Este post faz parte da mostra Arquivos, vídeos e feminismos, que este mês exibe Gravidade zero (2011), de Silvia Yuri Casalino
O primeiro ser vivo terrestre a ir para o espaço sideral em uma astronave construída por H. sapiens provavelmente o foi de carona. Uma bactéria, talvez, um micro-organismo ínfimo e, no entanto, capaz de desafiar, como afirma a filósofa Donna Haraway em Gravidade zero, de Silvia Casalino (2011), o sonho masculinista da separação total entre o “homem” com suas máquinas e o resto das coisas (natureza etc.). Oficialmente, contudo, o primeiro ser humano a realizar um voo orbital foi Yuri Gagarin, o cosmonauta soviético que, em 1961, disse as célebres palavras: “A Terra é…”, não, não. Que disse: “Não sei se sou o primeiro humano ou a última cadela no espaço”. Bom, segundo as fontes, pelo menos aquelas em língua inglesa e francesa, Gagarin teria usado a forma masculina dog ou chien, mas, como sabemos, somente – ou sobretudo – fêmeas errantes foram utilizadas pelo programa espacial soviético.
Cães errantes estão acostumados a uma vida dura; à fome, ao frio, aos extremos. Seriam, portanto, mais aptos como cobaias. As cadelas apresentavam ainda outra vantagem física: era mais fácil costurar o traje espacial em seus corpos. Uma legião de vira-latas foi recrutada, contudo foi a mítica Laika, em 1957, o primeiro ser vivo a fazer um voo orbital enquanto era cozida viva no Sputnik 2. Em 1960, Strelka e Belka passaram 36 horas orbitando no Sputnik 5 (Korabl-Sputnik 2) e tornaram-se os primeiros viventes a retornarem com vida de um passeio pela órbita terrestre. Todas mamíferas, todas canídeas, todas fêmeas, todas vira-latas, todas de rua, todas cobaias. Espécies companheiras?
Silvia Casalino, mulher cis, lésbica, italiana, engenheira aerospacial e empregada do CNES (a agência espacial francesa) notou que, paulatinamente, em razão de seu trabalho, vinha sendo absorvida pela mesma homogênea maioria codificada citadina, proprietária e, acima de tudo, masculina que a cercava; o contrário do que ela tinha em mente quando chegou ali – contaminar aquele ambiente com sua queerness. Casalino sonhava ser astronauta e, quando soube de uma vaga, inscreveu-se e se preparou como pôde, construindo um corpo-astronauta. Não foi suficiente. Silvia Casalino, mulher cis, lésbica, italiana, engenheira aerospacial, empregada do CNES e astronauta fracassada se fez cineasta, gerou um duplo de si e realizou um filme queer sobre o espaço, astronautas, cosmonautas, sobre o que é preciso para chegar lá – e por quê. Casalino tomou o partido das cadelas errantes.
Se dentro do CNES Casalino parece coincidir consigo mesma, fora dali parece que há uma cisão entre a Casalino-perspectiva-e-voz que dirige e narra o filme e a Casalino-corpo que o habita, o corpo dito falho, falto, a quem foi negado ser astronauta – “o que conta como um padrão?”, pergunta Haraway, referindo-se ao ideal-astronauta, “por que os padrões são tão restritos e a quem eles servem?”. Uma narra, reflete; a outra se insere, se infiltra na imagem. Os Mercury 7 – os primeiros sete astronautas estadunidenses –, lembra-nos a realizadora, eram todos homens, brancos, protestantes, casados e pilotos de jato. Casalino não se interessa por eles. Seu filme é literalmente um zigue-zague por depoimentos de mulheres que foram ao espaço ou tiveram um papel importante nessa aventura. O uso da palavra aventura aqui é proposital, pois Gravidade zero se interessa pela viagem espacial, não pela conquista ou corrida. As entrevistadas enumeram suas “alegrias extraterrestres”, contam sobre suas séries de ficção científica favoritas e fazem os espectadores entenderem como os sistemas de transporte da Enterprise realmente existem, levando, trazendo e transformando quem neles entra, por exemplo.
