A mostra Histórias ocupadas: Steve McQueen está em cartaz nos cinemas do IMS Paulista e IMS Poços em outubro.
“If you are the big tree/ We are the small axe/ Sharpened to cut you down/ Ready to cut you down” [Se vocês são a grande árvore/ Nós somos o pequeno machado/ Afiado para cortá-la/ Preparado para cortá-la]. O refrão de “Small Axe”, música de 1970 inspirada em um provérbio africano, e reconhecida por sua gravação no álbum Burnin' (1973), do grupo jamaicano Bob Marley and The Wailers, é exemplar do cunho anticolonialista de diferentes letras eternizadas na voz do vocalista ícone do reggae, e pode ser interpretado como um incentivo à resiliência estratégica, afiada e literalmente violenta – fala-se em machado, em corte – por parte dos povos colonizados para derrubar seus opressores construídos como superiores.
Ao escolher a canção e seu originário provérbio para coroar nominalmente a série Small Axe, exibida em novembro de 2020 na rede pública de televisão britânica BBC One e na Amazon Prime para espectadores dos Estados Unidos, o diretor Steve McQueen vincula a cena reggae, diegeticamente mobilizada em diferentes episódios e em boa parte da trilha sonora, à força e à importância cultural e discursiva que esse gênero musical nascido na Jamaica teve na realidade histórica afrodiaspórica.
A série tece um panorama sobre a vida de imigrantes negros caribenhos moradores de Londres entre o final dos anos 1960 e o início da década de 1980, destacando suas estratégias individuais e coletivas, culturais e estritamente políticas, em prol de uma existência de fato livre numa cidade então regida pela violência policial de cunho racista. “A razão pela qual queria que passasse na TV era para que minha mãe pudesse assistir”, disse, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, o diretor britânico, que é filho de imigrantes caribenhos – sua mãe nasceu em Trinidade e Tobago; seu pai, em Granada.
Cenas de violência policial contra imigrantes se repetem no primeiro dos cinco episódios da produção (Mangrove; Lovers Rock; Red, White & Blue; Alex Wheatle e Education). Em Mangrove, acompanhamos a resistência de Frank Crichlow (Shaun Parkes), comerciante oriundo de Trinidade e Tobago que lutou para manter aberto seu restaurante, The Mangrove Nine (como ficou conhecido após resistências e prisões históricas), apesar das incessantes batidas policiais que o estabelecimento, localizado no bairro londrino de Notting Hill, recebia na década de 1970. A ofensiva racista levou proprietário, trabalhadores e frequentadores, também imigrantes, a realizarem protestos que culminaram na prisão de nove manifestantes e em um memorável julgamento.
No referido episódio, em contraste com as imagens de violência explícita contra o dono e os clientes do Mangrove, estão cenas em que a direção de arte valoriza não só a beleza física das personagens negras como também, sobretudo, a beleza de suas relações culturais, manifestadas no acento linguístico, quase criolizando o inglês britânico, na culinária, nas brincadeiras afetuosas em meio ao trabalho e nos momentos coletivos de canto e dança.
A proeminência da fisicalidade das personagens na tela tem qualidade alternada: os mesmos corpos que dançam em grupo, dentro do Mangrove ou na rua, com destacado vazio de outras corporeidades – uma possível evidenciação do contraste com uma cultura cotidiana mais contida dos londrinos brancos –, são corpos que resistem efusivamente à violência policial.
A alternância da qualidade gestual das personagens negras nas distintas situações remete ao paradoxo que constitui as manifestações culturais afrodiaspóricas nas Américas: o fato de suas potentes criações terem se dado a partir de encontros de matrizes culturais resultantes também de movimentações/diásporas forçadas – tráfico negreiro, fugas –, como parte do colonialismo do século XVI. Um histórico que possibilita a existência de manifestações culturais singulares e afirmativas de vivências negras heterogêneas e específicas, inclusive em contextos de imigração, e, simultaneamente, a criminalização dessas práticas.
Afinal, como escreve Stuart Hall – ele mesmo um imigrante jamaicano radicado na Inglaterra e fundador dos chamados Estudos Culturais britânicos – no artigo “Da diáspora, ou a lógica da tradução cultural” (2016): “O hibridismo ou a transculturação das margens sempre tiveram e continuam tendo lugar e continuam a ser delimitados por relações de poder radicalmente assimétricas. A transculturação e a criolização não são uma ‘dádiva’ vazia da periferia para o centro. São produto da lógica disjuntiva que a colonização, a escravidão e a modernidade introduziram no mundo. Essas coisas permanecem, até mesmo no mundo pós-colonial. [...] A lógica da différance, da tradução cultural, tem que ser lida sempre no contexto da colonização, da escravidão e da racialização.”
