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Cinemirar ou onde o encantamento parece coincidência

20 de dezembro de 2024

Uma palavra-imagem me aconteceu após assistir Colagem (David Neves, 1968) e Boi de Prata (Augusto Ribeiro Júnior, 1980). Na vontade de definir o ato ou efeito de mirar o invisível através do cinema. Ver além dos olhos. Estar relacionado à visão em sua qualidade mítica e mística. Cinema possível. Negro. Potiguar. Cinemirar é a experiência de habitar muitos mundos ao mesmo tempo, tudo isso diante de um filme.

Das muitas magias, funções e poéticas do cinema, ele é também responsável por agir no sonho. Criar e pescar memórias que adormecem nas gavetas da consciência. Recriar a história na perspectiva dos humanos e outros seres, enviesar. E esse reconhecimento do cinema como ferramenta decolonial nos encoraja a proteger e celebrar os espectros de nossa cultura, nos blindando, enquanto povo, dos ataques e invasões estrangeiras, como vemos em Boi de Prata. Augusto Ribeiro Jr., em sua cinemiração, nos contempla com o retrato de um Brasil pindorâmico que, mesmo cobiçado, se resguarda na brincadeira do boi cintilante, onde fé e festa se encontram na mesma importância. E em um filme tão imerso no reconhecimento de divindades, não poderia faltar a realeza, deusa negra do cinema brasileiro, Luiza Maranhão.

Luiza arrebata na primeira aparição em Boi de Prata. Se os olhos são os espelhos da alma, nos primeiros dez segundos de sua imagem não o vemos direcionados para o horizonte, mas para a terra. Sua presença encandeia uma força reconhecida, difícil de nomear, por se tratar do poderoso mistério invisível que só a atriz, neste momento, está vendo e criando. Os olhos voltados ao chão, indecifráveis, junto à condução do jumento, instauram para o espectador a liderança paciente de sua personagem, que abre caminhos, e sua aura de importância no mundo concreto e metafísico passa a ser, então, inquestionável dentro da narrativa.

No filme, Luiza interpreta Maria dos Remédios, uma curandeira, hora Cigana Salomé, hora Indígena Jurema. Sabe reconhecer a função das folhas, ler o tempo do céu, as previsões dos encantados, os segredos e as ciências da jurema sagrada. Ela é o próprio sonho do sertão. A força quântica dessa história cromática e exuberante. Estar envolvida em ações concretas no set — como pilar, tirar casca de árvore, separar cascas — a tirou de uma possível condução psicológica na construção da personagem, encaminhando Luiza a uma interpretação que aconteceu antes dentro de si mesma. Isso a permitiu dar asas a um trabalho que se desenha flexível, disposto à brincadeira de uma atriz amadurecida, que possui na trama muitas máscaras para vestir. Essas características acentuam a propriedade no repertório gestual de Maria dos Remédios, que — com destaque à atenção no manuseio de objetos — marca bem a apresentação do cenário sertanejo em sua relação com os elementos de ancestralidade, desde o mais cotidiano, como mastigar a jurema em meio a caatinga e provar o sabor do tejo, até o mais sagrado, como preparar um benzimento.

Algumas atrizes e atores são como xamãs. Em Boi de Prata, Luiza está no auge dessa referência em sua carreira. Só quem tem a escuta afiada para os acontecimentos orgânicos da atuação, do cinema, da vida, consegue tantos momentos onde o encantamento parece coincidência. Vemos evidentemente Luiza contracenar com sua ancestralidade, curvando seu corpo ao chão nos benzimentos de Tião (Lenício Queiroga), em reverência à encruzilhada Seridó.

Divide a cena com o sol em equidade de brilho, em uma dança alucinante entre Luiza, Maria dos Remédios, o pé de jurema e Kûaracy num plano aberto alucinante. A atriz apodera-se de sua personagem quando nos conduz com seus gestos manuais poderosos para junto à palavra em sua narração profética, que “dança na cabeça como uma música”, cita Maria em um trecho do longa-metragem. É a griote deste enredo de Augusto Ribeiro Jr, responsável por ajuremar nossas retinas e outros sentidos.

Pela falta de matérias e entrevistas sobre sua carreira, não sabemos a margem de liberdade criativa aplicada em set ou seus sentimentos em relação à própria performance, mas segundo matéria da revista InTerValo, de 1963, Luiza não gostava de cinema.

Particularmente me encanta Luiza Maranhão nessa natureza madura da mulher-atriz, com o tempo atravessado em seu trabalho. A personagem Maria dos Remédios parece descansar a postura impecável que vemos desde Cota em Barravento (Glauber Rocha, 1962), onde a coluna esguia impõe a mocidade de sua presença. Ou a energia afrontosa bem marcada, como nas silhuetas de Maria em A grande feira (Roberto Pires, 1961). Maria dos Remédios foge dos estereótipos alegóricos e dos fardos de uma representação arquetípica do imaginário da mulher negra brasileira em que não cabe a atriz ou a diversidade das mulheres negras e suas subjetividades. Dessa maneira, em Boi de Prata, a perspectiva do título “deusa negra” direcionado a Luiza Maranhão ganha camadas mais auráticas e talvez menos fetichistas.

