Este post faz parte do filme Depois de horas, do diretor Martin Scorsese, em cartaz no IMS Paulista
"A vida não me assusta", ensina Maya Angelou em seu clássico livro infantil ilustrado por Jean-Michel Basquiat. Mensagem necessária. Planeta Terra, 500 milhões de anos atrás: nossos oceanos turvos eram jovens, clarões de relâmpagos golpeavam sua superfície, o sol, um borrão de luz em um céu enevoado, e eventualmente bolas flamejantes cortavam o céu, caindo no mar e traçando longos rastros de fogo, causando impactos que geravam tsunâmis que lançavam ondas gigantescas contra os continentes, tomados por rios de lava, produzindo nuvens de vapor que escureceram o sol. Em contraste com esse panorama infernal, mas magnífico, a água engendrava uma história microscópica. Ali, moléculas orgânicas nasciam em meio aos relâmpagos e a raios cósmicos, e ali colidiam e se fundiam por milhões de anos até que, por fim, uma trêmula sequência de moléculas orgânicas deu início a uma história extraordinária de entendimento de que o esplendor da vida está no fato dela ser fundamentalmente caótica. Seguiram-se o proterozoico, o paleozoico, o cambriano, ordoviciano, siluriano, devoniano, carbonífero, permiano, mesozoico, triássico, jurássico, cretáceo, cenozoico, terciário e quaternário.
Então surgiu a humanidade. O primeiro animal, por medo e arrogância, que se atreveu a tentar domar o caos.
A história da humanidade é a história de nossas invenções. Nossas invenções dizem o que a humanidade é. Para tentarmos domar o caos, inventamos a agricultura, encerramos hábitos nômades, inventamos de nos juntarmos em grandes cidades, descobrimos que, para controlar uma quantidade grande de seres humanos aglutinados, precisávamos criar sistemas de governo imperiais, uma ordem cambial, uma classificação moral e cívica, regras sociais e, por fim, religiões, pecado, fé e culpa. Nada disso deu certo. Inventamos, então, o escritório.
No escritório, das 9 às 18h, engravatados, com uma rotina específica de tarefas para cada dia, metas a serem reconhecidas por uma corporação, finalmente encontramos o templo mais eficiente para nosso espírito, que no fundo teme a vida. Um lugar que nos proporciona, sem percebermos, um conforto, longe dos perigos da floresta caótica primordial de onde viemos milhões de anos atrás. Onde podemos viver de modo seguro e organizado.
Mas também inventamos o cinema.
Em 1984, Martin Scorsese, cineasta de formação cristã e tendência para o pecado, estava sofrendo uma crise de fé e de culpa. Sua fé no cinema estava praticamente esgotada por conta dos percalços e, por fim, no cancelamento de seu projeto A última tentação de Cristo, que viria realizar anos depois. O livro, e o filme, mais amoroso com a ideia de um Cristo humano, sofrera severo boicote justamente da Igreja Católica, que se organizou para enviar cartas com ameaças nada cristãs, 500 por dia, para o estúdio Paramount. Já sua crise de culpa era algo crônico, efeito colateral de quem segue qualquer uma das religiões abraâmicas (judaísmo, cristianismo e islamismo, que têm em comum forte antipatia por subjetividades). Scorsese sentia culpa porque, na verdade, é devoto, e ao mesmo tempo sacerdote, de uma religião nada abraâmica. O cinema. O tipo de cinema que faz uma chave jogada de uma janela assustar por conta da subjetividade do personagem que vai pegá-la. O tipo de cinema idólatra de uma Nova Iorque caótica, cocainômana, infernal, e boêmia.
Na impossibilidade de fazer seu filme sobre Cristo, e frustrado com o sistema de grandes estúdios engravatados ao qual parecia não se adaptar (até então suas obras-primas haviam sido Taxi Driver e Touro indomável, feitos com equipes mínimas), o mundo sorriu para Scorsese quando um novato Tim Burton liberou para ele um roteiro sobre um engravatado que se dá muito mal ao arriscar dispor seu corpo e, principalmente, seu desejo, fora de um escritório, e dentro de um bairro caótico, cocainômano, infernal e boêmio de sua Nova Iorque.
