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Crise da presença, mitologia para a alma: Filmes de Cecilia Mangini e Storm De Hirsch

23 de outubro de 2024

A Sessão Mutual Films de outubro de 2024 em Poços de Caldas é dedicada à memória da curadora norte-americana de cinema Adrienne Mancia, nascida em 1927 e morta em 2022.[1]

Aaron Cutler e Mariana Shellard (curadores da Sessão Mutual Films)

 

 

“Um documentário se concentra em um evento”, Cecilia Mangini falou em uma entrevista de 2006 ao descrever a sua prática. “É confiado a personagens que são testemunhas de si mesmos, no contexto em que o documentarista escolheu contar a história, como uma ideia, uma descoberta, uma forma de protesto, por amor, interesse ou necessidade. Ele precisa daquela pessoa – aquela mulher, aquele menino – em sua natureza emblemática. Que relação você tem com todos eles? É difícil dizer: há amor à primeira vista, intimidade, tensão. Há também, claro, uma exploração, mas não apenas por parte do diretor: e há sempre a certeza compartilhada de que, terminada a filmagem, o relacionamento terminará. Fica a consciência de ambas as partes de que se trata de uma relação atípica, com prazo de validade incorporado.” [2]

Mangini nasceu em 1927 em Mola di Bari, no sudeste italiano. Ela mudou-se ainda jovem para Florença, onde residiu até concluir seus estudos em ciência política na Universidade de Florença, e depois foi para Roma. A filha de pai socialista e mãe nobre se apaixonou pela fotografia e se aventurava pelas ruas fotografando trabalhadores, camponeses e jovens desocupados. Logo migrou para o cinema, levando tanto a militância política como o interesse por rituais tradicionais rurais e religiosos e pela marginalidade urbana.

Com seu filme de estreia, o curta-metragem documental Desconhecidos para a cidade (Ignoti alla città, 1958), Mangini se tornou a primeira mulher a dirigir um documentário na Itália. Esse compassivo estudo de jovens homens em um bairro pobre de Roma contou com narração escrita por Pier Paolo Pasolini (1922-1975), que, na época, era um controverso poeta e escritor, não tendo ainda se aventurado como diretor de cinema. A parceria entre Mangini e Pasolini rendeu outros dois curtas dirigidos por ela que funcionaram como filmes-retratos de grupos sociais: Stendalì (ainda soam) (Stendalì: suonano ancora, 1960), sobre um ritual de mulheres em luto por um ente querido na região sulista de Salento, e O canto da margem (La canta delle marane, 1961), um olhar nostálgico sobre garotos matando o tempo às margens do rio Tibre, em Roma. Nesses e em seus filmes realizados na década seguinte (antes de uma eventual migração forçada para a televisão e para a função de roteirista em longas-metragens), Mangini trabalhava com fervor e originalidade em um formato predefinido chamado Fórmula 10 – um gênero de documentário com cerca de 10 minutos de duração que geralmente passava antes de longas-metragens em exibições comerciais na Itália.

Mangini também trabalhou nos filmes dirigidos pelo seu marido e colaborador constante, o documentarista Lino Del Fra (1929-1997), que conheceu em Roma, na década de 1950, quando atuava como programadora para a Federação Internacional de Cineclubes (Federazione Italiana dei Circoli del Cinema). Os dois se alinharam ao enxergar o cinema como um gesto político de enorme poder em sua capacidade de unir pessoas em torno de valores comuns. Essa crença ficou evidente no único documentário longa-metragem que eles codirigiram (junto a Lino Miccichè), All’armi siam fascisti! (1962), um trabalho com imagens de arquivo que oferece uma lição de história sobre o legado perigoso do fascismo na Itália. Mas os curtas do casal também eram fortemente políticos ao valorizarem tradições e estilos de vida que desapareciam com o “milagre econômico” que a Itália vivia nos anos após a Segunda Guerra Mundial.

A paixão do grão (La passione del grano, 1960, realizado por Mangini e Del Fra sob o pseudônimo Antonio Michetti), por exemplo, é um estudo de ritos entre camponeses na região de Lucânia, que assume dimensões etnográficas de natureza performática quando os homens encenam seus ritos para a câmera. O roteiro do filme foi escrito pelo etnógrafo e historiador Ernesto De Martino (1908-1965), uma outra importante referência de Mangini. As pesquisas multidisciplinares de De Martino sobre rituais rurais milenares no sul da Itália e a incorporação da percepção do camponês (então tida como primitiva pelo meio acadêmico) ao sistema complexo da percepção ontológica humana – que ocasionalmente levaram ao estudo de campo psiquiatras, psicólogos, musicólogos, sociólogos, antropólogos e fotógrafos – foram revolucionárias para a época. De Martino, segundo a pesquisadora e professora brasileira contemporânea Maria Cristina Pompa, “faria da etnografia das ‘plebes rurais’ a componente central do trabalho antropológico nacional, como fruto do engajamento do pesquisador nas questões sociais”. [3]

