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Que país é este?

A câmera de Jorge Bodanzky durante a ditadura brasileira (1964-1985)


Audiodescrição

Estação 2

Câmera ativa

 
A experiência de Jorge Bodanzky como câmera em filmes de outros diretores é fundamental para entender seus próprio trabalhos na direção. Bodanzky estudara direção de fotografia na Escola de Design de Ulm, sob a batuta do cineasta Alexander Kluge. Recém-chegado da Alemanha, estreou como câmera no filme O profeta da fome (1968), de Maurice Capovilla. A fábula onírica acompanha uma trupe circense decadente, determinada a garantir seu público. Distante do realismo do Cinema Novo, o filme abusa da lente grande-angular para abraçar o espectador com a cena ou oferecer o ponto de vista do protagonista. Nesse caso, o faquir Alikan, interpretado por José Mojica Marins — mais famoso como o Zé do Caixão —, que descobre no jejum o sucesso almejado. O filme parodia a aventura de viver num país precário, em que todos lutam por trabalho, dignidade e comida.

Em Hitler III° Mundo (1968), longa do escritor José Agrippino de Paula, Bodanzky incorpora a ousadia libertária do autor de Panamérica (1967) para filmar a história de ascensão de um líder nazista no Terceiro Mundo. Rodado clandestinamente em São Paulo, o filme encadeia cenas perturbadoras, como a do samurai assassino vivido por Jô Soares, com efeitos de cinema arrojados, como o giro da câmera sobre si mesma. Para filmar, Bodanzky juntava pontas de chassi dos outros filmes que fazia, descolava uma câmera emprestada e ligava para o Agrippino. Ele então criava a cena com os atores disponíveis, e a equipe saía para rodar no improviso. Filmado simultaneamente à instauração do AI-5, o enredo sobre a ascensão do totalitarismo continua a ser tristemente visionário.

O longa Compasso de espera (1969), dirigido pelo dramaturgo Antunes Filho, foi pioneiro em abordar o conflito racial no cinema através da história de um jovem poeta negro (Zózimo Bulbul) e sua namorada branca. A violência do racismo é expressa pelo contraste dramático entre o preto e o branco da película, que expõe o conceito rigoroso desenvolvido pelo artista português Fernando Lemos e conduzido por Bodanzky com apoio das artistas Maria Bonomi e Amelia Toledo.

Entre 1968 e 1973, Bodanzky fez câmera de inúmeros filmes, engrossando a produção alternativa. A experiência e a agilidade na movimentação da câmera permitiu ao cineasta usá-la para direcionar atores, planos, cortes e cenas em seus próprios filmes.

 

Luta e resistência

 
“Pedra não para o caminho, fogo não queima o luar”, canta um casal de trabalhadores rurais em Igreja dos oprimidos (1985), feito no ano da redemocratização. O filme denuncia a violência no campo e a atuação da Igreja Católica progressista na luta por reforma agrária em Conceição do Araguaia (PA). No cinema de Bodanzky, a música popular ocupa o papel de coro, que comenta questões sociais e morais. A ditadura ruía nas cidades, mas o interior do país seguia lutando por terras e direitos através de alianças e associações comunitárias.

Bodanzky enfocou outras formas de resistência social durante a ditadura. Na ficção Os Mucker (1978), baseado em episódio histórico verídico, uma comunidade alemã liderada pelo casal messiânico Jacobina e José Maurer resiste às investidas da sociedade local, como uma Canudos gaúcha. O longa Gitirana (1975), construído como um cordel, atualiza o sentido do cangaço na resistência nordestina e feminina durante a construção da barragem de Sobradinho (BA), no governo do general Emílio Médici.

A luta contra o machismo e o puritanismo é encarnada por mulheres, como a Jacobina de Os Mucker (acusada de “dormir com qualquer um”); a Marieta Puribão de Gitirana (que se deita com o Diabo para exterminar o pecado); e pela gilete que sela a aliança de Iracema com Tereza, em Iracema.

Os trabalhadores rurais, o movimento operário e o feminismo batalham por justiça e emancipação mesmo quando os novos valores sociais e morais afrontam a sociedade, que reage com a pá da repressão. A violência indiscriminada do Estado e do poder privado é uma estratégia de dominação, que promove o conflito até mesmo entre grupos oprimidos.

À sua maneira, Bodanzky deu imagens a uma luta coletiva, contribuindo para frear o projeto de extermínio que o ufanismo desenvolvimentista tentava manter invisível. O fim do aparato militar repressivo é substituído pela violência das milícias particulares, determinadas a evitar que a reforma agrária e a distribuição de renda avancem no país, nos lembra dom Alano Pena em Igreja dos oprimidos (1985). Hoje, a história continua.


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