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A vida de dentro: Uma página de loucura + A esposa solitária

17 de janeiro de 2024
Da esquerda para direita: cena de Uma página de loucura, de Teinosuke Kinugasa e cena de A esposa solitária, de Satyajit Ray

Ela se foi quando a madrugada começava...
Minha mente procurava me consolar, dizendo: “Tudo é vaidade”.
Irritei-me e respondi: “Esta carta sem abrir, com o nome dela, e este leque de palmeira, que ela bordou de seda vermelha com suas próprias mãos – estas coisas não são verdade?”
- Do poema "A fugitiva" ("The Fugitive", 1925), de Rabindranath Tagore[1]

 

No entanto, o céu azul-cobalto me deu uma sensação refrescante. Senti que nasceriam belos cenários na minha imaginação.
- Do conto “O homem que não ri” (“Warawanu otoko”, 1928), de Yasunari Kawabata[2]

 

A partir da segunda metade do século XIX, quando o Japão entrou na Era Meiji (“governo iluminado”) em 1868, o país passou por um rápido processo de modernização, deixando de ser uma sociedade feudal e adentrando no mundo da industrialização. O período que se sucedeu, chamado deera Taishō (“grande retidão”), começou em 1912 e deu continuidade ao desenvolvimento industrial e social japonês, com crescentes incursões militares por toda a Ásia. O Japão agiu contra a Alemanha durante a Primeira Guerra Mundial por meio de seu serviço naval e tomou posse de territórios coloniais alemães no extremo oriente, além de se apossar de minas de metal na China, e assim expandir sua produção de material bélico. Ao término da guerra, o Japão deixou de ser um país devedor para se tornar credor. Mas, apesar da aparência de prosperidade, o país enfrentava problemas com desastres naturais, a fome (devido à superpopulação), a falta de leis trabalhistas, que provocavam protestos organizados por sindicatos locais e demandas populares pelo sufrágio masculino total. A era Taishō foi conduzida pelo imperador Yoshihito, uma figura cronicamente doente, sem carisma e recluso, sobre o qual se especulava possuir distúrbios mentais.

Diferentemente do Japão, a Índia, na segunda metade do século XIX, em particular a região de Bengala e sua capital Calcutá, vivia o auge da ocupação britânica. Essa ocupação, que começou em 1858 e durou até 1947, também resultou em uma modernização tanto tecnológica quanto social, com a industrialização, a construção de ferrovias e a implementação do telégrafo e do sistema educacional britânico. A imposição de uma educação ocidental e a proibição dos casamentos de crianças e da tradição da sati (imolação da viúva na fogueira funerária do marido) por um lado provocaram revoltas, mas, por outro, foram vistos por uma parcela da elite indiana como um avanço para o país. Esse momento da colonização coincidiu com o auge de um movimento nas artes e ciências bengaleses chamado de “renascimento bengalês”, cujas figuras proeminentes propuseram reformas sociais no interesse de afirmar uma identidade regional e nacional.

Um dos últimos mestres do movimento foi o escritor, filósofo e teólogo Rabindranath Tagore (1861-1941), que em 1901 fundou uma escola coeducacional ao ar livre em sua aldeia, Santiniketan, voltada para o ensinamento da harmonia entre o ser humano e a Natureza em sua totalidade, em contraponto ao entendimento hierarquizado e segmentado oferecido pelo sistema europeu. A meta da instituição para seus alunos, Tagore escreveu, era “não ter simples escola para seu ensinamento, mas um mundo cujo espírito dirigente seja o amor pessoal”.[3] No mesmo ano, Tagore publicou sua famosa novela O ninho partido (Nastanirh, 1901), sobre um casamento que desintegra. Vinte anos depois, a escola de Tagore se tornou uma universidade chamada Visva-Bharati (“comunhão da Índia com o mundo”), cujo lema era “Onde o mundo faz morada num único ninho”. Em 1921 também nasceu Satyajit Ray (1921-1992), futuro aluno da universidade de Tagore e o cineasta que transformaria O ninho partido em filme.

Ainda em 1921, o escritor japonês Yasunari Kawabata (1899-1972) publicou seu primeiro conto, durante seus estudos na Universidade Imperial de Tóquio. Kawabata entrou na universidade com a intenção de estudar literatura na língua inglesa, e tinha uma admiração particular pelo trabalho de Tagore, que muitas vezes traduzia suas próprias obras do bengali para o inglês – algo que o ajudou a se tornar o primeiro não europeu a vencer o Prêmio Nobel de Literatura, em 1913. O adolescente Kawabata tinha visto Tagore em 1916, durante uma viagem que o indiano fez ao Japão, e ficou impactado pela visão de quem ele chamou de um “antigo mago oriental”.[4] Mas, conforme avançava em seus estudos, Kawabata buscou entender quais poderiam ser as características principais de uma escrita essencialmente japonesa e mudou seu foco para a literatura nacional.