A criminalização do Mangrove e das pessoas a ele vinculadas é tamanha que, a certa altura, o episódio compra para si a necessidade de dar amplo espaço ao julgamento do caso, introduzindo-nos a um verdadeiro, e menos dinâmico, “filme de tribunal”. O diferencial propositalmente destacado na retratação do evento histórico é que parte dos criminalizados decide se valer de um dispositivo que possibilita que eles representem a si mesmos juridicamente durante o julgamento, ou seja, prescindem da mediação de defensores brancos frente ao juiz e ao júri. Qualquer semelhança com os debates e as tendências cinematográficas que compõem o panorama ao qual associamos as realizações de McQueen sobre histórias e vivências negras não parece ser mera coincidência.
Autorrepresentação, um percurso
Quando, em 2014, 12 anos de escravidão se tornou o primeiro longa-metragem dirigido por um afrodescendente a receber o Oscar de Melhor Filme em quase 90 anos de existência da premiação, um momento de recrudescimento de grandes produções realizadas por cineastas negros oriundos do norte global, e aparentemente sedentos por contar de maneira grandiloquente a história passada, presente e futura de seu povo, parecia se dar em Hollywood e, consequentemente, em boa parte do ocidente.
A concessão do principal prêmio do Oscar ao terceiro longa-metragem do diretor e artista visual britânico Steve McQueen ocorreu no mesmo ano em que Selma: uma luta pela igualdade fez Ava DuVernay ser a primeira cineasta mulher negra a ter uma obra também indicada à categoria de Melhor Filme na premiação da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas.
Nos anos seguintes, após o surgimento da campanha Oscars So White [Oscar muito branco], em 2015, vimos serem indicadas à premiação – e por vezes vencedoras em diferentes categorias – e/ou chegarem a muitas salas de cinemas ao redor do mundo grandes produções dirigidas por pessoas negras britânicas ou estadunidenses. Dentre essas obras, destacaram-se, no arco de uma década, para citar algumas: Moonlight: sob a luz do luar (Barry Jenkins, 2016); O nascimento de uma nação (Nate Parker, 2016); Se a rua Beale falasse (Barry Jenkins, 2016); Infiltrado na Klan (Spike Lee, 2018); Queen & Slim - Os perseguidos (Melina Matsoukas, 2019); Pantera Negra (Ryan Coogler, 2018); Judas o Messias Negro (Shaka King, 2021); Pantera Negra: Wakanda para sempre (Ryan Coogler, 2022); e A mulher rei (Gina Prince-Bythewood, 2022).
No âmbito dos streamings, surgiram, desde a mesma época do lançamento e premiação de 12 anos de escravidão, séries icônicas voltadas de forma evidente à abordagem do racismo e das estratégias para combatê-lo ou driblá-lo em meio a experiências de vida de pessoas negras. Por vezes focando em especificidades das vivências de mulheres negras, séries como Atlanta (2016); Insecure (2016); Cara gente branca” (2017); Olhos que condenam (2019) e I May Destroy You (2020) arrebataram espectadores ao redor do mundo e tiveram grande repercussão midiática.
O breve panorama torna mais mensurável a percepção do referido recrudescimento de filmes e demais produções audiovisuais do norte global dirigidos por realizadores negros e voltadas a grandes circuitos exibidores na última década.
Nos Estados Unidos, o fenômeno pode ser lido como parte de um arco histórico mais amplo, que, junto às específicas composição racial da população e dinâmica de lutas e afirmações negras no território via nacionalismo cultural e reivindicação de igualdade de direitos civis na década de 1960, engloba uma certa tradição de séries cômicas de TV sobre famílias afro-americanas e, no cinema de baixo e médio orçamento, as contrastantes – entre si e com relação ao que hoje é produzido por negros no território – experiências cinematográficas do Blaxploitation e da L. A. Rebellion, entre as décadas de 1960 e 1970.
Já no Reino Unido, mais precisamente na Inglaterra – ou mesmo, de forma mais ampliada, na Europa –, lugar de origem de Steve McQueen, a evidenciação histórica das afirmações negras por meio do cinema e demais formas de produção audiovisuais parecem ter ocorrido de maneira mais pontual e ainda mais contemporânea.
Nesse sentido, é importante considerar especificidades do contexto de produção de cineastas negros na Europa, como a incontornável origem colonial das relações e segregações raciais no continente, há décadas influenciadas pela dinâmica de imigrações de latino-americanos e africanos para os países que foram metrópoles e acumularam riquezas e políticas de bem-estar social sob essa condição. Um cenário que culmina em crises migratórias flagrantes da chamada colonialidade, ou seja, de um contemporâneo padrão de poder entre nações, culturas e raças (no sentido sociológico do termo) que transcende o período de dominação colonial histórica, mas que se dá a partir dele.
