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Visões do apocalipse

23 de outubro de 2023

Provocador desde o título, Não espere muito do fim do mundo, do romeno Radu Jude, é um dos filmes mais desconcertantes da 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Vamos a ele.

De início, parece que estamos diante de três filmes diferentes, alternados ali arbitrariamente. Num deles, rodado em preto e branco de alto contraste, uma mulher dirige enlouquecida pelo trânsito de Bucareste, vociferando contra tudo e contra todos. Em outro, filmado em cores nos anos 1980, uma taxista percorre as mesmas ruas e conversa com seus passageiros. Por fim, uma jovem figura careca e de barbicha interpela o espectador em breves e sarcásticas lives de TikTok.

Aos poucos se esclarecem os nexos entre esses três planos narrativos. A mulher que roda por Bucareste e arredores nos dias de hoje é Angela (Ilinca Manolache), uma espécie de faz-tudo de uma produtora de vídeo, cuja tarefa atual é entrevistar vítimas de acidentes de trabalho para uma campanha de prevenção de uma multinacional austríaca. A pessoa que faz as lives é ela mesma, transformada por efeitos digitais na performer andrógina Bobita. E as imagens coloridas da taxista, também chamada Angela (Dorina Lazar), foram extraídas de um filme romeno de 1981, Angela merge mai departe, de Lucian Bratu.

O modo como Radu Jude manipula esses três registros multiplica as camadas de significação da obra, traçando um painel das transformações sofridas pela Europa (e pelo mundo) nas últimas décadas e ao mesmo tempo radiografando as tensões e atritos da situação em curso.

 

Desbocada e lúcida

Desbocada, insolente, mas ao mesmo tempo lúcida ao extremo em face das contradições e injustiças sociais, a Angela atual catalisa toda a loucura de um planeta que parece prestes a explodir.

Quem viu o longa anterior de Radu Jude, Má sorte no sexo ou pornô acidental (2021), não se surpreenderá com a sem-cerimônia com que ele lança mão de diversos recursos heterogêneos e heterodoxos. Um deles, por exemplo, foi trazer para a narrativa atual a veterana atriz Dorina Lazar, retomando o papel da Angela taxista que ela encarnou 42 anos atrás, hoje uma senhora aposentada. Outro achado foi incorporar ao relato o cineasta alemão Uwe Boll, que concede uma entrevista desaforada à outra Angela, a da produtora de vídeo.

Mas a façanha mais notável desse novo filme, em termos formais, é o longo e riquíssimo plano fixo final, em que o que deveria ser o depoimento de um ex-funcionário sobre o acidente de trabalho que o deixou paraplégico se converte numa cínica e dolorosa aula sobre desigualdade social e manipulação política em tempos de realidade virtual. O fim do mundo como deboche.

A seguir, alguns outros títulos que merecem ser destacados do mar de filmes da mostra paulistana.

Anatomia de uma queda, de Justine Triet. O vencedor da Palma de Ouro de Cannes gira em torno da morte violenta de um escritor no chalé de montanha onde estavam apenas ele, a esposa e o filho de dez anos com deficiência visual. Suicídio? Assassinato? Investigação policial, drama de tribunal e um tanto de psicanálise se entrelaçam aqui, numa proliferação de discursos que revela muito sobre a espinhosa relação entre os gêneros.

Afire, de Christian Petzold. Numa casa isolada no litoral da Alemanha, quatros personagens aproximados de modo mais ou menos casual acabam revelando suas diferentes posturas diante da vida, enquanto um incêndio florestal chega ameaçadoramente cada vez mais perto. Uma peça de câmara que atesta a habilidade de Petzold para pegar seus personagens no contrapé.

A besta, de Bertrand Bonello. Em 2044, num mundo dominado pela inteligência artificial, uma mulher (Léa Seydoux) se submete a uma “purificação de DNA”, revisitando com isso suas vidas passadas. Inspirada vagamente na novela A fera na selva, de Henry James, essa fábula ambientada em várias épocas fala muito sobre a condição humana (sobretudo feminina) em diferentes contextos históricos.

Na água e Em nossos dias, de Hong Sang-soo. O prolífico cineasta sul-coreano comparece com dois breves e enganosamente singelos estudos sobre as hesitações humanas diante dos desafios pessoais e profissionais. Num deles, um jovem ator resolve dirigir seu primeiro curta, com dois amigos e baixíssimos recursos. No outro, uma estudante e um aspirante a ator entrevistam um escritor consagrado. Em ambos, aquele modo sutil e irresistível com que Hong Sang-soo nos imerge no fluxo da vida.

Los colonos, de Felipe Gálvez Haberle. No sul do Chile, em 2001, um latifundiário criador de ovelhas contrata um militar escocês, um caubói americano e um mestiço local para abrirem uma rota segura que lhe permita escoar sua produção até o Atlântico, atravessando áreas em litígio com a Argentina e terras dos mapuche. Surpreendente e original “faroeste” sul-americano que diz muito sobre a colonização confusa e violenta da região, empreendida ao preço do extermínio indígena.

Mais pesado é o céu, de Petrus Cariry. No sertão do Ceará, entre uma estrada e um rio, uma mulher (Ana Luíza Rios) recolhe um bebê abandonado e em seguida encontra um homem (Matheus Nachtergaele), que a toma por mãe da criança. Forma-se assim uma estranha família provisória, que segue na estrada em busca de dias melhores. Esse misto de road movie, parábola bíblica e crônica social ganhou vários prêmios no festival de Gramado, incluindo o de melhor direção.

Sem coração, de Nara Normande e Tião. Num vilarejo pesqueiro-turístico do litoral alagoano, nos anos 1990, um grupo de meninas e meninos vive as aventuras e descobertas da adolescência, da iniciação sexual aos pequenos delitos, como a invasão de casas vazias. Um “filme de turma” original, perpassado pelas contradições sociais e por temas como a homofobia e a repressão dos desejos.