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Bergman e sua ilha

11 de junho de 2020

Uma novidade animadora em tempos de quarentena: o lançamento do canal de streaming gratuito do Sesc, que vai tornar disponíveis quatro novos títulos por semana, entre filmes clássicos e recentes, com curadoria da equipe do Cinesesc de São Paulo. Na estreia de gala, estão entrando A hora do lobo, de Ingmar Bergman, Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, Coração de cachorro, de Laurie Anderson, e Jonas e o circo sem lona, de Paula Gomes.

A hora do lobo, que estava fora de circulação havia tempo, é uma das obras-primas incontornáveis de Bergman e um dos filmes mais perturbadores de todo o cinema. Realizado em 1968, dois anos depois de Persona, narra, em resumo, a história de um pintor, Johan Borg (Max von Sydow), que se refugia com a mulher, Alma (Liv Ullmann), numa ilha deserta, onde eles poderiam viver em paz e ele daria prosseguimento a sua arte, longe da algaravia do mundo.

Só que a ilha não está propriamente deserta. Em suas andanças pelos arredores (montanha, bosque, rochedo, mar), Johan topa com figuras estranhas, que ele tenta capturar em seus esboços. A certa altura, o casal é convidado a jantar no castelo de um barão (Erland Josephson), que se apresenta como dono da ilha.

O filme, de certo modo, é um embate entre Alma Borg e esses fantasmas ou demônios (Johan os chama de “canibais”) que buscam arrastar seu marido para as profundezas da loucura. Seria apenas a descrição de um caso clínico de esquizofrenia se a própria Alma não passasse, ela própria, a ver as mesmas figuras sinistras e a interagir com elas.

Em seu livro Imagens, Bergman descreve a gênese do filme. Diz que tudo começou com a ideia de um barco de luxo que afunda durante um baile de máscaras. Alguns de seus passageiros chegam a nado a uma ilha deserta. Só depois surgiu em sua mente o personagem do pintor e, por fim, sua mulher. Esta acabou sendo a narradora da história, mediando as revelações do diário do artista e servindo como uma espécie de ponte entre o real e a fantasia ou delírio. O título, originalmente, seria Os canibais.

Nesse processo de elaboração do filme entraram, inevitavelmente, fantasmas do próprio cineasta. Numa cena crucial, Johan explica a Alma o sentido da expressão “hora do lobo”, no coração da madrugada: “É a hora em que a maioria das pessoas dorme e a maioria das crianças nasce. É a hora em que os pesadelos vêm até nós. E se estamos acordados... temos medo”. Ele conta então um episódio traumático de infância, quando foi trancado num armário escuro, no qual se escondia “um anão malvado que roía os dedos das crianças”. Uma punição que o próprio Bergman sofreu e que o marcou pelo resto da vida.
 

Luz e trevas

Para além do eventual sentido autobiográfico, é uma das sequências mais belas do cinema. Começa com um enquadramento exterior aberto, à noite. A casa tem apenas um minúsculo ponto de luz, visto através de uma janela. Corta para dentro, com Johan e Alma em plano aproximado, sob a luz de um fósforo aceso. A cada fósforo que se apaga, o pintor acende outro, enquanto conta sua fábula pessoal. É como se aquela débil e trêmula chama fosse o último recurso que os impede de cair nas trevas da morte.

Pouco depois, vem outra sequência marcante, em que a iluminação é manipulada de forma oposta. Johan confessa um estranho e fatídico encontro com um menino quando pescava num rochedo à beira-mar. O garoto é um pequeno demônio, uma perversa tentação erótica, e o encontro, que termina de forma brutal, é filmado com luz estourada, quase em alto-contraste, alterações da velocidade e uso expressionista do som, intensificando a força da rememoração.

Em contraste com a figura radiosa de Alma, grávida e amorosa, perpassa todo o filme um erotismo lúgubre, que tem seu ápice na cena em que Johan reencontra, no castelo do barão, sua antiga amante Veronica Vogler (Ingrid Thulin) e os dois começam a fazer sexo sobre o que parece ser uma mesa de necrotério, sob a vista dos “canibais” ridentes, e com o pintor maquiado como um palhaço afeminado.

O sexo como força destrutiva, a memória como um território de assombrações, a arte como busca desesperada de saída para os tormentos do mundo: Bergman está aqui em seu elemento. Se todo o seu cinema pudesse se resumir a uma imagem, seria talvez a do rosto de Liv Ullmann iluminado pela chama trêmula de um fósforo – retrato da fragilidade humana diante das trevas da morte, do pavor do desconhecido.
 

O rosto como escrita

“Bergman é, sem dúvida, o autor que mais insistiu sobre o elo fundamental que une o cinema, o rosto e o primeiro plano”, escreveu Gilles Deleuze. E o próprio cineasta declarou: “A possibilidade de se aproximar do rosto humano é a originalidade primeira e a qualidade distintiva do cinema”. Do seu cinema, pelo menos, sem a menor dúvida.

E para atingir o ponto de excelência dessa arte ele conta, em A hora do lobo, com a parceria de pelo menos outros três artistas geniais: o diretor de fotografia Sven Nykvist e os atores Liv Ullmann e Max von Sydow. A eles o cinema deve um de seus mais altos momentos.

José Geraldo Couto é crítico de cinema, jornalista e tradutor. Publicou, entre outros, André BretonBrasil: Anos 60 e Futebol brasileiro hoje, e participou com artigos e ensaios dos livros O cinema dos anos 80Folha conta 100 anos de cinema Os filmes que sonhamos. Veja textos da coluna semanal sobre cinema que assinou no Blog do IMS entre setembro de 2011 e dezembro de 2018.