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A polifonia ganha volume

14 de agosto de 2024

Sessão Indeterminações: Pretitudes em atrito está em cartaz no cinema do IMS Paulista e IMS Poços em agosto.

 

Lançados em um intervalo de 31 anos, Pequena África (2001) e Uma nega chamada Tereza (1970) incorporam diferentes formas de entender e lidar com a ancestralidade afro-brasileira e, vistos em sequência, nos indicam rotas para as nuances da agência política da negritude. Enquanto o curta de Zózimo Bulbul é permeado pela busca de uma conexão histórica perdida e apagada com um continente africano idealizado, o longa de Fernando Coni Campos (na época visto como um filme despolitizado, recebendo pouca nota da crítica de seu tempo) é palco de um encontro África-Brasil em que o espelho se parte e os pontos de contato são as dessemelhanças (e não o reflexo), dando corpo a um ideal dinâmico, de ancestralidade em movimento.

Uma nega chamada Tereza é produzido no período em que outros ídolos musicais da juventude chegavam aos cinemas interpretando versões ficcionais de si mesmos – os casos mais famosos são o de Roberto Carlos na trilogia dirigida por Roberto Farias e, antes dele, os Beatles em Os reis do iê-iê-iê (A Hard Day’s Night, 1964) e Help! (1965). Mas o longa protagonizado por Jorge Ben não parece ter causado a mesma excitação. A atriz pernambucana Aurora Duarte, distribuidora do filme, esteve no Recife para lançá-lo e declarou ao Diário de Pernambuco: "Não é de fato um filme excelente. Não. Ele é simplesmente… Joia! Um filme de cuca, pra gente de cuca. É a primeira produção do 'cinema doido' nacional. E tem um som da pesada para curtir adoidado." A coluna social do mesmo Diário de Pernambuco relatou que o filme foi "um sucesso de público" no cinema Art Palácio.

Fora isso, a repercussão não parece ter sido tão grande (nem mesmo positiva). Segundo o pesquisador Alexandre Pires, da Universidade Federal Fluminense (UFF), os jornais cariocas, como O Globo, não fizeram menção ao longa. Na Folha de S.Paulo, foi descrito como "apenas uma fita de boas intenções. Uma frustrada tentativa de se captar um público que, depois desse filme, vai continuar vendo Jorge Ben em shows." O debate racial do filme parece ter passado sem nota da crítica, ecoando a visão generalizada de que Ben não era um artista politizado. No entanto, como observou Allan da Rosa, coautor do livro Balanço afiado, Jorge Ben, como tantos artistas negros, disfarçava sua contundência ao afirmar uma ausência de luta onde pulsavam provocações.

Na trama do filme, uma quadrilha de golpistas liderados por Barbarella (Pepita Rodrigues) bola um plano infalível: substituir o favorito ao prêmio, Jorge Ben, por um sósia aliado ao grupo, para assim ficar com o prêmio da competição musical. Em paralelo, o casal de africanos Makeba Za-Retê ("uma ex-pistoleira profissional, museóloga nas horas vagas e que não sabe dizer nada a ninguém", interpretada pela atriz e modelo Marina Montini) e Dr. Silvanius ("um verdadeiro pancada querendo provar que legal mesmo é o crioulo e nada mais") aterrissam no Brasil para conhecer o cantor e assistir ao festival. O desencaixe – ou dissonância, pode-se dizer – dos africanos frente a símbolos da cultura afrodiaspórica dão corpo a uma miríade de contradições e fraturas em visão essencialista e unívoca de identidade negra – em uma de suas primeiras aparições, a dupla ri descontroladamente ao ver uma figa, como quem desdenha do amuleto de proteção espiritual usado nas religiões de matriz afro.

O filme abre com "Brasil eu fico", um dos hinos nacionalistas de Wilson Simonal – outro músico negro visto como alienado ou mesmo pró-militares. Sob um fundo vermelho, letras brancas cintilam os slogans da ditadura: "Ninguém segura este país". Em outro momento, Dr. Silvanius está rodeado de homens brancos, que lhe perguntam sua opinião sobre líderes do movimento negro. Com um sorriso aberto, o personagem interpretado por Antonio Pitanga debocha de Martin Luther King e dos Panteras Negras e os desqualifica. Bom mesmo é o Rei Pelé, o Fio Maravilha: "A força negra, a beleza negra, o humor negro", afirma.

Cena de Uma nêga chamada Tereza, de Fernando Coni Campos

Após assistirem à apresentação de Jorge Ben no Festival da Canção, os visitantes africanos derretem-se encantados: "Espetacular! Que mocotó!", suspira Makeba, que, então, decide ficar de vez no Brasil, rompe com Silvanius e muda seu nome para Tereza, tornando-se a nega que dá nome ao hit de Ben e ao filme. "Morenice sim, black power não!", exclama triunfante o narrador ao fim do filme. Soma-se isto ao fato de os personagens africanos falarem em idioma indiscernível, que mistura onomatopeias aleatórias com saudações nagô e iorubá a orixás, e poderíamos nos perguntar: estamos diante de caricaturas racistas que nada produzem além de uma reiteração dos mitos da democracia racial?