Não à toa a atenção e a preocupação com esse histórico foram centrais para as abordagens temáticas e estéticas de dois importantes coletivos negros de cinema no Reino Unido inspirados pelos estudos pós-coloniais e por teóricos sintomaticamente migrantes, como o indiano Homi Bhabha e o já mencionado Stuart Hall. São eles: o Black Audio Film Collective, operante entre 1982 e 1998, e criado por um grupo composto por cineastas afrodescendentes, como John Akomfrah; e o Sankofa Film and Video Collective, criado em 1983 por um grupo que tinha entre seus nomes fundadores o do cineasta e professor universitário de artes Isaac Julien.
Atenção às violências históricas
Nascido em 1969 na mesma Londres em que surgiram e atuaram tais coletivos, Steve McQueen estudou cinema, por um curto período, na New York University e artes visuais no Chelsea College of Art and Design e na atual University of London. Como artista visual, já teve fotografias e vídeos expostos em locais como Biennale de Veneza; Tate Modern Museum; MoMA (Museum of Modern Art); e Whitney Museum of American Art.
Tendo se tornado ainda mais reconhecido como cineasta após a direção do premiado 12 anos de escravidão, McQueen iniciou a carreira no cinema com o curta-metragem Bear (1993), no qual dois homens negros nus se enfrentam. Sua produção é composta por videoartes, videoclipes, episódios de séries, longas-metragens e diversos curtas-metragens, sendo sua filmografia marcada por um interesse nas relações e nos dramas humanos mediados por opressões, violências e eventos históricos transformadores radicais do cotidiano.
Seu primeiro longa-metragem, Fome (Hunger, 2008), foi eleito como o melhor filme da mostra Caméra d’Or, no Festival de Cannes de 2008. Protagonizado pelo ator branco Michael Fassbender, nascido na Alemanha e criado na Irlanda, parceiro do diretor em diferentes produções, o filme reconstitui o episódio real da greve de fome promovida por um membro do IRA (Exército Republicano Irlandês, de resistência aos britânicos) em uma prisão da Irlanda do Norte no ano de 1981. Já o ousado Shame (2011), também protagonizado por Fassbender, mostra o cotidiano de um jovem publicitário viciado em sexo.
12 anos de escravidão conta a história real de Solomon Northup, homem negro livre e pai de família que, em 1841, foi vendido como escravo. E em As viúvas (Widows, 2018), estrelado por Viola Davis, acompanhamos a jornada de uma professora que, após a morte do marido ladrão, reúne-se a outras viúvas de criminosos para executar um roubo que os falecidos deveriam ter feito.
O último filme lançado por McQueen é seu único documentário. Baseado no livro Atlas van een bezette stad: Amsterdam 1940-1945) [Atlas de uma cidade ocupada: Amsterdã 1940-1945], de autoria de sua companheira de vida, a jornalista holandesa Bianca Stigter, Occupied City (2023) se debruça sobre espaços da contemporânea Amsterdã que guardam memórias das violências nazistas cometidas durante a Segunda Guerra Mundial. “Não é algo que é uma espécie de conto de fadas, aconteceu no passado. Isso poderia acontecer novamente com bastante facilidade. Os paralelos estão aí para todo mundo ver”, disse McQueen em entrevistas, evidenciando seu interesse como cineasta pelas consequências do passado histórico nas relações sociais do presente.
Em 2024, o diretor estreia em festivais seu novo longa-metragem de ficção, Blitz, mais um drama de reconstituição histórica, dessa vez sobre personagens que sofrem perdas pessoais no contexto londrino, também durante a Segunda Guerra Mundial.
Em diferentes desses filmes, McQueen não se furta em expor cenas de agressões e violências explícitas contra grupos minorizados social e politicamente na História, como os imigrantes negros caribenhos dos episódios de Small Axe.
Em contraste com tendências de imagens positivadas dos cinemas negros brasileiros contemporâneos, remetendo ao afropessimismo de acadêmicas negras estadunidenses como Saidiya Hartman e Tina Campt, e no bojo do que investigou o médico e teórico martinicano Frantz Fanon a respeito da violência como estratégia anticolonialista, as cenas de violência contra personagens negros que são assumidas pela direção no citado primeiro episódio da série, e também em filmes como 12 anos de escravidão e As viúvas, parecem ser feitas para não nos deixar esquecer do peso das violências históricas e atuais contra afrodescendentes.
Tudo isso dentro de registros realistas de um cinema mais comercial, explorando conscientemente imagens agressivas e de agressão que têm cirúrgicas lapidação estética e dilatação temporal. São cenas que parecem querer inflar, tanto nas personagens quanto no público que as acompanha, uma indignação que alimenta formas de enfrentamentos, resistências e a inventividade (artística e cultural, inclusive) para sustentá-las – estamos falando de machadadas sorrateiras “Sharpened to cut you down/ Ready to cut you down”.