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A palavra e a fala

05 de abril de 2024

A mostra Coutinho 90, em cartaz no IMS Paulista e no IMS Poços, está em seu último mês de exibição.

 

São 10 anos sem a presença física do Coutinho. Anos ácidos, que dariam uma irritação eletrizante no documentarista. Ou, talvez, um outro tipo de perturbação, menos produtiva, diante de nós, pessoas tomadas pelo efeito hashtag. Falamos de um jeito que ficou e fica cada dia mais pasteurizado, embalado a vácuo, sem a centelha do que é espontâneo ou legítimo. Não dá para saber como ele reagiria a isso e a todo o resto. Fato é que, do Coutinho, com quem eu conversava frequentemente, ainda ouço, de 2014 para cá, resmungos e o seu punhado de palavrões prediletos.

A palavra era uma das motivações principais dos seus filmes – dos que conhecemos, mas também dos que ele não fez. Não a palavra pura, dicionarizada, mas a palavra curada na boca de quem diz. "Sobejo", por exemplo, de raro uso neste século, é (ou era?) falada rotineiramente em uma região de Minas Gerais, segundo Coutinho contou. Certos usos da língua portuguesa em porções economicamente isoladas do Brasil o fascinavam. E, se olharmos bem de perto para a obra, podemos pinçar falas ornamentais desde os seus programas para o Globo Repórter. Em Seis dias em Ouricuri, um dos personagens se refere à escassez de alimento no sertão assim: "Panela com dois, três dias que não ferve…". E, em seguida: "Nós tem que procurar é no pé da conversa mesmo". Nesses exemplos, não temos a palavra erudita, mas a expressão popular que se forja e se instala espontaneamente. O mesmo personagem dirá que "nós fiquemo sem nada, fiquemo com a boca aberta, que nem passarinho novo". As figuras de linguagem fazem a festa na fala do brasileiro.

Comecei a trabalhar como assistente do Coutinho em 2009, quando ele preparava o que veio a se tornar As canções. Naquele momento de pesquisa e concepção do projeto, a ideia era completamente diferente. Coutinho, embalado pela exploração que começou em Jogo de cena, pensava em fazer um filme arriscado, totalmente ancorado na força da palavra – e da fala, é claro. A ideia era compilar textos de naturezas diversas – de bulas de remédio a peças de Shakespeare, de guias de comportamento feminino do início do século XX a transcrições de programas vespertinos da televisão aberta. Esses textos seriam lidos e interpretados por atores – escolhidos com muito rigor –, de forma a, nas palavras do diretor, "sublimar o banal e cotidiano assim como o contrário: os textos sublimes podem assumir uma interpretação absolutamente trivial, revestindo-se de linguagem cartorial".

Foram meses garimpando livros velhos e esquecidos nos camelôs da estação Carioca, no Rio de Janeiro. Todo tipo de texto, como avisos protocolares em aeronaves comerciais, poderia se tornar material para os atores. O fato duro de que os assentos do avião são flutuantes poderia ser lido como um poema lírico. Ou um poema lírico poderia ser declamado como uma promoção de supermercado. A imaginação do Coutinho não suportava limites, ao contrário da vida prática. Quem o conheceu com alguma profundidade certamente já presenciou algum momento em que ele disparou a emendar ideias absurdas, como se fosse alguém sob o efeito delirante de uma anestesia geral, momentos antes de apagar. E, a quem não teve a sorte de conhecê-lo de perto, basta conferir o seu primeiro curta de ficção, Le Téléphone, produzido enquanto estudava no IDHEC, em Paris. O nonsense provocado pela palavra – o mal-entendido, o equívoco, o erro de interpretação – era um deleite para Coutinho.