O primeiro contato de Mangini com De Martino foi no lançamento de seu livro Morte e pianto rituale nel mondo antico [Morte e choro ritual no mundo antigo, 1958], cujo estudo de rituais antigos de luto tornou-se a base para a realização de Stendalì. Tanto o escrito de De Martino quanto o cinema de Mangini reconheceram a invocação do ritual como uma solução ao problema que De Martino chamou de “crise da presença”, no qual um ser humano perde a sensação de pertencimento ao mundo. As ideias de De Martino continuaram reverberando mesmo nos documentários urbanos subsequentes de Mangini, como O canto da margem e Tommaso (1965), sendo este um retrato de um adolescente em uma cidade sulista que sonha em trabalhar na fábrica petroquímica local.

No mesmo ano de Tommaso, Mangini realizou Ser mulher (Essere donne, 1965), que expõe o contraste entre uma imagem consumista da mulher, vendida nas revistas de moda da época, e o dia a dia de jovens operárias e trabalhadoras do campo, algumas das quais são entrevistadas. Mangini considerou Ser mulher seu filme de maior apreço, pois a diretora se viu no lugar daquelas mulheres, que expressavam abertamente suas insatisfações com um sistema que as oprimia desde a infância. Décadas depois, ela comentou: “A descoberta foi a da mulher que é ‘trabalhada’ pela fábrica, do trabalho pesado, das famílias e a relação delas com uma situação sem esperança, no momento inicial de seus (e meus) questionamentos sobre a necessidade de mudança”. [4] Ser mulher foi comissionado por uma produtora ligada ao Partido Comunista Italiano e posteriormente censurado pela então atuante Democracia Cristã um gesto que acabou dando maior visibilidade ao filme, tanto no exterior (onde ganhou um prêmio no Festival de Leipzig), quanto na Itália, onde virou um hit em cineclubes e circuitos alternativos.

Cena de O canto da margem, de Cecilia Mangini

No início da década de 1960, a artista e escritora norte-americana Storm De Hirsch também estava em Roma para realizar seu primeiro filme, o longa-metragem de ficção Goodbye in the Mirror (concluído em 1964, após sua volta aos Estados Unidos). De Hirsch (que nasceu em 1912, em Nova Jersey, sob o nome Lillian Malkin) passava uma temporada na Itália para cobrir festivais de cinema para publicações norte-americanas, e fez de seu filme um estudo semi-improvisado de três estrangeiras que enfrentam diversos desafios ao morar na capital italiana. Ainda que centrado em protagonistas femininas, de forma inusitada para filmes da época, a diretora negava-se a acreditar na noção de uma autoria explicitamente feminina. Quatro anos após a estreia de Goodbye in the Mirror, ela disse: “Eu sinto que, quando se trata de arte, tem uma questão de alma, de mundo interior, isso é um universal; e sinto que a alma não é nem masculina, nem feminina”. [5]

De Hirsch falou isso em uma conversa com a cineasta norte-americana Shirley Clarke (1919-1997) que, assim como ela, se alinhou a um grupo de cineastas experimentais e independentes baseados em Nova York que surgiu entre as décadas de 1950 e 1960 e ficou conhecido como o Novo Cinema Americano. Entre os que De Hirsch professou mais admirar estavam seu marido e colaborador frequente, Louis Brigante (1925-1975), e outros artistas cujos filmes performáticos procuraram quebrar tabus sociais, como Ken Jacobs (1933-), Gregory Markopoulos (1928-1992), Jack Smith (1932-1989) e o criador do grupo, o poeta e cineasta de descendência lituana Jonas Mekas (1922-2019).

Quando começou a fazer cinema, De Hirsch já era uma poeta estabelecida, tendo publicado poemas cujos versos de teor surrealista, com imagens góticas e violentas, retratavam o mundo como uma extensão da psique humana. Muitos dos filmes que ela fez após Goodbye in the Mirror mantinham coerência com seus poemas pelas diversas maneiras em que investigavam as qualidades do ritual, do misticismo, da magia, da sexualidade e da vida interior projetada para fora. Esses filmes, quase todos curtas-metragens, foram realizados entre 1962 e 1975 (ano em que Brigante faleceu e ela abriu mão de seu estúdio), com recursos próprios e De Hirsch como a operadora das câmeras super-8 e 16 mm.

A cineasta estudava mulheres místicas cujos trabalhos existiram entre o espiritualismo e o charlatanismo, como a russa Helena “Madame” Blavatsky e as norte-americanas Ida Craddock e as Irmãs Fox. A influência delas sobre De Hirsch pode ser percebida em filmes que criam experiências físicas e concretas da imagem através de abstrações psicodélicas sensoriais. Uma trilogia de filmes chamada A cor do rito, a cor do pensamento (The Color of Ritual, The Color of Thought, 1964-1967) apresenta o mundo mágico e o poder do cinema para potencializá-lo, ao casar intervenções de pintura à mão e arranhões na película com trilhas sonoras que evocam estados de transe e êxtase. A experiência com dupla projeção em Borboleta do terceiro olho (Third Eye Butterfly, 1968) convida o espectador a criar uma nova percepção a partir das intersecções de imagens preexistentes. A busca de De Hirsch pela natureza profunda e primitiva da psique também resultou em narrativas oníricas como Geometria da cabala (Geometrics of the Kabbalah, 1975) e o média-metragem O Homem Tatuado (The Tattooed Man, 1969), que recontam em termos alegóricos a tomada da consciência do ser humano.