Paradoxalmente, encerrar-se nessa conclusão seria escantear a presença preta da música de Jorge Ben, que povoou a música brasileira com o imaginário de Zumbi, Muhammad Ali, Fio Maravilha pelas lentes do mistério alquimista. Assim como o samba esquema novo reconfigurou os pilares do samba, os africanos do filme parecem encontrar na negritude brasileira de Jorge Ben uma outra coisa: não é black power norte-americano, não é Pantera Negra, não é África. Ao ouvir Jorge Ben, parecem encontrar elos, mas não um espelho de si mesmos. Jorge Ben, no fim das contas, não pode ser substituído nem pelo seu sósia mais semelhante.

Os planos de Barbarella e sua gangue fracassam. O mocotó azeda, e todos vão para a prisão, enquanto Pedro Paulo, o sósia do Jorge Ben, encontra uma forma de tornar-se piloto de corridas automobilísticas no exterior. Aparentemente submisso e ingênuo, o preto do interior usa a ciência da malandragem para driblar as condições que lhe foram impostas e, ao final, sair por cima. Pedro Paulo, Jorge Ben e Uma nega chamada Tereza apontam para o fazer político insidioso, que é operado pelas costas, no silêncio, nas sombras.

Em Pequena África, o tom é bem diferente. A visão política é bem mais pronunciada e definida. O curta de Zózimo Bulbul apresenta um olhar esmiuçado em prol do reconhecimento e da valorização da região da Pedra do Sal, praça Mauá, Gamboa e Santo Cristo, onde a população negra escravizada instalou-se no Rio. Trata-se dos espaços físicos (os casarios, o Cemitério dos Pretos, o Valongo, a Casa da Engorda) mas também da memória de uma cultura viva (o samba, a comida, a religião, as relações familiares), na região que o sambista Heitor dos Prazeres chamou de "África em miniatura". Enquanto Uma nega chamada Tereza nos lança em torno de experiências negras em mutação, neste curta a negritude é uma experiência determinada a partir de africanidade vista sob a lógica da remanescência – a África que veio ao Brasil e que, apesar de escondida, enterrada, permanece presente na vida dos habitantes daquela região e dos negros como um todo.

As imagens bucólicas, estilo cartão-postal, acompanhadas por uma versão suave da música "Cordeiro de Nanã", ao fundo enquadram uma visão idílica de África, fazendo do continente uma espécie de geografia ficcional e denominação geral para ancorar uma história comum. Todo aquele que nasce nesta terra ou partilha da mesma cor ou ancestrais é um irmão ou irmã. Mas como falar em história comum se um dos resultados do comércio de escravizados no Atlântico foi precisamente a dispersão pelo mundo, as quebras intransponíveis, a descontinuidade? No ensaio “As formas africanas de autoinscrição”, o filósofo Achille Mbembe provoca: "Como se pode inscrevê-los [os negros] em uma nação definida racial e geograficamente, quando a geografia e a história os arrancaram do local de onde seus ancestrais vieram?".

No final do curta, o ator e cineasta Waldir Onofre conversa com crianças, que, após terem aprendido sobre a história do local, comentam que a Pequena África deveria se tornar "ponto turístico". Anos depois, o projeto tornou-se realidade. Mas por um projeto higienista, movido a especulação imobiliária, que excluiu aqueles que historicamente ocuparam a região. Tornar-se monumento não basta. A experiência da vida, cultura e arte negra nos demanda também um exercício de imaginação política.

No encontro entre os dois filmes, a polifonia ganha volume: Pequena África inclina-se para uma valorização da cultura negra tendo como estratégia o estabelecimento de pontos de origem. Uma nega chamada Tereza, por outro lado, nos faz pensar a negritude em sua qualidade anoriginal e irrastreável, como diria Fred Moten, em um enredo que faz diversos acenos ao cinema de gênero (às vezes filme de aventura, em outros momentos um filme de espionagem e em outros pontos vira um filme de cangaceiro) e uma montagem fragmentada, que ficou ainda mais Frankenstein após os cortes da censura – segundo o Diário de Pernambuco, foram "18 tesouradas".

Com esses remendos, a trilha sonora com as músicas de Jorge Ben acaba por sustentar o filme com as canções que oscilam em um amplo espectro de pretitudes, de uma versão solar de "Asa branca" à explosiva bossa de "Bicho do mato" e uma versão acústica, cantada em falsete, de "Nascimento de um príncipe africano", ouvida na parte final do filme, quando o amigo africano de Dr. Silvanius lhe diz: "Estou é de saco cheio de ficar discutindo crioulo, branco, briga de raça. Vou é tomar um grande porre, entrar de cabeça no Carnaval. E endoidar de vez. Jorge Ben, a Nega Tereza e o Gilberto Freyre que fiquem cada um na sua." Ao fim do longa, o príncipe africano (re)nasce ao abrir o peito para a experiência do Carnaval brasileiro, embaralhando os sentidos supostamente originários da diáspora negra, coroando-se na folia de fevereiro sem qualquer pretensão à pureza ao mesmo tempo que subverte a democracia racial pela festa.