Segundo documentário de longa-metragem de Eduardo Coutinho, O fio da memória foi realizado em 1988 por ocasião do centenário da abolição da escravidão no Brasil. O filme entra em cartaz no IMS Paulista e no IMS Rio nesta sexta-feira, dia 11.
Retornar a O fio da memória (1991) não é só pôr a obra de Eduardo Coutinho em perspectiva a partir de um ponto de inflexão – é seu segundo longa documentário, filmado três anos após a finalização de Cabra marcado para morrer (1985), logo, continuidade imediata para uma obra de divisão e, como tal, laboratório explícito. É, ao mesmo tempo, reconstituir – ou, se não tanto, sussurrar – uma genealogia para o cinema brasileiro contemporâneo situado em certo espectro de urgências de racialização.
Como se o filme, feito por encomenda para pontuar o centenário da Lei Áurea, redispusesse a fecundação de imagens em torno da experiência de populações negras no país. Talvez notemos, na sua elucubração inventariante – uma investigação pautada em notar vestígios e ofertas históricas da escravidão –, um panorama de figuras recentemente encarnadas com a frontalidade da convicção e a monumentalidade do trauma em obras de diversos artistas, negras e negros, e com as quais o filme traça agora um intercâmbio de visões e distrações. A performance A árvore do esquecimento (2013), de Paulo Nazareth, o curta Travessia (2016), de Safira Moreira, o faz-tudo de Jota Mombaça, para incorrer em apenas algumas vizinhanças.
A postura derivada do jornalismo, marca de um dos pontos de enunciação do filme – e que, a depender do que se quer, talvez se ressinta de rasuras expositivas-ilustrativas (sociológicas, como em Bernardet) –, pôde já oferecer, no mínimo, uma cartilha ampla de verbetes; inscrições para formas de trabalho, ancestralidade, espiritualidade, arte popular, mas também da vulnerabilidade e da violência íntimas à experiência negra. Quando mais modesto, O fio da memória tem a justeza de uma introdução, com os limites e as oportunidades decorrentes. Quando mais precioso, a contiguidade entre documento e entrevista acarreta na espessura das aparições. Como disse Coutinho a Inácio Araújo, à época do lançamento, ele buscava aqui “as coisas que estão lá no fundo”. E, assim como acontecia em sua obra-prima, a investigação histórica parece, como condição processual, cercar um território onde, eventualmente, poderá cavar arroubos no fluxo de chances entre tomada e escrita.
Já nos primeiros minutos do filme, a apresentação de cartões-postais que, no século XIX, exibiam fotografias de pessoas escravizadas, seguida por retratos filmados, e também anônimos, de negros e negras no presente da filmagem, não será assim mera exposição indexical, mas anunciação fundante de um arco para a lacuna, se não do sequestro da possibilidade de rememorar, reconhecer e tolerar diante de um corpo perdido, um a um, para sua rostidade confiscada. Mais à frente, a Michelle Mattiuzzi da performance-filme Experimentando o vermelho em dilúvio (2016), que veio há pouco cruzar nossas ruas com uma máscara de ferro, habita inevitavelmente a imagem da Escrava Anastácia, entidade mítica de aparência similar que incorporou cicatriz da insurgência.
A volta à fotografia de trabalhadores que, em ação da PM carioca, foram aprisionados por correntes entre seus pescoços, e que escandalizava a imprensa em 1982: o intolerável a reportar o irrepresentável. Assim como a visita à favela de Chapéu Mangueira para conversa com Benedita da Silva, então expoente de representatividade e deputada federal – como não lembrar, hoje, Marielle Franco –, a sequência em que o filme reúne três daquelas vítimas da força policial vem, décadas depois, confirmar a contundência desses documentos a uma história de “h” maiúsculo, ainda que, como em Cabra marcado..., atravesse o possível, o plausível e o desejável. Como veremos em ambas as entrevistas, esta é essencialmente uma pesquisa de Eduardo Coutinho, e o que está “lá no fundo” pede as condições da escuta; o acesso às notas ao mesmo tempo testemunhais e romanescas do relato individual. “Quem quer falar? Pode falar o que quiser”, diz o entrevistador em um centro de acolhimento a jovens abandonados.
Neste sentido, a vontade genuína de ouvir lastreia, como o que há de mais precioso a se descobrir, a outorga de um fio de memória alternativo, persistente. Do fim ao princípio, ao longo de duas horas, se ora a voz de Ferreira Gullar faz as vezes de uma consciência impessoal narradora, em terceira pessoa, ciente de razoável factualidade das coisas do mundo, ora é interpelada ciclicamente pela de Milton Gonçalves, que reencena registros escritos e falados deixados por Gabriel Joaquim dos Santos, filho de escravos nascido em 1902 e morto em 1985, três anos antes das filmagens.
Sua voz secreta, precisa ou imprecisa, desnecessária à legibilidade institucional, por sua vez rasura a prioridade da ciência com a aurora fúnebre de tempo outro do espírito, descrevendo jardins, objetos que colecionava, seus sonhos; enumerando eventos e prospecções políticas; usando a palavra, em suma, desbastando a matéria da letra. A palavra de um corpo que viveu; fundo mais ou menos lá no fundo, mais fundo, para um filme de conversação histórica, feito da defasagem entre uma fala e outra, impregnado tanto pelo desconcerto da amnésia quanto pelo desejo de assimilação. “Aqui já foi um cativeiro muito perigoso. E aí ficou o Brasil por conta de nós próprio.”
- Luís Fernando Moura é pesquisador e curador.