Em uma conversa com Mekas sobre Goodbye in the Mirror, De Hirsch citou como um de seus cineastas preferidos o italiano Vittorio De Seta (1923-2011), realizador de uma bela série de documentários curtos chamada O mundo perdido (Il mondo perduto, 1954-1959), sobre o desaparecimento das tradições milenares do sul da Itália.[6] O fascínio de De Hirsch pelo misticismo e pela relação próxima entre o ser humano e a natureza, características do mundo antigo, e que traçam uma linha tênue entre performance e realidade, moldaram e fortaleceram sua obra cinematográfica. Junto aos seus estrondosos filmes sonoros, há diversos filmes silenciosos que oferecem breves experiências intensamente poéticas, muitas vezes baseadas em uma exploração em primeira pessoa de paisagens naturais. Tanto a série de seis “cine-canções” (“cine-songs”) que ela realizou na década de 1960 quanto nos filme-diários e na série de 14 “cine-sonetos” (“cine-sonnets”) da década de 1970 geram uma consideração implícita sobre a mortalidade humana ao observar a passagem do tempo.

Cecilia Mangini acompanhou um crescente interesse em sua obra na última década de sua vida e participou em diversas retrospectivas e homenagens antes de falecer em 2021. Em contraste, quando De Hirsch morreu em 2000, ela estava afastada da vida pública e com seu nome ignorado pela maioria dos estudos sobre a vanguarda norte-americana. O trabalho dela ficou mais conhecido em anos recentes com o lançamento de alguns de seus filmes em DVD (em 2020) e a publicação impressa de sua poesia completa (em 2018), ambos nomeados a partir de um de seus poemas: Mitologia para a alma (Mythology for the Soul). Um leitor pode encontrar nos textos, originalmente publicados entre 1955 e 1966, referências diretas aos filmes – por exemplo, o nome de uma das “cine-canções”, Silenciosamente carregando o totem de um pássaro (Silently, Bearing Totem of a Bird, 1962), aparece como um verso no poema “Harangue the Night”. Lá estão também desde os primeiros trabalhos, visões e evocações de uma busca sem fim.

 

“Loa a mulher”

(Storm De Hirsch, 1955):[7]

Loa a mulher
anda na linha
passo às pressas
reza e reta
pietá
mar afora.
Empalada na proa
pau pra toda obra
boi de piranha
dia e noite, noite e dia
até a horda espessa
da onda expressa
espremer o estupor
na praia esfomeada
dos moluscos taciturnos
lábios de fenda
no turno
das marés
caros carunchos
crisálidas e
loa a mulher
piruetando em Polaris.
Tramoias do mar
a lua careca
e uns fios fugidios
e a luz laceada
a roncar rancorosa e vibrar
a língua da víbora
que acena sedenta
por cópula em pele no pelo
soco no osso a seco.
Pista e pústula
verde incrusta
loa a mulher
fugidia da história
ela apela à vitória.

 


 

[1] Obiturário de Adrienne Mancia no portal The New York Times (em inglês).

[2] A entrevista, originalmente conduzida por Gianluca Sciannameo e publicada no livro Nelle indie di quaggiù: Ernesto De Martino e il cinema etnografico e outros materiais sobre Mangini, no portal Anothe Screen (em italiano e inglês).

[3] Artigo de Pompa, “Ernesto De Martino e o percurso italiano da antropologia”, foi publicado em 2022 em Horizontes Antropológicos.

[4] Depoimento de Mangini em 2019, para o catálogo do Festival Il Cinema Ritrovato, em Bolonha, na ocasião da exibição da versão recém-restaurada de Ser mulher (pp. 109-110).

[5] Conversa entre De Hirsch e Clarke sobre seus trabalhos e a importância ou não do gênero de um artista, publicada originalmente na revista Film Culture (em inglês).

[6] O texto de Mekas, “An Interview with Storm De Hirsch”, foi publicado na The Village Voice em julho de 1964, logo antes das sessões de Goodbye in the Mirror no Festival de Locarno, e pode ser encontrado no livro de Mekas Movie Journal: The Rise of a New American Cinema, 1959-1971.

[7] A tradução do inglês para o português deste poema foi feita pelo poeta e tradutor brasileiro Victor Scatolin Serra. O texto original de “Bells the Woman” pode ser encontrado no livro Mythology for the Soul: The Collected Poems of Storm De Hirsch, editado por Stephen Broomer.