Agosto de 1980. Jorge Bodanzky já havia concluído longas-metragens como Iracema, uma transa amazônica (1974), Gitirana (1975) e Jari (1979) quando retorna a Manaus para uma nova realização com financiamento da ZDF, emissora pública de televisão da Alemanha, em companhia do alemão Wolf Gauer e do inglês radicado no Brasil David Pennington. Com Pennington no som, munido de um gravador Nagra, e Bodanzky na câmera Éclair¹, a pequena equipe seguiria o senador Evandro Carreira em uma expedição fluvial da capital amazonense até Benjamin Constant e Cavalo Cocho, na fronteira com o Peru. Se Iracema incorporava à ficção elementos do cinema documentário para retratar a realidade da população amazônica em meio à construção da nova rodovia, Terceiro Milênio é inequivocamente um documentário. Ainda assim, o protagonista, que tinha dado prova de carisma e eloquência durante as filmagens de Jari, apresenta o colorido de um personagem de ficção algo cômico, algo sobrenatural.
Evandro Carreira (1927-2015), eleito senador pelo MDB do Amazonas em 1974, procurara Bodanzky em São Paulo, pois sabia que o cineasta havia registrado imagens da floresta em chamas em Iracema. Contou que presidia a primeira Comissão Parlamentar de Inquérito da Amazônia e da conversa surgiu o projeto que se tornaria Jari. Em nosso primeiro contato com o personagem, no início de Terceiro Milênio, um princípio de entrevista é interrompido quando o telefone de seu diretório em Manaus toca. Do outro lado da linha, o interlocutor incita o parlamentar a identificá-lo pela voz. Carreira rapidamente transforma o embaraço em uma saudação efusiva ao deputado, chamando-o de “meu amigo, meu irmão”. O partido estético do filme fica assim evidenciado de saída: os realizadores estão menos interessados em entrevistar Evandro Carreira do que em apresentar as facetas de sua personalidade complexa através das situações que surgem no percurso pela região do Alto Solimões.
Antes de levantar âncora, o senador pede que seu nome, pintado em vermelho na embarcação, seja reforçado. Quer que as pernas do "E" pareçam mais grossas. Quando o motor esquenta e o momento de zarpar é adiado, Carreira aproveita para falar sobre o tempo amazônico: quem está acostumado com hora marcada e rapidez vai se estressar, isso não funciona ali. O comentário sobre a temporalidade amazônica pode parecer lugar-comum ou então soar como um recado para a equipe, provavelmente acostumada à propalada “pontualidade alemã”. Mas, àquela altura, Bodanzky e Gauer possuíam uma considerável quilometragem de Amazônia. Além disso, no arco que o filme descreve, percebemos que o combate que Carreira trava é com as instituições do poder federal do Brasil. Como a Fundação Nacional do Índio, a Funai, criada para proteger os indígenas, mas acusada de corrupção e de tentar maquiar as más condições de vida das populações amazônicas.
Ao final da expedição, o senador incensa as potências proteicas daquela civilização aquática, chamada de “hidromedusa”, e diz: “É um mundo diferente, que Brasília não entende e ninguém entende”. Encerra-se o percurso fluvial e, numa espécie de epílogo, o filme mostra que, por mais que estejamos diante de um brilhante orador, há mais em seu discurso do que retórica afiada. Na Capital Federal, vemos o parlamentar de gravata, primeiro em seu apartamento, postado diante de uma tela de grandes dimensões que retrata uma paisagem amazônica. Será que a melancolia da cena vem da pintura? Nela, uma casa solitária e inabitada aparece em meio à vegetação sem movimento, emoldurada por galhos e folhas escuras, que pendem para o chão. Pela primeira vez ouvimos da boca do político palavras como angústia e nostalgia. Instantes depois, quando discursa na Casa Legislativa, o retrato se completa: o senador pega o microfone para falar dos perigos enfrentados pela Amazônia nessa “sociedade antropófaga e capitalista”, e os demais políticos fazem troça.
No retrato complexo e ambíguo que Terceiro Milênio faz, Evandro Carreira apresenta contornos de um personagem incompreendido. Esse é, aliás, o sentido do título do filme, retirado de uma fala do senador, já ao final da viagem. Apenas no século 21 seu argumento terá condições plenas de entendimento, insinua ele, num discurso que tomo a liberdade de reproduzir aqui. Na proa da embarcação, sob a luz do fim de tarde, de sunga estampada e torso nu, Carreira diz, voltado para a câmera:
A Amazônia é isso. É água, é umidade, é calor, é selva, é árvore, é fotossíntese. E eu me sinto como parte dela. É uma nova esfinge indagando o homem do futuro. Pedindo uma decifração dessa realidade hidrofitográfica que é a Amazônia. Ou tu me inventarias, ou tu me investigas, ou tu me decifras, homem do terceiro milênio, ou eu te devorarei com a devastação, com o deserto e com o inferno que será a futura Amazônia... (grifo meu).
Sem qualquer sinal de linguagem que indique a mudança, Carreira passa a falar em nome da Amazônia em primeira pessoa, no que soa como uma funesta profecia, e que talvez apenas nosso tempo tenha a condição efetiva de ouvir. De fato, o argumento do senador, que mencionava a necessidade não de tentar domar a natureza da floresta, mas de adaptar-se a ela, respeitando-a, destoava à época. Nos estertores da ditadura civil-militar, vigorava o desenvolvimentismo e o ideal de progresso que dependia do controle das forças naturais. Nesse sentido, Carreira parece mais próximo deste nosso terceiro milênio, em que se tornaram populares livros de autores indígenas, como Ailton Krenak e David Kopenawa, e de defensores da agência das plantas, como Stefano Mancuso e Emanuele Coccia.
