a luz tépida e indecisa a entrar nas madrugadas pela janela do apartamento em que vivia em Milão, ou no loft nova-iorquino que também assistiu a suas performances silenciosas, Iole de Freitas gravou em seu corpo as tensões do mundo contemporâneo.