Voltando ao filme não feito, penso que a ideia parecia boa, mas transformá-la em filme… aí era outra história. Devo confessar que fui uma das pessoas que o desencorajou a ir adiante, mesmo depois de ter feito os primeiros contatos com alguns atores formidáveis. Peço desculpas, mas me defendo com o que resultou dessa desistência: Um dia na vida, o filme que não era filme, mas material de pesquisa para um filme futuro (aquele, que não houve); e As canções, cujo dispositivo o próprio autor acusava de estúpido, destituído de qualquer originalidade, mas que ele adoraria fazer. E fez.

Eduardo Coutinho na filmagem de Edifício Master (2001). Foto: Marcio Bredariol / VideoFilmes

Creio que, com Um dia na vida, Coutinho conseguiu alcançar o que pretendia com Grades (título provisório do filme não feito). A colagem de programas e comerciais de televisão daquele longínquo ano de 2009, uma era pré-streaming, gravadas e posteriormente editadas a partir de um conjunto de 24 horas de emissão, deixou evidente o absurdo que transborda da televisão brasileira. Porém, era um absurdo normalizado e desproposital. Sem precisar de quem interpretasse aqueles mesmos textos, o material de origem cumpria a missão de devolver às palavras o seu frescor e elasticidade. Elas espantam e fazem rir, sobretudo quando são ditas de forma sóbria: o absurdo se produzia ao submeter aquele material a um desvio de finalidade, que se dava em função do contexto em que era apresentado. Isto é, editado e exibido em uma sala de cinema, e não a televisão vista na televisão.

Enfim, depois de assumir o fracasso ma non troppo de Grades, Coutinho teve a ideia (ou a coragem) de produzir o tal filme sem originalidade, As canções. A ideia já chegou modificada. Ele tinha o sonho de fazer um filme só com músicas de Roberto Carlos, mas sabia que os direitos autorais tornariam a produção caríssima. Portanto, sequer tentou viabilizar o filme, e expandiu o recorte para qualquer canção. E eu era a pessoa encarregada de encontrar personagens para o filme.

Foi minha primeira experiência como assistente de direção e pesquisadora, frente a frente com o diretor não só de filmes antológicos, mas que sobretudo nos presenteou com personagens inesquecíveis. Corri para a rua com um cartaz na mão e uma câmera, que era operada pelo João Maia Peixoto. Para meu espanto, não eram poucas as pessoas que paravam para contar as histórias de suas vidas. E, para a surpresa de ninguém, as músicas que mais ouvimos foram as de Roberto Carlos. E hinos evangélicos.

Coutinho fez um filme em que pessoas desconhecidas do público cantavam, à capela, a música que havia marcado suas vidas. E contavam a história que envolvia a canção. Sem dúvida, é um dispositivo simples para quem vinha de filmes inventivos como Jogo de cena, Moscou e Um dia na vida. Mas ele também sabia que a simplicidade é o caminho mais acessível para o coração das coisas. E, ao mesmo tempo, que nenhuma história de vida é tão simples – ou fácil – assim. A forma como a emoção tomava o corpo inteiro daquelas pessoas se revelava como uma fagulha mágica no set de filmagem. Choros, pequenas alegrias, confissões duras, alguns constrangimentos e muito alívio. Falar, afinal, também é uma forma de escuta.

Contudo, Coutinho sempre deixou claro que não queria salvar a vida de ninguém. Não porque não quisesse, mas porque era impossível. Nascemos, vivemos, sofremos, sorrimos às vezes e morremos. É simples. E o filme dava conta desses ciclos cheios de expectativa e quase sempre seguidos de uma boa dose de frustração. Ainda assim, havia algo na música, na lembrança que ela evocava, que ultrapassava as contingências e tocava um ponto sensível do espírito. Como uma acupuntura, que espeta, mas cura.

Era dentro dessa mesma lógica que eu ouvia os palavrões de Coutinho. Ele me chamava por nomes de baixo calão com frequência, mas, quanto mais aviltante o xingamento, maior era o carinho. Eu não sei como isso soaria hoje. É certo que nunca foi agressivo ou violento. Supor algo assim seria uma grave falta de entendimento. As palavras têm sempre mais alguma coisa para dizer. São infinitas, como espero que sejam nossas conversas.