O discurso do senador, ainda no barco, continua: “[...] que só poderá ser preservada se um dia a Amazônia tiver um governador capacitado para tanto, que a entenda, que a compreenda”. Está falando de si, qual um mensageiro do futuro. Nesse ponto, porém, o discurso começa a virar: “[...] que a penetre, que a desvirgine, que a deflore com ideias autênticas, não estuprando-a, deflorando-a com amor, com harmonia”. É então que ele mesmo se interrompe. Já em terra firme, ele vira a cabeça para o lado e diz: “Olha esse olho lindo da cabocla da nossa terra”. Vemos, então, uma mulher morena, sorrindo. Dentre as muitas com quem Carreira interage ao longo do filme, me intriga a loira, de biquíni, que faz parte da tripulação do barco. Aparece algumas vezes na borda da imagem e jamais se dirige à câmera, não é identificada, não sabemos o que faz ali. Crianças, ribeirinhas e indígenas também têm suas imagens gravadas ao longo do percurso. Na cena em questão, numa das sequências finais, a “cabocla de nossa terra” encara a câmera e balbucia algo e suponho que, sorrindo, agradeça. Não chega, no entanto, a ser efetivamente ouvida.
A pesquisadora Marina Bredan, em um de seus textos sobre Terceiro Milênio², escreve que “embora Carreira seja às vezes visionário, seu discurso não está isento de cair em clichês coloniais sobre a Amazônia, como quando compara a floresta a uma donzela”. Impossível não lembrar que o nome da floresta é forjado na expedição em que torsos imberbes são vistos, provavelmente de indígenas, e confundidos com mulheres guerreiras da mitologia grega, como Pentesileia, representantes de uma cultura matriarcal que assombrava por lutar como homens. Em De volta ao terceiro milênio (2006), Bodanzky retorna ao Alto Solimões e exibe as filmagens de Carreira para a população local. Para Marina Bredan, quando, na plateia, uma mulher reconhece no discurso de Carreira uma apologia ao estupro, “o arcaísmo dos termos” seria capaz de revelar “a longa história de violência enraizada na história do colonialismo, das missões religiosas e do heteropatriarcalismo”.
Ao longo de Terceiro Milênio, uma mulher é de fato filmada e ouvida. Trata-se de uma antropóloga que fala sobre a disposição dos Ticuna em aprender português, ligada ao desejo de embranquecerem-se, de deixarem de ser considerados “índios”. É um plano curto, relativamente escuro, e a antropóloga está no fundo do quadro. Como seu nome não é mencionado nos créditos do filme, fiz uma captura da tela para tentar identificá-la, e tentei buscas infrutíferas no Google. Mais sucesso teve minha amiga Oiara Bonilla, professora de antropologia da Universidade Federal Fluminense, que mobilizou colegas e alunas para identificá-la, a meu pedido. Será Eliane Cantarino O'Dwyer? Ou Priscila Fauhaber? As hipóteses se multiplicavam e nós nos dávamos conta que, na década de 1980, havia diversas mulheres pesquisando e atuando na região. O nome mais provável é o de Jussara Gruber que, naquela época, estava entre as fundadoras de um Centro de Documentação e Pesquisa do Alto Solimões. Por décadas, suas pesquisas buscavam ajudar o povo Ticuna a estabelecer uma identidade mais forte, defender sua cultura e proteger suas terras contra latifundiários e madeireiros.
Terceiro Milênio é um filme cheio de tempos fortes, habilmente conduzido pelas falas e gestos do senador. Num desses momentos, ele está em uma comunidade Ticuna e o assunto é alfabetização. Quando os indígenas reclamam por escolas, Carreira incita os indígenas a aprenderem uns com os outros e começa a testá-los. “Quem aqui sabe ler?”. Aos que conseguem provar que já adquiriram a habilidade, o político oferece exemplares de seu livro, Recado amazônico³. Sua plataforma política baseava-se em seis pontos principais, que sintetizam sua ambivalência entre um respeito absoluto à selva e o desenvolvimentismo baseado na abertura de estradas e no crescimento da Zona Franca. Leitor de Ramayana de Chevalier (1909-1972), Carreira enfatizava a pequenez dos humanos diante da imensidão do planeta e do universo, maiores e muito mais antigos do que nossa espécie. Que a humanidade de nosso tempo esteja mais propensa a preparar a própria devoração é uma triste leitura a contrapelo das profecias do senador milenarista. Talvez possamos considerar, por outro lado, que estejamos hoje mais aptos a ouvir alguns de seus argumentos e a lutar pela proteção das vidas humanas e não humanas da hidromedusa.
¹ ARAUJO, Mauro Luciano Souza de. Cinema ativista de Jorge Bodanzky – o imaginário profundo de Terceiro Milênio. Manuscrítica, São Paulo, Brasil, n. 19, p. 138–156, 2010. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/manuscritica/article/view/177668.
² BREDAN, Marina. Terceiro milênio: o recado amazônico de Jorge Bodanzky. Revista Rosa, v. 2, n. 2, novembro de 2020. Disponível em: https://revistarosa.com/2/terceiro-milenio.
³ CARREIRA, Evandro. Recado amazônico. Brasília: Senado Federal, 1976.