Dimas Cravalança é um personagem do tempo-Exu, aquele que, num mesmo instante, se abre para a frente e para trás. Dimas vem de um futuro que já passou, ao mesmo tempo que é trovador de um passado que ainda insiste em acontecer de novo e de novo e de novo. Dimas, interpretado por Dilmar Durães, é um personagem de ficção enviado do futuro, no filme Branco sai, preto fica, segundo longa-metragem de Adirley Queirós. Mas será também neste texto uma máquina do tempo para pensar os pontos onde ontem, hoje e amanhã se encontram no cinema de Adirley. Um cinema que agora, com o lançamento de Mato seco em chamas, codirigido pela realizadora portuguesa Joana Pimenta, firma definitivamente suas raízes nas estrelas.1
Falar de temporalidades na obra de um realizador que costuma ser lido na chave da territorialidade é uma tentativa de aproximação da sua obra como algo fundado na ideia de que toda periferia é, sobretudo, o espaço onde se levantam as asas do Anjo da História. Me refiro, claro, à famosa figura do quadro de Paul Klee, Angelus Novus, a partir da leitura de Walter Benjamin: o rosto do anjo está virado para o passado, contemplando ruínas e catástrofes empilhadas umas sobre as outras, enquanto suas asas se posicionam de forma que qualquer vento o empurra para o futuro.
O vento que bate em Ceilândia, cidade-satélite do Distrito Federal onde Adirley vive e filma, é carregado de poeira e fuligem de carro suspensa no ar. Uma densidade que vai aos poucos se incorporando numa estética de ruínas futuristas no cinema de um sujeito que, tal como Dimas, observa tudo ao redor do “ponto de vista da laje”2 quando, no primeiro plano de seu primeiro filme, vemos uma panorâmica de um bairro de Ceilândia enquanto um dos personagens fala: "Isso aqui é uma história de sangue, suor e lágrimas. Isso aqui é batalha de muita gente." Para falar das políticas de segregação territorial do Brasil, nada melhor que falar do ponto de vista de alguém que, de cima dessa laje, consegue enxergar o centro (neste caso, a cidade de Brasília) sem ser jamais enxergado por ele.
A intenção de se marcar em um lugar e contar o mundo a partir dele, assim como a de escrever a história a contrapelo do tempo linear – citando novamente Walter Benjamin –, já está dada desde seu momento inaugural, com o curta Rap, o canto da Ceilândia, de 2005, filmado ainda com os rolos 35 mm da época da graduação em cinema na UnB. O filme usa o rap como uma força que simultaneamente rememora a fundação de Ceilândia como projeta aqueles corpos periféricos para a frente.
É, portanto, pelo barulho do bater das asas do Anjo da História que vemos Dimas aterrissar como uma vibração a anotar atentamente em seu caderno velho tudo que vê nesse território de sangue, suor e lágrimas. Nas idas e vindas no tempo, ele começa a perceber alguns gestos que vão se repetindo no cinema de Adirley: pessoas negras e periféricas em contemplação existencial diante do mundo, estados existenciais incendiários, incêndios e explosões que são fabulados não somente como uma ação que desencadeia outras ações, mas como manifestos que precisam durar na tela do cinema. A duração como o testemunho de uma existência que atravessa tempos distintos, e o fogo como a imagem de uma hipnose catártica que se destina a dar outros desfechos narrativos a uma população que costuma ser encarcerada na gramática audiovisual ora da vítima do sistema, ora da vilã nesse sistema. O fogo, aliás, pode ser tanto uma fogueira que destrói objetos – sofás, carros, viaturas de guerra – quanto a ponta de um cigarro se acendendo lentamente, a fumaça saindo da boca de homens e mulheres que controlam a meditação de um trago.
É preciso usar a máquina do tempo de Dimas para entender como esses gestos vão se acumulando e se transformando: aquilo que começa em 2005 como um documentário expositivo a estabelecer a relação entre Ceilândia e o rap não apenas como uma expressão cultural, mas sobretudo como uma força trabalhadora que engaja a comunidade, vai gradualmente abrindo espaço para um cinema que se entende ele mesmo como uma força de trabalho a produzir novas imagens de “status cinematográfico” e , ao mesmo tempo, uma outra comunidade que passa a reimaginar o espaço, agora também mítico, de Ceilândia. Uma cidade que, graças ao cinema de Adirley, se torna um campo de fabulações futuristas que nasce de dentro dos escombros e de ruas nunca calçadas.