Kawabata escreveu breves contos experimentais ao longo dos anos 1920 e ganhou fama no início do 1926 com a publicação da sua novela A dançarina de Izu (Izu no odoriko, 1926), uma história de amor em um ambiente rural entre um estudante universitário e uma dançarina viajante, que, como em muitas obras do autor, utilizou frases simples para evocar uma sensação melancolicamente agridoce do passado recente. Ao invés de uma simplória narração de eventos, Kawabata trabalhou em seus escritos com linguagem e imagens ambíguas para caracterizar personagens modernos com estados psicológicos em transformação, espelhando o Japão volátil de sua época. Ele compartilhou interesses estéticos com outros autores japoneses de sua geração, que chamavam seu movimento literário de Shinkankakuha, ou “neossensorialismo”. O grupo contou com colegas como Yokomitsu Riichi, que declarou em um manifesto: “O fenômeno da percepção para o Shinkankakuha é, para dizer brevemente, a sensação intuitiva direta que descasca os aspectos externos naturalizados e salta para dentro da coisa em si”.[5]

Esses autores se interessavam não apenas pela literatura, mas também pelo então novo fenômeno de cinema no Japão, que já na década de 1910 passava por sua própria revolução estética em prol de uma arte desconectada da literatura e pintura, algo que os críticos da época chamavam de “Movimento de puro cinema” (Jun'eigageki undō). Um importante expoente do cinema japonês veio a ser um colaborador do grupo Shinkankakuha, o cineasta Teinosuke Kinugasa (1896-1982), que começou sua carreira cinematográfica no estúdio Nikkatsu como um onnagata – um ator masculino, tradicional do teatro kabuki, que era treinado para a interpretação de papéis femininos – e migrou para a direção de cinema após a indústria cinematográfica começar a contratar atrizes. Kinugasa dirigiu mais de 30 filmes no início dos anos 1920, entre melodramas e filmes de época, para a companhia Makino Produções. Seu primeiro filme como produtor independente, além de cineasta, nasceu a partir do que ele caracterizou como “o forte desejo de fazer apenas uma vez o tipo de filme que eu queria criar, livre do controle de qualquer pessoa”.[6]

Os escritores do Shinkankakuha pareciam parceiros ideais para a primeira produção da Liga Kinugasa de Cinema, e eles então começaram sua colaboração em 1926. Kawabata ficou responsável pela elaboração do roteiro, uma história contemporânea que partiu de uma experiência de Kinugasa. Ao sair de um trem para visitar os escritores, o cineasta se deparou com a comitiva de um “certo homem nobre”, sobre o qual as pessoas ao entorno cochichavam a respeito de sua doença mental. Esse homem, ele descobriu, era o imperador Yoshihito, que morreria de pneumonia no final do ano, colocando fim à era Taishōe dando lugar a era Shōwa (liderada por seu filho, Hirohito).[7]

Assim nasceu Uma página de loucura (Kurutta Ichipeiji, 1926), cuja história foi ambientada em um manicômio e cuja pesquisa foi alimentada por uma visita que Kinugasa fez ao hospital Matsuzawa, um centro psiquiátrico público em Tóquio, fundado em 1879. Ali o diretor teve uma epifania sobre a possível existência de um drama por trás da vida de um doente mental, e, sob a influência de um Japão belicoso, violento e preconceituoso, optou por retratar a história de uma mulher que enlouquece devido à brutalidade do marido, um ex-soldado naval, e da filha do casal, que teme expor ao noivo a situação de sua mãe. O passado da família é revelado pelos olhos e pelas memórias da mulher internada (interpretada por Yoshie Nakagawa) e do marido (Masao Inoue, um grande astro do cinema silencioso japonês que abriu mão de seu cachê para viabilizar a produção), que passa a trabalhar como zelador do manicômio para ficar perto de sua esposa.

