Quatro documentários de Eduardo Coutinho lançados nos anos 2000 estiveram em cartaz no IMS Paulista de 9 a 30 de maio na mostra Coutinho 90: Edifício Master, Peões, O fim e o princípio e Jogo de cena, todos em cópias 35 mm.
Em 11 de maio de 2023, Eduardo Coutinho faria 90 anos. Se ele ainda estivesse por aqui, que filmes estaria dirigindo?
Convivi com Coutinho por mais de 20 anos e sobre ele só tinha três certezas: que, marcado um encontro, ele não se atrasaria; que ele chegaria fumando; e que viria com uma bolsa a tiracolo. Qualquer outra previsão seria mais ou menos como apostar nos cavalos (ele gostava das corridas no Jóquei, achava aquilo bonito). Embora tenha sido o produtor de vários filmes dele, só retrospectivamente fui capaz de intuir o fio que unia o documentário seguinte ao anterior. Por que Jogo de cena (2007) depois de O fim e o princípio (2005)? Como, de Moscou (2009), se chega a As canções (2011)?
Tomada ao pé da letra, então, a pergunta do primeiro parágrafo soa retórica – não pode ser respondida. Mas é possível especular, tratando a coisa como um experimento mental.
Começo pelas certezas.
O próximo filme de Coutinho seria ainda um filme de conversa, ou, lembrando uma ideia que lhe era muito, muito cara, um cinema da palavra. “Descobri a palavra pela falta que ela me fazia em tudo o que eu via no cinema”, ele me disse em 2012.
O próximo filme de Coutinho seria um filme com gente que a plateia não reconheceria na rua, pessoas anônimas em grande parte, a maioria delas remediada ou pobre. Nenhuma estaria ali como representante de alguma categoria sociológica. Seriam, tão somente, representantes de si mesmas. Nesse próximo filme, nenhum personagem estaria condenado de antemão a caber no figurino esperado. O operário de fábrica poderia ter orgulho da peça que seu trabalho mecânico produz. A empregada doméstica poderia se identificar politicamente com a patroa. A catadora de lixo poderia dizer que só no lixão ganhou autonomia e se deu conta de que era dona de si.
Haveria, portanto (e disso tenho certeza absoluta), personagens capazes de passar uma rasteira nas nossas convicções. O mundo segundo Coutinho era feito de “impurezas” que mereciam ser celebradas. Perigoso era o contrário, a utopia. Para ele, as duas palavras mais obscenas de todo idioma eram “pureza” e “perfeição”.
As pessoas do seu próximo filme falariam não dos grandes temas da história, mas dos acontecimentos do dia a dia, daquilo que às vezes ele descrevia como “os desastres do cotidiano”. Desastres – e isto é fundamental – incapazes de derrotar a pessoa que narra. Apesar das surras da vida, das carências todas, as personagens serão suficientemente inteligentes para inventar razões que as afaste do desespero. Tornarão a lembrar – e, com isso, de certa forma reviverão – os momentos que trazem um sentido à existência. Poderá ser a solidariedade entre colegas de trabalho, uma amizade, um amor conturbado, uma canção, uma volta por cima, um elogio recebido. Às vezes parecerá pouco para o espectador. Coutinho nos fará ver que é imenso para quem conta; é o quanto basta, muitas vezes, para que a pessoa se diga, se não feliz, ao menos satisfeita e capaz de alegria.
Ninguém no seu próximo filme será sujeito passivo das circunstâncias. Ninguém será apenas vítima. O filme tentará ser digno desses relatos, tentará se pôr à altura do que está em jogo, honrando a importância que esses episódios têm para quem os viveu.
Coutinho não fará o seu próximo filme sobre pessoas iguais a ele. Não será um filme sobre intelectuais, cineastas, diretores de televisão ou jornalistas, sobre quem vive no seu mundo mental e compartilha dos mesmos bens culturais. “O que me interessa é exatamente o fato de eu não ter nada a ver com eles [os personagens]”, repetia. Por isso filmes sobre mulheres, operários, camponeses, crentes, sobre gente pouco letrada e de outra classe social. (É interessante imaginar a recepção desse cinema caso Coutinho estivesse aparecendo agora, ele cuja consagração antecedeu o advento das políticas identitárias.)
“Quero conversar com uma mulher porque não sei o que é dar à luz. Quero conversar com um negro porque não sei o que é ser discriminado por causa da cor da minha pele.” Queria saber, embora tivesse plena consciência dos limites desse desejo. Sabia que a parte que se furta à câmera será sempre maior do que a parte que se revela. O fato de que prevalecerá sempre o que não se pode saber da personagem lhe parecia uma força, não uma fraqueza. Como categoria do pensamento utópico, toda presunção totalizante era para ele uma abominação.
Eduardo Coutinho nas filmagens de Edifício Master (2002)
Essas são as minhas certezas. Elas podem até dar a impressão de que o próximo filme de Coutinho seria um outro e mesmo filme, mas não. Coutinho nunca se repetiu, e essa é uma das grandes belezas do seu cinema. Seu trabalho não é uma coleção de filmes pontuais, mas um processo por meio do qual o cinema é pensado. Nesse sentido, ele é um dos poucos cineastas brasileiros dos quais se pode dizer que têm uma obra, entendida aqui como um conjunto mais rico do que as partes.
