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Pequenas Áfricas

Audiodescrição

Estação 2

Textos de abertura

 

Texto institucional

 
Há um Rio que passa no Brasil e tem sua nascente num território que um dia Heitor dos Prazeres denominou como “Pequena África”. Se ele parece diminuto quando comparado com a imensidão do continente donde foi originária a maioria das gentes que o habitaram e habitam, a imensidão das suas culturas, das suas ancestralidades, da resistência, dos combates, das vidas que nele confluíram e das artes que dele emanaram emancipa esse Rio da violência histórica da escravidão, da segregação racial, da exploração humana e da exclusão social que sempre o caracterizaram. Por vezes, as cidades acontecem à revelia das formas de poder instituído que tentam formatá-las, movidas pelo caudal das gentes que a elas chegam e nelas vivem, movidas pela energia dos seus modos de vida, culturas e espiritualidades que rompem todas as amarras que pretendam condicioná-las. Essa é a força extraordinária das culturas negras que no Rio de Janeiro tiveram como epicentro esse território em torno da sua zona portuária, dos bairros de Gamboa, Saúde e Santo Cristo, dos morros da Providência, do Pinto e da Conceição, da praça Mauá, dos terreiros das suas religiões afro-brasileiras às escolas de samba e às manifestações do jongo, da capoeira, das palavras, dos batuques e dos bailes que souberam protagonizar existências que sempre enalteceram a vida como expressão maior das suas sobrevivências.

Os acervos do Instituto Moreira Salles reúnem documentos preciosos de muitas das histórias desse território, preservadas pelas suas áreas de Fotografia, Iconografia, Literatura e Música. Selecionar, reinterpretar e ressignificar esses documentos, articulando a memória com as lutas e o pensamento do Brasil contemporâneo resultou nesta exposição, Pequenas Áfricas: o Rio que o samba inventou, resultado de um processo de diálogo e aprendizagem entre responsáveis e programadores dos acervos do IMS e uma equipe curatorial externa convidada, constituída por Angélica Ferrarez de Almeida, Luiz Antonio Simas, Vinícius Ferreira Natal e Ynaê Lopes dos Santos. A todas e todos manifestamos a mais profunda gratidão pela pesquisa, pelo trabalho e pela reflexão conjunta que a tornaram possível. Esse reconhecimento é extensivo a artistas, criadores, famílias, colecionadores e instituições que generosamente criaram ou emprestaram as obras que agora podemos ver reunidas. Todas as equipes do IMS envolvidas nesta exposição nos merecem um agradecimento muito especial. Um reconhecimento é devido igualmente às dezenas de associações, coletividades, instituições e entidades que redesenham no presente as memórias, as lutas e as iniciativas de todas essas “pequenas áfricas” cariocas nos dilemas e desafios dos nossos dias.

Marcelo Araujo, diretor-geral
João Fernandes, diretor artístico
Instituto Moreira Salles

 

Texto curatorial

 
A Heitor dos Prazeres atribui-se a ideia do Rio de Janeiro como uma “África em miniatura”. Antes dele, Lima Barreto já destacava os traços de “aringa africana” de uma região da cidade que, nas franjas do Centro elitizado e branco, concentrava numerosa população afrodescendente – despossuída, pobre e, sobretudo, orgulhosa de suas raízes e tradições. Naquelas latitudes, a chamada Pequena África foi palco de um fenômeno decisivo para a cultura brasileira no século 20, a invenção do samba urbano.

Noção em disputa dos pontos de vista histórico, cultural e até geográfico, a Pequena África tal como a entendemos se consolida e desaparece, fisicamente, entre a primeira década do século passado e o início dos anos 1940. É nesse intervalo que a região delimitada pelo Cais do Valongo e pelo Estácio, fronteira do Centro com os subúrbios, assiste ao nascimento de um tipo de samba que, longe de dar conta das numerosas variantes do gênero, vai ganhar o mundo a partir do lançamento, em 1917, de “Pelo telefone”.

Daquele momento em diante, consolida-se a percepção de que os quintais e terreiros são essenciais na reinvenção da sociabilidade da maioria afrodescendente e da identidade cultural brasileira. Para cada personagem notório, como Tia Ciata ou Sinhô, há um número não determinado de mulheres e homens que não inscreveram seus nomes na história, mas dela participam como sujeitos ativos.

