Luiza Maranhão,
Teu nome se repetiu por diversas vezes em diferentes jornais nas décadas de 1960 e 1970. Barravento, Assalto ao trem pagador, Ganga Zumba. A deusa negra do cinema brasileiro. A cantora, que preparava um show com Wilson Simonal e um LP. A modelo, que alçava voos em passarelas italianas. A mulher que não encontrava maquiagem de sua cor em terras estrangeiras.
Ely Azevedo te chamou de “baiana gaúcha”. Alex Viany, por sua vez, de “Sophie Loren em negativo”. Nos palcos de teatro, destacaram sua voz rouca ao substituir Nara Leão em Liberdade, Liberdade, do Grupo Opinião. Você esteve em Recife, na praia de Boa Viagem, por ocasião da peça, e mencionou que acreditava que o Cinema Novo consolidaria o cinema brasileiro ao redor do mundo.
Entre alguns anúncios de publicidade, A canção do negro amor, dirigida por Zózimo Bulbul, também chamou atenção. As linhas deixaram escapar sua posição política crítica à ditadura civil-militar que atravessava. Será que você tem uma cópia do texto que Nelson Rodrigues escreveu sobre ti, no Roteiro do Rio, em 1963?
Uma colunista lamentou quando não te escolheram para ir a uma das edições do Festival de Arte Negra de Dakar. É verdade que Augusto Rodrigues escreveu a canção Mundo triste após ver você cantando enquanto pintava um retrato teu? No cantinho da página do jornal, afirmavam que Luiza Maranhão iria defender a tal música no II Festival da Canção Popular, em 1967. Zezé Motta, em outra matéria, disse te ter como inspiração.
Seu talento e trabalho como atriz, sempre em destaque, não aparecia entre as linhas sem qualquer elogio ainda maior a suas feições, seu corpo negro, sua sensualidade. Fotografias tuas nas páginas dos folhetins encarnam justamente a contradição dessas histórias da sua biografia que são imaginadas através de manchetes, entrevistas e críticas de cinema desse recorte temporal: a mistura entre admiração, exotismo, fascínio, respeito, desejo, racismo e orgulho.
A ambiguidade ao retomar esses momentos da tua vida de multiartista parece ser própria daqueles e daquelas que construíram a história do cinema brasileiro com/apesar/através de sua negridade. Controverso também é dedicar uma sessão de filmes a quem, desde o início, dizia não gostar de cinema. Mas, como revisitar as proposições estéticas e os seus modos de atuação, senão olhando novamente para as obras que você colaborou?
O desejo de mergulhar na vida e obra de Luiza Maranhão nos levou até Colagem (David Neves, 1968) e Boi de Prata (Augusto Ribeiro Jr., 1980). Títulos mais desconhecidos de sua filmografia, eles nos possibilitam investigar acerca de dois períodos fundamentais da carreira da atriz negra: seu envolvimento triunfante com o Cinema Novo e sua volta ao cinema após ter vivido alguns anos fora do Brasil.
O inconformismo, então, se figura através do contato entre os dois filmes. De um lado, no seio cinemanovista, apresenta-se não apenas um ideal cinematográfico, mas uma projeção revolucionária sobre um país. Luiza Maranhão e Antonio Pitanga, aqui, são as vozes, os rostos, aqueles que, emblemática e contraditoriamente, corporificam os anseios dos cineastas brancos de classe média.
Do outro, na quentura do Seridó, a luta anticolonial ganha bravura e brilho com um boi cintilante. Luiza, de deusa do Cinema Novo, transforma-se em sonho, onça, dona de casa, curandeira e feiticeira. O interior do Rio Grande do Norte reencena as tensões de poder que recortam o Brasil antes mesmo dele ter sido nomeado assim.
Para a sessão, convidamos a pesquisadora e curadora Mariana Queen Nwabasili para conversar a partir da poética de Luiza Maranhão. Contamos também com uma versão inédita digitalizada em 4K de Colagem, produzida especialmente por ocasião dessa homenagem, uma realização do Cinema do Instituto Moreira Salles e da plataforma INDETERMINAÇÕES, com apoio da Mnemosine Serviços Audiovisuais. A digitalização ocorreu no Laboratório Mapa Filmes do Brasil/Link Digital, localizado na cidade do Rio de Janeiro. A coordenação técnica é assinada pela preservadora audiovisual Débora Butruce.
Na Revista do IMS, a atriz Amandyra ressalta a magia, o mistério e o encantamento de Maranhão, sua multiplicidade, e vê-se diante de uma referência atoral que a motiva cinemirar, olhar para o invisível através do cinema. Já o pesquisador, diretor e curador de cinema Ewerton Belico entrecruza o curta e o longa-metragem em suas jornadas históricas, onde a performance de Luiza Maranhão aparece como força motriz de sopros do tempo, reverberando encontros que produziram cinemas possíveis.
As assimetrias e conflitos dessas histórias aparecem, mesmo à revelia, na superfície dessas imagens. Interessa, portanto, dar atenção e acompanhar as expressões, os olhares, os movimentos de Luiza Maranhão. E, mais ainda, perceber como sua contribuição artística e estética nos ajuda a reelaborar as memórias, o passado e a história do cinema nacional, dando destaque a negridade que pavimenta e realiza aquilo que entendemos como cinema brasileiro.
Lorenna Rocha e Gabriel Araújo (INDETERMINAÇÕES)