John Glenn, o primeiro dos sete a fazer um voo orbital, em 1962 (depois que Enos, o infante chimpanzé camaronês sofreu mais de 70 choques em órbita para testar a segurança do procedimento), declarou, no ano seguinte, diante do Congresso dos Estados Unidos, a respeito da possibilidade de mulheres astronautas, que “os homens lutam nas guerras e pilotam os aviões, e isso é só mais um fato da nossa ordem social”. A noção de mulheres no espaço já rondava a ficção havia tempos, mas conta-se que, na mesma época, o ex-oficial da SS e então diretor do Centro de Voos Espaciais Marshall da Nasa Wernher Von Braun, referiu-se às mulheres do grupo que treinavam como os Mercury 7, mas foram impedidas de ir adiante, como “50 quilos de equipamento recreativo”. Não é de admirar que, no espaço (sideral e fílmico) sem homens de Casalino, Gene Nora Stumbough, pilota de aviões e uma quase astronauta estadunidense, que cresceu em plena guerra fria, use, pendurada no pescoço, uma medalha da soviética Valentina Tereshkova, a primeira mulher H. Sapiens no espaço.
A bióloga russa Adilia Kotovskaya, que discorre sobre as cadelas cosmonautas com um carinho singular – contando histórias de pedidos de perdão à Laika e do destino norte-americano de uma das filhotes de Strelka –, mantém a mesma convicção, 50 anos depois do voo de sua camarada, de que a mulher-cosmonauta e a mulher-mãe devem coincidir. Tereshkova pode ser compreendida, nesse sentido, menos como uma conquista feminina que como um experimento heterossexual russo. Depois de seu voo em 1963, ela se casou, teve uma filha e, embora tenha desejado, nunca mais retornou ao espaço. Tereshkova havia sido a própria mãe-Rússia encarnada, flutuando no cosmos. Como sugere Casalino, ela poderia ser também a Mulher na lua, de Fritz Lang (Frau im Mond, 1929). Única ficção científica dirigida por Lang além de Metrópolis (Metropolis, 1927), Mulher na lua é efetivamente uma aventura pulp, com cientistas, bandidos, planos roubados, foguetes e uma montanha de ouro na lua. Nele há, contudo, sem alarde, a presença de uma mulher cientista e astronauta, Friede (paz, em alemão), que abandona o noivo para ficar com o cientista Helius, o sol, na lua. Mais um mito (duplamente) heterossexual. Embora tudo isso seja verdade, a existência de Tereshkova também o é; até mesmo a vontade da cientista no filme de Lang é. Tereshkova é uma heroína para muitas meninas mulheres astronautas. É também uma mulher de carne e osso. A primeira mulher H. sapiens no espaço.
Em Houston, Houston, do you read?, novela de James Tiptree Jr. publicada em 1975, um evento extraordinário faz com que uma astronave ordinária, isto é, com uma tripulação de três homens, seja catapultada para o futuro. Lá, eles são resgatados pela humanidade do futuro, composta inteiramente por mulheres e alguns homens trans. Tiptree aciona três tipos de masculinidades e suas respectivas reações para esses homens que vieram do passado de seu futuro, o presente de 1975: a do patriarca, que quer salvar as mulheres do pecado de se amarem, de não terem governo centralizado e tudo o mais; a do violador, que considera as mulheres brinquedos sexuais às quais ele tem direito natural; e a do fracassado na sociedade dos homens, uma pessoa que se considera covarde e não oferece risco. No clímax da novela, os dois primeiros mostram toda a violência física que se intuía em seu discurso; o terceiro finalmente consegue superar a covardia e passar à ação, agindo em conjunto com as mulheres e o homem trans presente na cena.