Cada filme avança uma casa em relação ao anterior, como quem, pé ante pé, frame ante frame, se aproxima sempre mais da fronteira além da qual o cinema se desfaz. Sua obra permite aferir o mínimo necessário para que um filme seja filme. Basta pensar no que Coutinho vai deixando pelo caminho à medida que avança: argumento, roteiro, narração, trilha sonora, movimento de câmera, as ferramentas básicas da profissão.
Isso acontece sempre aos poucos, filme a filme. Tomo como exemplo os documentários que mencionei no início.
Em O fim e o princípio, Coutinho decide começar a filmagem sem saber o que filmará. A ideia é descobrir o argumento durante a produção. Acaba encontrando uma comunidade de pessoas enraizadas numa riquíssima tradição oral. Convencido – ao menos temporariamente – de que dificilmente conseguiria reunir personagens capazes de narrar tão bem a própria vida, no filme seguinte deixa de lado os relatos originais, base até então de todo o seu cinema, para explorar a verdade emocional de histórias contadas por quem não as viveu. É Jogo de cena, filme que torna problemática toda tentativa de estabelecer um juízo, seja moral, seja epistemológico, a respeito da superioridade do autêntico sobre o encenado ou do encenado sobre o autêntico. O que será mais real? Impossível dizer, ao menos no quadro do seu cinema.
Se em Jogo de cena Coutinho dirigira a cena, em Moscou ele abdica dessa função, entregando-a ao diretor de teatro Enrique Díaz. Coutinho, cujo método era o contrário da observação, agora se põe no papel de quem principalmente observa. Contudo, como já mostrara Jean Rouch, a observação não é passiva. O observador ali é Eduardo Coutinho, e os atores do Grupo Galpão sabem disso. Enquanto ensaiam As três irmãs, encontram convergências da peça de Tchekhov com suas próprias vidas. Eles têm consciência de que o cinema de Coutinho é feito dessas imbricações entre o pessoal e o universal. É isso que oferecem ao filme, como uma dádiva a Coutinho.
Em Jogo de cena, o fato vivido deflagra o material emocionalmente forte do filme, que é a parte de ficção. Moscou faz o caminho inverso. É a ficção que traz à tona a experiência real dos atores. As canções sintetiza as duas coisas. Algo foi vivido, e o vivido se ligou a uma canção. Anos depois, é ela, a canção – o artefato ficcional –, que traz de volta a intensidade da experiência original. E assim Coutinho avança.
Mas a lógica só emerge quando se olha para trás, o que pode muito bem significar que se trata de um artificialismo, um pouco como encontrar um padrão apenas porque se estava à cata de um. De fato, Coutinho não era um diretor programático e sempre deixou claro que odiava todo sistema. Nada mais distante dele do que a construção metódica de uma obra recheada de princípios. Preferia a contradição e o impasse à coerência.
Isto eu sei: Coutinho não gostava mesmo era da redundância. “Não se volta para a cena do crime”, dizia. O que permite especular que o filme que viria a seguir tentaria fazer alguma coisa que nenhum dos anteriores havia feito. Vale todo palpite: um filme só de citações (sonho antigo, cujo primeiro esboço foi Um dia na vida, realizado entre Moscou e As canções), um filme em que ele pediria aos atores que insuflassem um texto anódino – receita de cozinha, anúncio de eletrodoméstico, folheto de lançamento imobiliário – com emoção dramática, cômica ou sentimental. Não descarto nem a hipótese meio absurda de uma longa conversa com um computador dotado de inteligência artificial. Sendo esses sistemas máquinas estatísticas que coligem e sintetizam toda experiência humana digitalizada, consigo imaginar o interesse de Coutinho em explorar a natureza dessa síntese para encontrar o fantasma humano que ainda sobrevive na máquina.
Dentre todos os filmes possíveis, penso particularmente em um. Ele nasce da observação de que o cinema de Coutinho foi se adaptando às limitações físicas do próprio Coutinho, à sua fragilidade crescente, ao fato de que as décadas, os cigarros e a má alimentação acabaram por encolher o seu trânsito pelo mundo. Essa sempre me pareceu uma das principais razões pelas quais os filmes progressivamente se imobilizaram, a câmera não andando mais pela cidade, não subindo mais os morros do Rio, não indo mais para o sertão. Em vez disso, o estúdio e a cadeira em que o diretor e sua saúde precária podiam esperar a chegada dos personagens.
Coutinho falava do pensamento como “uma secreção do corpo”. Vale igual para o cinema que inventou. O corpo de Coutinho ditou o rumo de sua obra. Penso nele com seus 90 anos, sem poder se mover, fazendo um filme da cama – cama de casa ou de hospital. Em vez de selecionar personagens, o que exigiria uma energia de que provavelmente não dispunha mais, ele inverteria a equação: que os personagens agora o escolhessem. Que viessem lhe fazer perguntas. Ele, é claro, se interessaria pelas perguntas, não pelas respostas.
O velho documentarista que tanto recebeu de seus personagens trocaria de lugar com eles. Eles seriam Eduardo Coutinho, Eduardo Coutinho seria eles. Uma última e magnífica fusão, revelando, por fim, o sentido amoroso da obra.
* João Moreira Salles é documentarista, produtor de cinema e fundador da revista piauí. Dirigiu, entre outros, Entreatos (2004), Santiago (2006) e No intenso agora (2017).