Quis o acaso que documentários sobre dois dos nossos cineastas mais importantes chegassem aos cinemas quase ao mesmo tempo: Nelson Pereira dos Santos – Vida de cinema já está em cartaz; Roberto Farias – Memórias de um cineasta estreia na próxima semana. É uma ótima oportunidade não só para passar em revista essas filmografias fundamentais, mas também para refletir sobre o projeto – ou os projetos – de um cinema popular no Brasil.
Colegas de geração, os dois diretores morreram coincidentemente no mesmo ano (2018), com menos de um mês de intervalo. Ambos tinham o povo brasileiro (ou o que se imaginava como tal) no centro de suas preocupações. Em Nelson, como fonte de criação e reflexão; em Roberto, como destinatário final dos filmes. Claro que essas duas vertentes não são necessariamente antagônicas, e se misturaram de modos diversos ao longo das décadas, chegando a resultados próximos por vias diferentes.
História do cinema
Ao menos duas circunstâncias aproximam os dois documentários. Ambos foram feitos a partir “de dentro”, ou pelo menos de muito perto: NPS – Vida de cinema tem como como diretora a viúva do cineasta, Ivelise Ferreira (em parceria com Aída Marques), e RF – Memórias de um cineasta é dirigido pela filha do biografado, Marise Farias. Outro ponto em comum é o fato de serem narrados em boa parte pelos próprios retratados, mediante entrevistas e depoimentos registrados em várias épocas. Desnecessário dizer que os dois documentários são fartamente ilustrados por trechos de filmes, cenas de bastidores, home movies, etc.
Cotejar os caminhos de Nelson e Roberto é examinar a história do cinema brasileiro na segunda metade do século XX. Ambos têm origem na baixa classe média: Nelson era filho de um alfaiate do bairro paulistano do Brás; Roberto, de um açougueiro de Nova Friburgo (RJ). Mas o modo como cada um deles entrou no cinema foi muito diferente.
Apaixonado pelo aparato mágico das imagens em movimento, Roberto Farias ainda estava saindo da adolescência quando praticamente se impôs como assistente de Watson Macedo na Atlântida. Sua escola foi a chanchada, cinema de grande êxito popular. Nelson Pereira, por sua vez, chegou ao cinema por via da política, como militante da juventude comunista. Encarava o cinema como instrumento de conscientização e emancipação política. O Cinema Novo, do qual ele seria uma espécie de patriarca e pioneiro, rejeitaria a chanchada como popularesca e alienante.
Se nos anos 1950 tudo parecia opor o realizador de Rio 40 graus (1955) ao de Rico ri à toa (1957), no início da década seguinte se dá uma curiosa aproximação. Inquieto, Farias se distancia das origens chanchadescas com os policiais de forte cunho social Cidade ameaçada (1960) e, sobretudo, O assalto ao trem pagador (1962), sua obra-prima, ao mesmo tempo em que Nelson Pereira realizava Boca de ouro (1962) e Vidas secas (1963).
Ditadura e distanciamento
O golpe militar de 1964 e a imposição da censura voltou a distanciar os dois. Enquanto Roberto voltou a buscar um cinema popular, de entretenimento, com a comédia Toda donzela tem um pai que é uma fera (1966) e a trilogia estrelada por Roberto Carlos (1968-72), Nelson enveredou por um cinema mais alegórico e libertário, mezzo tropicalista, com filmes como Fome de amor (1968), Azyllo muito louco (1971), Como era gostoso o meu francês (1972) e Quem é Beta? (1973).
Na fase final da ditadura, Nelson Pereira mergulha numa tentativa fecunda de compreender e expressar uma cultura popular que até então ele, confessadamente, via “de fora”. Nascem então os extraordinários O amuleto de Ogum (1974) e Tenda dos milagres (1977). Essa busca de uma linguagem popular se radicaliza com Na estrada da vida (1980), estrelado pela dupla sertaneja Milionário & José Rico.
Roberto Farias, por sua vez, depois de um lapso de quase dez anos sem fazer um longa-metragem, acerta suas contas com a ditadura com o thriller político Pra frente, Brasil (1982), retido durante meses pela censura do regime moribundo. Prossegue praticando também o cinema de grande público, como demonstra a comédia Os Trapalhões no Auto da Compadecida (1987).
Mercado e literatura
A preocupação quase obsessiva de Roberto Farias com a conquista do mercado pelo cinema brasileiro o levou a atuar em duas frentes: na gestão política, como presidente da Embrafilme, e na ponte com a televisão, produzindo filmes e séries para a Globo. Nelson, por sua vez, aprofundou sua ligação com a grande literatura nacional, em filmes como Memórias do cárcere (1984), Jubiabá (1987) e A terceira margem do rio (1994). Não por acaso, foi o primeiro cineasta a tornar-se membro da Academia Brasileira de Letras.
Roberto Farias acabou constituindo um dos mais sólidos clãs do nosso cinema, “arrastando” para a atividade os irmãos (os produtores Riva e Rogério, o ator e diretor Reginaldo) e os filhos (os cineastas Mauro, Lui, Mauricio e Marise). Nelson não chegou a constituir um clã, mas introduziu no cinema seu filho Ney Sant’Anna, ator, roteirista e diretor.
São, em suma, duas filmografias essenciais, incontornáveis, que se distanciam e se tocam em vários momentos. Sem elas, o cinema nacional – e com ele a imagem que temos de nós mesmos – seria imensamente mais pobre.
A boa notícia é que a maior parte dos filmes citados acima estão disponíveis de graça no YouTube. Quem se interessa pelo Brasil, sua cultura e seu povo não deve deixar de conhecê-los.