Casalino insiste na figura do ciborgue harawayano. A última frase do “Manifesto Ciborgue” é a epígrafe de seu filme – “Prefiro ser uma ciborgue a uma deusa”. Mas o que é um ciborgue nessas condições? Em Primate Visions, ao tratar de Enos, mas também de HAM, outro chimpanzé infante e camaronês utilizado pelo projeto Mercury da Nasa, a filósofa estadunidense faz uma observação preciosa:
Uma ciborgue existe quando dois tipos de limites são simultaneamente problemáticos: 1) aquele entre animais (ou outros organismos) e humanos, e 2) aquele entre máquinas autocontroladas e autogovernadas (autômatos) e organismos, especialmente humanos (modelos de autonomia). A ciborgue é a figura nascida da interface de autômato e autonomia.[1]
Em Gravidade zero, Haraway diz a Casalino que todos em sua geração eram ciborgues porque “o mundo se tornava um sistema de inteligência de comando, controle e comunicação, um C3I”, identificando o C3I à ciborgue. Em um sistema militar desse tipo, altamente setorizado, e entretanto comunicante, o nível de autonomia (do sistema ou das pessoas) pode ser elevado ou tender a zero. Parece, portanto, estar de acordo com a definição de Primate Visions. Não se trata apenas de ser uma ciborgue, como de forma tão paradigmática Enos ou Laika foram – os animais são os autômatos por excelência da história do pensamento ocidental ao mesmo tempo que são autônomos –, mas de viver em um mundo (não um planeta) que é ele mesmo uma enorme ciborgue. Mas, se é assim, então o que significa sair, o que é o espaço que Casalino busca por meio de seus encontros com mulheres, paisagens e, curiosamente, bichos submetidos à gravidade zero?
Talvez possamos ainda encontrar uma última pista em Primate Visions, no momento em que dois loci privilegiados, “a natureza selvagem” e “o espaço” são discutidos como aspectos de um mesmo sistema de desejo. Não é despropositado, dado que Gravidade zero abre no Centro Espacial da Guiana que, apesar do nome, pertence à França. Ou seja, é um filme que começa nos trópicos. Haraway diferencia os ecossistemas daquilo que seria uma ideia onírica de natureza selvagem, mítica, “densa, úmida, corpórea, cheia de criaturas sensuais que se tocam íntima e intensamente”:
Em contraste, o extraterrestre é codificado para ser totalmente geral; trata-se de escapar do limitado globo em direção a um antiecossistema chamado, simplesmente, espaço. O espaço não tem a ver com as origens do “homem” na Terra, mas com o futuro dele, os dois principais tempos alocrônicos da história da salvação. O “espaço” tem propriedades formais; pode ser curvado, por exemplo, como uma figura matemática topológica. O espaço e os trópicos são ambos figuras tópicas utópicas na imaginação ocidental, e suas propriedades opostas significam dialeticamente origens e fins para a criatura cuja vida mundana está fora de ambos: o homem civilizado. O espaço e os trópicos são “alotópicos”, isto é, estão “alhures”, para onde o viajante vai para encontrar algo perigoso e sagrado.[2]
Mae Carol Jemison, a primeira mulher negra no espaço, fã de Star Trek, da tenente Uhura e de Nichelle Nichols, ao fim de um depoimento vibrante, afirma que a viagem espacial “é uma de nossas melhores fantasias”. Será possível ir ao espaço (ou aos trópicos) sem buscar algo perigoso e sagrado, mas experimentar, como Claudie Haigneré, “alegrias extraterrestres” (ou terranas?) Em outra entrevista, a astronauta contou ainda sobre outra alegria inesquecível: aquela que experimentou depois de uma viagem espacial, quando finalmente saiu da cápsula e pôde sentir o cheiro único da Terra. “Somos de fato seres terrestres”, ela concluiu. É possível que o espaço seja uma fantasia não colonial, não bélica, não destrutiva, não egoica, não heroica? Uma fantasia que não seja nem originária nem teleológica? Será que ainda há “lugar na bolsa das estrelas”, como pensava Ursula K. Le Guin?
No belo filme de Casalino, o espaço, queerizado, guarda a possibilidade de fazer comunidades outras, diferentes daquelas constituídas por rígidos e estreitos padrões. Contém, na sua sedutora vastidão, a chance de um muito real sonho mito viagem sideral e dissidente da sociedade dos homens; aqui, lá, onde mais for possível.
[1] HARAWAY, Donna. Primate Visions: Gender, Race, and Nature in the World of Modern Science. Nova York/Londres: Routledge, 1989, p. 139.
[2] Ibidem, p. 137.