Esta exposição parte da música para percorrer a intrincada rede de encontros, trocas e conflitos que ali se formou na primeira metade do século 20. Consciência política, religiosidade e solidariedade são inseparáveis da sofisticada produção artística que se espraia no espaço – ganhando uma cidade, o país e o mundo – e no tempo, ainda hoje pulsante em seu espírito dissidente de um país racista e desigual.

A partir da Pequena África histórica, propomos um percurso pelas Pequenas Áfricas que a ela se sucederam, menos um lugar do que um conjunto de práticas consagradas àquele modo de vida. Uma ideia pulsante em núcleos de resistência e ação sustentados por referências e valores de um Rio de Janeiro negro, para além dos clichês que se confundem com a imagem oficial da cidade.

 

Anúncios

 
Os textos que podemos ouvir aqui, em gravação do ator Hilton Cobra, foram extraídos do Diário do Rio de Janeiro no período entre 1821 e 1831. A leitura da seção de “Anúncios” do jornal carioca dá a dimensão precisa, no detalhe, da violência inaudita do intenso comércio de africanos escravizados. Nesse mercado, a oferta e a demanda de seres humanos mistura-se, com indiferença aterradora, à circulação de mercadorias de todo tipo.

 
1) A quem faltarem dois negros de estatura ordinária, dirija-se à Rua de Valongo nº 44.

2) Quem quiser comprar uma preta quitandeira, de Nação Angola, que sabe bem lavar e engomar liso e muito ágil para todo o serviço de casa, procure no Largo do Rocio da Cidade Nova, indo para o Mangue, passando a Escola, na terceira casa, lá achará com quem ajuste.

3) Quem quiser comprar duas molecas de Nação Cabinda e Angola, a saber esta ainda nova de idade de 11 a 12 anos e aquela de 14 a 15, tendo dois anos de casa com princípios de coser e cozinhar, procure na Rua de Valongo a casa de número 107, que achará com quem tratar, certo de que não se vendem por defeito algum, e sim porque se retira o dono delas para Portugal. São próprias para mucamas por não serem do serviço de rua.

4) Quem quiser comprar uma preta para fora da terra, muito fiel, cozinheira do comum, e por preço cômodo, à vista se dirá o motivo por que se vende. Quem a quiser dirija-se à Travessa detrás do Carmo, na esquina da Rua da Cadeia nº 15.

5) Vende-se uma preta ladina de idade de 22 anos, sem mácula alguma, de linda vista, lavadeira, engoma liso, cozinha comum e tem princípio de costura. Quem a pretender procure na Rua de São Pedro, na Cidade Nova, indo para cima, lado esquerdo, em uma loja de ferragem ao pé do canto da Rua Formosa.

6) Quem quiser comprar uma preta que sabe lavar e cozinhar procure na Cidade Nova: na loja de louça pegado com um botequim se tratará seu preço.

7) Quem precisar de um escravo pardo, de idade de 17 anos, com boa figura, sem moléstias, apto para todo o serviço, até mesmo para pajem, pela sua boa presença; procure na Rua dos Inválidos na casa nº 56 do lado direito, que com seu senhor se ajustarão, contanto que seja para fora da terra.

8) Precisa-se comprar uma escrava ainda rapariga sem vício nem mania alguma, com leite e cria de sete meses, e que saiba cozinhar e engomar. Quem a tiver dirija-se à Rua detrás da Lapa casa nº 6.

9) Quem tiver para alugar um escravo que saiba fazer velas de sebo de barrica, o pode declarar no Diário para ser procurado, ou procurar a casa de sobrado nº 29, Rua de São Pedro.

10) Precisa-se quatro pretos para trabalhar em uma roça. Quem os quiser alugar diga onde se há de procurar para tratar do ajuste.

11) Quem achar ou souber de um negro de idade de 20 a 25 anos, por nome Caetano, oficial de carpinteiro, que fugiu a 28 de abril, queira levá-lo ao Beco dos Cachorros, lado esquerdo, nº 28, que se lhe pagará o seu trabalho.

12) Na Prisão do Calabouço se acham presos três escravos de Nação Cabinda, rapazes e muito sadios, dois deles são arrais de barco e pertencem ao Visconde do Rio Seco: o primeiro chamase Manoel Cabinda, o segundo Bernardo, o terceiro Jorge. Vende-se para fora da Capitania do Rio de Janeiro. Quem os quiser comprar fale com o referido Visconde.

