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Flieg. Tudo que é sólido


Produto/publicidade

Em 1951, Hans Gunter Flieg foi o fotógrafo oficial da I Bienal Internacional de São Paulo, organizada pelo Museu de Arte Moderna (MAM-SP). Fotografou as obras premiadas e as salas dos diferentes países, registrando pinturas e esculturas. De todas as esculturas que fotografou, o registro da obra Unidade Tripartida, do artista suíço Max Bill, primeiro prêmio em escultura daquela Bienal, talvez seja o que melhor representa e problematiza os desafios da representação fotográfica de objetos tridimensionais. A imagem é uma entre centenas de possibilidades de representação da escultura. Por isso, configura uma escolha consciente do fotógrafo diante da necessidade de melhor representar sua plasticidade em duas dimensões. A escolha de Flieg tornou a foto uma das mais conhecidas e difundidas da obra de Max Bill.

A construção de um amplo repertório de imagens de produtos e objetos industriais na obra de Hans Gunter Flieg, resultado de inúmeros trabalhos comissionados que realizou para indústrias e agências de publicidade, deve ser entendida não como a produção de apenas mais um amplo e diversificado catálogo visual de bens de consumo mas como um trabalho de intenso refinamento na produção de imagens, em que recursos de iluminação e montagem em estúdio contribuem decisivamente para a construção de uma representação vigorosa da materialidade, do design e da funcionalidade desses objetos. Em Flieg, o mesmo rigor na documentação de obras de arte está também presente na fotografia de objetos do cotidiano.

O que, no limite, construirá a reificação destes produtos enquanto bens de consumo e de desejo, – produzindo um verdadeiro “êxtase das coisas” potencializado pela força das imagens –, será a recontextualização das imagens, que as afina com os demais recursos do universo da publicidade e do marketing empresarial. O sentido maior da fotografia de objetos e produtos industriais no campo da publicidade é sempre, de certa forma, a construção da alucinação de um presente inacessível, a construção de um fetiche e de um desejo a serem necessariamente alcançados através do consumo. O ato de posse do objeto a ser consumido é um instante fundamental da realização de valor que remunera o capital originalmente investido, instante em que se materializam e reafirmam as relações sociais e econômicas fundamentais que estruturam nossa sociedade.

Uma parte significativa das imagens de produtos realizadas por Flieg e reunidas nesta sala, em especial aquelas dos anos 1950, revelam a distância entre a excepcional qualidade, atingida no estúdio fotográfico, e a impressão gráfica disponível naquele momento, ainda relativamente precária. Somente na década de 1970 a publicidade de massa atingirá uma qualidade de impressão, em preto e branco e em cores, capaz de emular de forma mais regular e consistente a qualidade original das fotografias na página impressa, potencializando ainda mais o papel da fotografia na representação do objeto enquanto fetiche. Propaganda e marketing são ferramentas essenciais ao ciclo de produção, distribuição, comercialização e consumo de bens e produtos. A imagem sempre esteve presente nesse ciclo, inicialmente como desenho e ilustração e depois como registro fotográfico direto. Meio e mensagem sempre foram determinantes no processo de comunicação com os consumidores, que foi da página impressa ao vídeo e daí ao meio digital. A arte pop de Andy Warhol e de Geraldo de Barros sinaliza essa questão ao aproximar a reflexão crítica, própria ao campo das artes, da esfera da publicidade e do consumo da sociedade industrial. Da fascinação e fetiche dos produtos e objetos, deslocamo-nos hoje, como consumidores, para uma nova fascinação e dependência frente a um fluxo contínuo e interminável de dados e informações nas redes digitais, numa escala sempre inatingível e inalcançável. Transitamos da reificação dos objetos de desejo da sociedade industrial para uma alienação crescente do pensamento crítico, que se dá tanto em uma economia da atenção, que trabalha para ocupar todos os espaços e tempos disponíveis dos novos consumidores digitais, quanto em uma sociedade do espetáculo e da espetacularização, que ainda insiste em enfrentar às cegas os presentes desafios e contradições do antropoceno.

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