Colagem

Na voz de Hugo Carvana em Colagem (David Neves, 1968) ouvimos a frase: “para filmar no Brasil é necessário lutar”. E o que é necessário para uma atriz negra atuar no cinema brasileiro?

“Expulsar o medo e o velho”, ele diz. Nós, atrizes, não somos manequins a fim de reproduzir os desejos do diretor de forma passiva. Somos cocriadoras, afinal compartilhamos nossa voz, nosso corpo, impressões e vida com a personagem. Já que o cinema é “uma imagem fixada de uma vez por todas”, o ator, a atriz que estampa a história na tela deve ter alguma influência nas decisões de sua própria imagem. “Cinema, sentimento coletivo”.

“O importante é fazer cinema para o seu tempo. Fazer o que interessa aqui e agora”, David Neves quereria “somar o cinema com a realidade seja ela qual for”. Parafraseando Leda Maria Martins (2022), não importa apenas desvelar os malefícios da imagem, é necessário desmontá-la, interromper seu fluxo, incidir sobre ela, propor outras possibilidades de sua produção e registro.

Portanto, ao falar de Luiza Maranhão não estamos falando de uma “Sophia Loren negra”, como vemos muitas vezes a atriz referenciada. Essa comparação equivoca a singularidade criativa da artista, que, com a maestria de uma presença altiva, deu vida à personagens que tangenciam uma criação incapturável através de atuações como a de Colagem. Como não lembrar do perfil de Cota olhando profundamente os olhos de Firmino (Antônio Pitanga) em Barravento? E novamente a paixão do olhar representados em Dandara e Ganga Zumba em Ganga Zumba (Cacá Diegues, 1963).

Luiza é parte fundamental na história do Cinema Novo, e é a esta memória que Colagem se debruça. O filme registra a presença da atriz “no amor de Pitanga”, que é também o nosso amor enquanto espectadores. Através da técnica de colagem, a trama propõe um desapego das interpretações muito intelectuais do sentido e, em uma costura quase surrealista, convoca elogios à Luiza Maranhão assim como reflexões sobre fazer cinema no Brasil, suas novas “caras” e narrativas.

As cenas que se seguem, como flashes de lembrança e esquecimento, mostram a versatilidade da atriz imbuída no mistério de ser, a cada trecho dos filmes ali unidos, várias de si mesma. Em Colagem, sinto que a razão das imagens é outra e se direciona à sensação fantasiosa de conhecer bem Luiza, torcendo para reencontrá-la na próxima tela, que será o mesmo que ver a mim mesma. “Um sentimento coletivo, cinema”. Luiza, reverenciada por David Neves, se reserva a silêncios indecifráveis, como o deleite que ecoa no imaginário sobre as figuras lendárias, e nos bons clássicos do qual fez parte. Em Colagem, ser narrada em terceira pessoa não a submete à passividade de sua imagem, mas a consagra na história como referência no trabalho de atuar como ato revolucionário, de uma cinematografia necessária no país.

Um dos meus primeiros acordos para a construção de uma personagem é defendê-la. Penso em seguir seus desejos, perceber seus sonhos. Se dança, como dança? Como ama? No que crê? Se dói, onde? Acolher e refletir as contradições, porque estamos interpretando e apresentando a saga da vida humana, ainda que em um recorte específico. Aprendo ofícios, desenvolvo musculaturas invisíveis de afetações, afeto. Tento escutar o som das emoções, os tons de cada sentimento e, assim, equalizar numa colagem orgânica a personagem e sua trajetória. Observo, me envolvo.

Me vejo reproduzindo, ou melhor, tentando decifrar gestos de Luiza, especialmente em Greice (Leonardo Mouramateus, 2024), em uma cena em que a personagem está no quarto escutando um áudio da mãe sobre sonho enquanto prepara uma máscara de gesso e, em determinada altura, tira a máscara. Por baixo, vemos a expressão de um choro que nasce confuso, lágrimas que não sabemos se são de timidez ou um recurso das escolhas de representação. Como uma criança que tenta imitar a diva, volto às suas máscaras de Zulmira, o olhar médio-baixo, o jeito que chora e como sustenta as expressões sem perder a graça em Assalto ao trem pagador (Roberto Farias, 1962). O jeito que corre numa afetação de desespero pueril, com o peito querendo se descolar do corpo em Barravento. No feitiço de Maria dos Remédios, na afronta de Maria.

Ser atriz é um trabalho imenso. Portanto, pensemos em Luiza Maranhão por ela mesma, na santíssima trindade atriz, persona e personagem. Produtora, locutora, cantora e o que dela for. Na curva expressiva de seus olhos, no rosto sério e inesquecível de sua atuação, nas contradições do ofício.