O roteiro de Depois de horas (After Hours, 1985), escrito por Joseph Minion, um jovem de 26 anos, como conclusão do curso de cinema, é uma história sobre culpa divina e involução humana. Conta uma noite na vida de Paul Hackett, um sujeito superficial em seu tédio no escritório e em seu apartamento. A vida controlada, uma bela mulher que parece dar em cima dele em um café após o expediente, não lhe assustam. A vida caótica, uma corrida de táxi pela noite da cidade, sim. E isso é fundamental para entendermos a grande influência e o grande homenageado neste projeto, outro pensador da evolução humana: Alfred Hitchcock.
A definição do mestre inglês a respeito do que caracteriza suspense é: quando a audiência sabe que há uma bomba debaixo da mesa pronta para explodir, mas o personagem fazendo sua refeição, não. Em Depois de horas, Scorsese faz o que Hitchcock fez em toda sua carreira: colocar em estado de suspense o público médio, superficial, os que têm preconceito com o tipo de ser humano que não se assusta com a vida. Os que não têm vertigo (“vertigem”, Um corpo que cai).
Os que não têm medo de altura e saboreiam Hitchcock de outra forma percebem, em Depois de horas, que há algo especial para acontecer desde o momento em que o fotógrafo alemão Michael Ballhaus apresenta a personagem de Rosanna Arquette, o coelho que nos levará ao País das Maravilhas, com um sinal vermelho piscando sobre sua face.
Depois de horas é, em muitos aspectos, a história do casamento de Scorsese com Ballhaus, que foi fotógrafo de outro alemão que não tinha medo de nada, e era apaixonado pelo caos, pela cocaína, pela boêmia e por sua cidade infernal: Rainer Werner Fassbinder e sua Berlim. No célebre traveling 360 graus que Ballhaus criou para Martha (1974), de Fassbinder, está tudo o que ele faria para Scorsese em Os bons companheiros, e quando os dois conseguiram finalmente fazer A última tentação de Cristo. Em certo momento, Paul corre pelas ruas após uma série de episódios especiais, que o espectador assustado percebe como estranhos, e pergunta a Deus o que ele fez para merecer tantos infortúnios.
O silêncio vem da observação do ridículo de nos acharmos o centro de uma narrativa divina. Vê como infortúnios tudo o que acontece na vida de Paul quem não percebeu o óbvio: os verdadeiros infortúnios acontecem com os personagens tridimensionais que gravitam em torno de Paul. Hitchcock, Fassbinder e Scorsese, os habitantes do SoHo novaiorquino e as pessoas tridimensionais que existem no mundo possuem um olhar crítico a respeito das superfícies, do conforto e da organização.
Scorsese repete, no início e na conclusão do filme, uma releitura analítica da cena de um dos filmes da primeira sessão do cinematógrafo: A saída da fábrica Lumiére em Lyon. De 1895, o curta mostra a saída dos operários, o fim do expediente, todos se encaminhando para os seus after hours. Imagem ícone da modernidade, que nos ensinou que a industrialização capitalista operou uma série de modificações na vida dos indivíduos, construindo, também, o seu próprio tempo de existir. Mas há o tempo do desejo. E se em Depois de horas vemos que o desejo perdeu a guerra, porque há, nos sublimes créditos finais, uma distópica, irônica e selvagem dança da câmera no escritório, ainda mais cacotópica é nossa época, em que o escritório está em nosso bolso, dentro de um celular, em que nos assusta perdê-lo mais que a vida, cujas telas estão a cada dia sendo mais usadas para ver filmes de Scorsese, e que querendo estar protegidos do universo, elegemos um lugar onde não há after hours e o expediente é infinito. O home-office.