De dentro de seu contêiner/máquina do tempo, Dimas anota: a habilidade dos trabalhadores que lidam com solda e mecânica em Dias de greve (2009) em algum momento se muta nas ações de reparo de uma pequena e remendada nave espacial com cheiro de fumaça e graxa em Era uma vez Brasília (2017). A contemplação frustrada de Maninho diante da precarização de seu ofício como jogador de futebol em Fora de campo (2010) se espelha em todos os momentos que Marquim e Sartana/Shokito olham pro horizonte de Ceilândia maquinando a explosão de uma vingança contra a arquitetura do apartheid em Branco sai, preto fica (2015). Da mesma forma, em A cidade é uma só? (2011), a campanha de Dildo para deputado distrital enquanto lida com o cotidiano de ser um trabalhador precarizado que passa longas horas na condução entre Ceilândia e Brasília é também a campanha de Andréia em Mato seco em chamas (2022), exigindo o fim do toque de recolher e a ressocialização da população carcerária. O PCN (Partido da Correria Nacional) de Dildo é coligado com o PPP (Partido do Povo Preso) de Andréia.
Entender o cinema de Adirley como um manifesto dessa força de trabalho é fundamental para perceber como se estabelecem as imagens em seus filmes. Se, por um lado, elas são herdeiras de uma cinefilia dos filmes de ação – os debates sobre Mad Max e Blade Runner no cineclube da Ceicine contam várias histórias –, por outro, elas quebram com algumas regras da gramática do cinema de gênero. Isso acontece quando, por exemplo, Adirley usa fotos, vídeos e áudios de arquivo de um Brasil que produz a toda hora provas contra si mesmo. Ou quando permite a seus personagens, sempre habitando a turva borda entre a realidade e a ficção, que eles mesmos ditem o que vai ou não entrar no filme. E, mais do que isso, ditem quanto tempo a câmera precisa repousar sobre seus rostos.
Há nos filmes de Adirley um pacto de trabalhador para trabalhador com a equipe no set, o que também acontece na parceria com Joana Pimenta em Mato seco em chamas e Era uma vez Brasília. Isso se manifesta de várias formas. Primeiro, no tempo de duração das filmagens e dos filmes: é preciso respeitar o cotidiano da periferia, seus sons e barulhos, e filmar nas horas que as ruas permitem. Do mesmo modo que é preciso, às vezes, desrespeitar as regras de quanto tempo deve durar uma sessão comercial de cinema. Segundo, no trabalho de cocriação com os atores. Dilmar Durães, Marquim da Tropa, Wellington Abreu e, mais recentemente, Andréia Vieira, Joana D’Arc Furtado e Léa Alves da Silva, as protagonistas de Mato seco em chamas, são em diversos momentos autoras/es desse cinema. E, claro, nas trocas com a equipe de arte, fotografia e som que, ao longo dos últimos anos, foi criando traços estéticos próprios em esquema de cooperativa: juntas, as pessoas entendem que os barulhos metálicos das máquinas, a visualidade das gambiarras e o gradativo processo de noites mais longas que os dias, vão construindo uma outra Ceilândia. Um território que aparece agora para o cinema brasileiro tal como estrelas que, na escuridão do céu, emitem uma luz vinda direta do passado diante de olhos que visualizam outros modos de vida na suspensão gravitacional do universo.
1.No romance A parábola do semeador, de Octavia Butler, uma das personagens, vivendo em uma distopia, diz: “O destino da semente da terra é criar raízes entre as estrelas”.
2. O termo “ponto de vista da laje” é cunhado por César Guimarães em GUIMARÃES, César. “Noite na Ceilândia”. In: forumdoc.bh.2014: 18º Festival do Filme Documentário e Etnográfico – Fórum de Antropologia e Cinema. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2014, pp. 193-206 (Impresso). Disponível em: www.forumdoc.org.br/ensaios/ceilandia-capital-da-dor.
Carol Almeida é pesquisadora, professora e crítica de cinema