Embora tenha havido disputas em relação a quem foi responsável por quais detalhes do filme, e, na época, Kawabata tenha dito que, devido a uma enfermidade, havia conseguido entregar apenas um argumento incompleto antes do início das filmagens, a versão do roteiro publicado pelo autor em 1926 corresponde muito ao filme final. O roteiro de Kawabata dá ênfase ao aspecto surrealista da história, ao mostrar diferentes situações corriqueiras do local. No início, por exemplo, passamos pelas portas do manicômio e somos recebidos por uma bailarina ensandecida (a dançarina Eiko Minami), frenética em seus movimentos e dançando até os pés sangrarem. Somos levados a crer que ela se apresenta em um teatro, mas, em seguida, revelam-se as grades de seu dormitório. Após esse primeiro contato, encontramos o casal que se tornará protagonista do filme, cada um preso em seu próprio espaço mental.

A representação das alucinações dos personagens ao longo de Uma página de loucura é associada por historiadores à influência de filmes experimentais europeus, como os franceses A roda (La Roue, 1923), de Abel Gance, e A sorridente madame Beudet (La Souriante madame Beudet, 1923), de Germaine Dulac, em sua evocação de estados mentais por meio de superimposições. Há, também, traços de obras do Expressionismo alemão, como A última gargalhada (Der letzte Mann, 1924), de F. W. Murnau – um filme que Kinugasa declarou adorar e que, como Uma página de loucura, não possui intertítulos para explicar a ação, deixando o espectador livre para construir sua própria narrativa com as imagens.

A sequência final do filme provavelmente veio de Kawabata, na qual os pacientes e membros da equipe do manicômio colocam máscaras brancas evocativas do teatro como se tivessem consciência de serem personagens em um drama. Kawabata comentou na época para a revista Geki to engei [Drama e entretenimento] que sua intenção com essa sequência era utilizar a ficção para “salvar” o zelador, sua esposa e os outros personagens do filme, e “encerrar o sofrimento deles com um sorriso gentil”.[8]

Uma página de loucura foi lançado nas salas japonesas de cinema em setembro de 1926, inclusive em espaços geralmente reservados para filmes estrangeiros. Além de ser visto como uma obra importante, por trazer à luz a condição de pessoas com problemas mentais, o filme foi celebrado por críticos como uma revolução estética e uma abertura para as possibilidades artísticas do cinema nacional. Mas ele não teve, na época, o impacto merecido, pois se perdeu alguns meses após seu lançamento, algo infelizmente comum na rápida indústria cinematográfica japonesa da época.

Kawabata nunca mais escreveu para o cinema, embora tenha incorporado suas qualidades imagéticas em diversos contos e romances ao longo dos anos (inclusive alguns diretamente inspirados nas filmagens de Uma página de loucura). Kinugasa conseguiu fazer mais uma produção independente, Encruzilhada (Jûjiro, 1928), uma brilhante tragédia experimental sobre a relação entre dois irmãos em Tóquio (então Edo) em um passado distante, que se tornou o primeiro filme japonês a ser exibido na Europa. Depois, ele voltou a trabalhar no sistema de estúdio por mais de 35 anos, sempre em busca de inovação – como em O portão do inferno (Jigokumon, 1953), um drama de samurai inspirado em pinturas de rolo tradicionais japonesas com tons cuidadosamente saturados, que foi um dos primeiros filmes nacionais coloridos.

Com O portão do inferno, Kinugasa se tornou o primeiro cineasta japonês a vencer o prêmio principal no Festival de Cannes. Ao mesmo tempo que isso acontecia, Satyajit Ray estava finalizando seu longa-metragem de estreia, A canção da estrada (Pather Panchali, 1955), um drama neorrealista ambientado na Bengala rural da década de 1910, que acabou sendo a primeira parte de uma trilogia renomada. Embora a história das lutas diárias de uma família bengalesa na Trilogia de Apu tenha se baseado em dois romances autobiográficos do autor Bibhutibhushan Bandyopadhyay, o ritmo e tom e as imagens humanísticas foram também inspirados pela sensibilidade de Rabindranath Tagore.

Ray estudou artes orientais na Visva-Bharati entre 1940 e 1942, um período que envolveu a morte de Tagore, em 1941. Anos depois, ele disse que “Santiniketan me ensinou duas coisas – olhar para pinturas e olhar para a natureza”.[9] Assim como Tagore foi um artista multifacetado, que além de escritor atuou como compositor e pintor, Ray foi um artista integral, dedicado principalmente ao cinema, para o qual escreveu roteiros, dirigiu, compôs a trilha sonora e desenhou pôsteres de seus filmes. Chegou a ser considerado o único discípulo direto de Tagore no discurso crítico e na imaginação popular de sua região.