13) Na Rua do Sabão, casa nº 296, há uma preta com leite para alugar-se.

14) Vende-se uma escrava ainda meia boçal com idade de 18 a 20 anos, tem princípios de cozinha, sem vício nem manhas; quem a quiser comprar procure no Quartel do Campo o tenente do Batalhão 26 Joaquim Antônio.

15) No Largo do Rocio, na esquina da Rua do Piolho nº 25, vende-se uma preta que terá 18 anos, lava, cozinha e engoma. Dá-se pelo preço de 350$.

16) Vende-se um crioulo, oficial de barbeiro, sangrador e dentista. Quem pretender dirija-se à Rua do Valongo nº 150 no sobrado.

17) Vende-se um preto rapaz muito reforçado, próprio para qualquer serviço, o qual anda ao ganho e dá de jornal por dia 480; quem o pretender dirija-se à Rua dos Barbonos nº 28.

18) Vende-se no Beco de Manoel de Carvalho nº 5 uma parda de 14 anos, sabe coser, engomar e cozinhar, é muito desembaraçada; mais uma negrinha de 11 anos pouco mais ou menos, tem seu princípio de costura. Ambas elas são muito boas escravas, vendem-se por circunstâncias. Na mesma casa vende-se uma marquesa de oleado.

19) Na Rua da Misericórdia nº 173 vende-se para fora desta Província uma rapariga de Nação, perfeita cozinheira; sabe engomar, lavar e coser, tudo com perfeição, não tem vícios nem moléstias e à vista do comprador se dirão os motivos por que se vende.

20) Vende-se uma preta de bonita figura com as habilidades seguintes: lava muito bem, engoma liso, cozinha, arranja uma casa, muito carinhosa para crianças. E à vista do comprador se dirá o motivo por que se vende. Quem a pretender dirija-se à Lagoa da Sentinela nº 183, das 9 da manhã e de tarde das 3 em diante.

21) Quem quiser comprar uma boa escrava de Nação Caçange que sabe bem cozinhar e lavar tanto de sabão como de barrela, e com muitos bons princípios de engomar e coser, procure na Rua de São Pedro no Largo do Capim nº 32, que à vista se lhe dirá o preço.

22) Quem quiser comprar dois moleques, pessoas ladinas, hábeis para qualquer ofício e sem vício, dirija-se à Rua dos Pescadores nº 54.

23) Aluga-se um preto cego muito bom para tocar foles de ferraria. Quem o pretender queira procurar na Rua dos Ferradores nº 361.

24) Aluga-se uma preta para casa de algum senhor solteiro ou viúvo. Quem a quiser vá ao Beco do Trem nº 24.

25) Na Rua de São Diogo defronte do nº 28 se precisa alugar uma mucama que saiba coser, lavar, engomar, cozinhar, e de boa conduta. Quem a tiver pode procurar o número acima, das 2 horas em diante.

26) Quem quiser alugar uma ama com muito bom leite dirija-se à Rua da Glória nº 88. Advertese que é parda.

27) A quem lhe faltar um preto de Nação Moçambique que foi achado no mato da Gávea, pode procurá-lo na Tijuca, na fazenda da Condessa d’Amerival, que dando os sinais certos o entregará.

28) No dia 26 de dezembro, fugiu uma preta de Nação Cabinda, muito ladina, de nome Maria, espigada e delgada de corpo, tem espinhas na cara, é de idade de 18 anos e levou vestido de chita cor de palha, com rosetas de topázios brancos com uma pedra verde no meio e um xale de lã encarnado com bordadura estreita. Quem a levar à Rua do Príncipe em Valongo nº 29 será pago do seu trabalho.

29) Na Praia do Saco do Alferes nº 107, vende-se uma preta da Nação Quilimano, em boa idade, sabe lavar e cozinhar o ordinário, tem uma cria de um mês e meio, e vende-se por preço cômodo.

30) Quem tiver e quiser vender pretos e pretas ladinos, dirija-se à Rua do Valongo nº 91 a qualquer hora do dia.

31) Vende-se dois rapazes, um pardo e um preto, ambos de idade de 8 para 9 anos, bonitos, próprios para tudo quanto se quiser. Quem os pretender dirija-se à Rua de São Pedro da Cidade Nova nº 48.


Fim do conteúdo