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O dom de iludir

30 de junho de 2022

As verdades, 12º longa-metragem de José Eduardo Belmonte, é, no mínimo, um filme corajoso. Sua ousadia foi a de transplantar para uma pequena cidade histórica do litoral baiano, nos dias atuais, o enredo do conto “No bosque”, do japonês Ryûnosuke Akutagawa, que inspirou a obra-prima Rashomon (1950), de Akira Kurosawa.

Ambientado na Idade Média japonesa, o filme de Kurosawa narrava quatro versões de um crime ocorrido num bosque. Desde então se fala em “efeito Rashomon” para designar uma história contada (e modificada) a partir de pontos de vista diferentes.

No caso do filme de Belmonte, o delegado Josué (Lázaro Ramos) tenta desvendar um crime nebuloso e brutal: Valmir (Zécarlos Machado), ex-delegado e atual candidato a prefeito, é encontrado amarrado e agonizante num descampado, depois de ter sido espancado e atropelado por um carro.

As versões do acontecimento que chegam a Josué são de Francisca (Bianca Bin), noiva da vítima; de Cícero (Thomas Aquino), suspeito de ser matador profissional e possível amante de Francisca; e do próprio Valmir, depois de recuperar os sentidos num leito de hospital.

 

Relatos inconfiáveis

Assim como no filme de Kurosawa, cada uma dessas versões suscita um flashback reconstituindo “os fatos”. As versões, obviamente, não batem, e para se aprofundar nas investigações Josué tem que escavar mais fundo o passado dos envolvidos. O que complica a história é seu envolvimento afetivo e sexual com Francisca. É isso o que se pode dizer a respeito do enredo sem cometer spoiler.

Belmonte conduz com segurança essa narrativa policial, sustentando do início ao fim a tensão e o suspense e aproveitando dramaticamente a paisagem da região: rio, mata, mar, casario. Mas sua ambição vai além disso. Desde o título provocador, As verdades busca questionar o que é real e o que é construção ficcional, ilusória, seja por uma manipulação consciente, seja pelas armadilhas da memória. (A primeira palavra proferida no filme é “lembrar”.)

O binômio verdade/ficção, núcleo do conto de Akutagawa e do filme de Kurosawa, é ampliado e atualizado aqui em diversas instâncias ou reverberações: no tema premente das fake news (evocado numa conversa de whatsapp de Josué com uma tia), na construção da imagem pública do candidato a prefeito, no encobrimento de fatos traumáticos do passado familiar, na breve discussão sobre fé e fanatismo, etc.

Nesse contexto de incertezas, nenhum relato é plenamente confiável, assim como nenhum personagem se deixa ver por inteiro. Todos, incluindo o protagonista e principal narrador, Josué, têm suas zonas de sombra.

No núcleo último do drama está a questão candente do abuso sexual na infância, e uma possível fraqueza do filme é sublinhar o tema de modo quase didático e militante por meio da introdução de um trio de personagens anônimos que brigam bem na frente da delegacia: mãe, filha e pai abusador.

 

Expressão visual

À parte isso, Belmonte atesta um notável equilíbrio entre maturidade e vitalidade na construção de sua linguagem narrativa. A orquestração dos planos, a variedade de procedimentos (da câmera na mão à luz estourada, do plongée vertical à câmera lenta), as elipses precisas, tudo é usado de modo a manter o suspense e a dúvida quase até o final – e esse “quase” talvez enfraqueça um pouco o impacto do conjunto.

Do ponto de vista da expressão visual, é o filme mais ambicioso do diretor, com alguns momentos memoráveis. Uma sequência serve de exemplo: de um quarto de hotel numa cidade vizinha, Francisca pergunta a Josué, ao telefone, se ele irá ao seu encontro. Antes mesmo do fim do plano em que ela está sentada na cama ouvimos o ruído de um carro dando partida. Na imagem seguinte, no lado direito do quadro, o carro mergulha na escuridão da noite, deixando ver sua luz vermelha traseira que desaparece aos poucos; em seguida, do meio da escuridão, vai surgindo do lado esquerdo da tela a luz branca dos faróis dianteiros. A viagem noturna resumida num jogo de luzes.

Uma última curiosidade: o intrincado roteiro de As verdades é de Pedro Furtado, que estreou como ator, ainda adolescente, em Houve uma vez dois verões (2002), dirigido por seu pai, Jorge Furtado. Desde então, trabalhou ocasionalmente como ator, mas sobretudo como roteirista de séries de TV e de longas-metragens como Boa sorte, de Carolina Jabor, e Quem é Primavera das Neves, de Ana Luiza Azevedo e Jorge Furtado. As verdades é seu trabalho mais maduro e complexo até agora.