O avô de Ray foi amigo de Tagore, e ambas as famílias pertenciam ao movimento progressista hinduísta Brahmo Samaj. Ao adaptar histórias de Tagore para o cinema, Ray demostrou interesse no desejo reformista do autor, em especial de expandir a participação das mulheres na sociedade. A deusa (Devi, 1960) baseia-se em um conto de Prabhat Kumar Mukhopadhyay, que, por sua vez, se inspirou em uma história contada por Tagore sobre uma família hindu ortodoxa na Bengala dos anos 1860, que é destruída após a jovem esposa do segundo filho ser percebida pelo patriarca como a reencarnação da deusa Kali. Três mulheres (Teen Kanya, 1961), comissionado junto a um documentário de Ray sobre Tagore pelo governo de Bengala Ocidental para homenagear o centenário do autor, adapta três contos para tratar de questões como alfabetização feminina, o direito da mulher de herdar os bens do marido e as desigualdades do casamento arranjado. Até A grande cidade (Mahanagar, 1963), adaptado de contos do escritor contemporâneo Narendranath Mitra e ambientado na Calcutá da década de 1950, explora temas tagoreanos na jornada de uma jovem mulher que desafia preconceitos ao deixar o espaço doméstico para procurar emprego pelo bem de sua família.

A grande cidade foi a primeira colaboração entre Ray e a atriz bengali Madhabi Mukherjee, que trouxe um olhar firme e marcante para o trabalho. Logo após a conclusão das filmagens, ele ligou para Mukherjee pedindo a ela que relesse O ninho partido em preparação para sua próxima empreitada. Eles então fizeram uma adaptação de não apenas um dos primeiros romances modernos na língua bengali, mas também uma obra com relevância particular na vida do próprio Tagore. A protagonista feminina da história, Charulata, foi vista por muitos como uma representação velada de Kadambari Devi, a esposa do dramaturgo e músico Jyotirindranath Tagore, que estimulou os talentos de seu irmão mais novo Rabindranath. A jovem mulher e o poeta compartilharam uma relação afetuosa e criativamente estimulante, porém platônica (algo comum em famílias bengalesas da época). Em 1884, quatro meses após o casamento de Rabindranath, Kadambari cometeu suicídio por motivos que nunca foram revelados. Ele a rememorou pelo restante de sua vida – como a modelo professada das mulheres bengalis que retratou em suas pinturas e seus desenhos e como a força não nomeada que guiou muitos dos seus poemas, suas histórias e suas composições musicais.

Para o filme A esposa solitária (Charulata, 1964), Ray manteve a trama básica da novela, um triângulo amoroso no final do século XIX entre a jovem Charu (Mukherjee), seu marido distante e mais velho Bhupati (interpretado por Shailen Mukherjee) e o primo do marido, o poeta Amal (Soumitra Chatterjee, que possuía uma semelhança física com o jovem Tagore). Porém, o diretor deu à personagem do título um protagonismo que é menos presente na obra literária. Na novela, somos inicialmente apresentados a Bhupati e aos aspectos psicológicos de um bhadralok – personalidade masculina burguesa bengalesa – de uma época em que a colonização britânica ainda era vista como um possível benefício para os indianos. O idealismo liberal ingênuo, somado a um racionalismo extremo, não permite que Bhupati, obcecado com a publicação de seu jornal autofinanciado de notícias políticas na língua inglesa chamado A Sentinela, enxergue os problemas de sua própria família, principalmente da esposa, que vive restrita aos aposentos do casarão. Tagore faz uma crítica ao novo homem indiano, que conduz o país à modernidade sem se atentar às necessidades particulares de sua cultura. O drama principal do livro reside no patriarca que admira o progresso europeu, porém não consegue adaptá-lo às necessidades de seu próprio povo.

Ao adaptar a história de Tagore em uma Índia recém-independente, Ray faz com que a situação de Charulata – uma nabina (“nova mulher”) submetida às tradições culturais e domésticas indianas – expresse a condição ainda conflitante do país. A abertura do filme apresenta, sem palavras e com uma câmera que acompanha nos detalhes os movimentos da personagem, o impulso de Charu para procurar a vida externa à casa. De sua “fortaleza”, ela observa energeticamente o movimento da rua através de um par de óculos de ópera, ou procura um romance em sua biblioteca, fazendo do ambiente doméstico um local de eterna espera, e não de trabalho. Quando ela e seu marido se cruzam pela primeira vez em um corredor da casa, ele mantém seus olhos fixados em um livro sobre política, sem enxergar sua esposa, que o observa. Depois, quando Bhupati pergunta onde Charu conseguiu tempo para bordar um lenço para ele, ela responde de forma ácida que tudo que ela tem é o tempo.

O tempo muda com a chegada de Amal, que, no filme, entra na casa literalmente acompanhado por uma tempestade. Bhupati propõe a seu primo, recém-chegado de seus estudos universitários, fazer algo prático, como ensinar Charu a expressar sua criatividade. Os dois se aproximam emocionalmente e formam uma sociedade literária secreta, cujo sigilo Amal eventualmente viola ao se tornar um autor público. Essa decisão, por sua vez, motiva Charu a publicar um ensaio rememorando sua aldeia nativa e a projetar sua vida interior para o mundo. A autonomia de Charu no filme, algo menos presente no livro (onde a decisão de publicar os textos dela, por exemplo, é tomada por Amal), aproxima Bhupati da esposa.

Já a relação entre Charulata e Amal atinge seu ápice em uma cena que não existe em O ninho partido. Eles saem da casa pela primeira vez para conversar no jardim, e Charu se senta em um balanço e entoa uma música sobre um cuco que cantou nas árvores, mas foi embora por um motivo que o coração não sabe. A música, “Phule Phule Dhole Dhole” [O abraço das flores], foi composta por Tagore em 1882, e o gesto de colocá-la no filme destaca o aspecto biográfico dessa história. Assim como Tagore deu nova vida a Kadambari Devi, Ray mostra Charu florescendo em diálogo com os sentimentos do autor.

A esposa solitária estreou nas salas indianas em abril de 1964, um mês antes da morte por causas naturais do primeiro-ministro Jawaharlal Nehru, líder inaugural da Índia independente e pai da futura primeira-ministra Indira Gandhi. O filme foi um sucesso de bilheteria e crítica, apesar de haver debates sobre as mudanças em relação ao livro, que até levou Ray a defender suas escolhas em uma carta a um jornal bengali. No ano seguinte, ganhou dois prêmios no Festival Internacional de Cinema de Berlim, e posteriormente virou a adaptação cinematográfica mais celebrada da obra de Tagore, além do filme preferido de Ray dentre seus trabalhos.

Em 1968, um escritor japonês influenciado por Tagore se tornou apenas o segundo autor asiático a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura. Na época de sua premiação, fazia mais de 40 anos desde a última vez que Yasunari Kawabata havia assistido ao único filme em que trabalhou. Ele morreu quatro anos depois, sem poder rever Uma página de loucura. Se tivesse vivido por mais tempo, teria tido a chance, pois o então aposentado Teinosuke Kinugasa encontrou o negativo e uma cópia do filme guardados em sua casa no início da década de 1970. A obra subsequentemente passou em um Japão capitalista, democrático e pós-imperial, e finalmente circulou no exterior, sendo reconhecido até hoje como uma contribuição crucial ao movimento da vanguarda da década de 1920.

 

A Sessão Mutual Films de janeiro de 2024 é dedicada às memórias dos músicos, compositores e amigos irlandeses Sinéad O’Connor (1966-2023) e Shane MacGowan (1957-2023).

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[1] Tradução tirada do livro de Tagore Poesia mística (Lírica breve), publicado no Brasil pela Paulus Editora em 2003.

[2] Tradução tirada do livro de Kawabata Contos da palma da mão, publicado no Brasil pela Editora Estação Liberdade em 2008.

[3] Citado no ensaio de Tagore “Minha escola em Bengala”, de 1933. A tradução foi tirada do livro de Tagore Meditações, publicado no Brasil pela Editora Ideias & Letras em 2021.

[4] Citado em inglês no texto da The New Yorker “Modern Magus”, sobre Tagore, escrito por Adam Kirsch em 2011.

[5] Citado em inglês no artigo “New Perceptions: Kinugasa Teinosuke’s Films and Japanese Modernism”, de William O. Gardner.

[6] Citado na autobiografia de Kinugasa, Minha juventude no cinema (Waga eiga no seishun, 1977) e novamente em inglês no abrangente livro A Page of Madness: Cinema and Modernity in 1920s Japan, de Aaron Gerow.

[7] Citado no livro de Gerow.

[8] Citado no livro de Gerow.

[9] Citado em inglês no texto de Ray “The Education of a Filmmaker”, de 1983.