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Eduardo Coutinho: crítico e espectador

01 de fevereiro de 2024

Este post faz parte da retrospectiva Coutinho 90, que este mês exibe Ao caminhar entrevi lampejos de beleza (2000), de Jonas Mekas.

Apresentação
Thiago Gallego

 

No final dos anos 1960 e início dos 1970, Eduardo Coutinho, dirigiu Faustão, seu segundo longa-metragem de ficção. O filme fazia parte de um projeto da produtora Saga Filmes, de Leon Hirszman e Marcos Farias, que visava a realizar quatro longas-metragens de cangaço: todos rodados no Nordeste, mesma equipe, mesmo elenco, quatro diretores diferentes. A produção foi marcada por uma série de problemas. Com salários atrasados, parte da equipe fazia greve já no início da filmagem. “E depois aconteceu que Faustão foi mal de bilheteria”, comenta o diretor em entrevista a José Marinho de Oliveira. “Eu não tinha condição de sobreviver em cinema. A Saga Filmes faliu, e eu acabei não recebendo um tostão pelo filme, nem os 10% da renda do filme, como diretor. Enfim, eu me casei nessa época com uma moça de Fazenda Nova, tive filhos. Optei por abandonar o cinema como profissão. Fui para o jornalismo, que eu já tinha praticado muitos anos antes.”[1]

Coutinho trabalhou por dois meses na revista Realidade e em seguida ingressou no Jornal do Brasil como copidesque, como relata Carlos Alberto Mattos na biografia Sete faces de Eduardo Coutinho: “Foi nesse período que floresceu a breve passagem de Coutinho pela crítica cinematográfica. De agosto de 1973 a dezembro de 1974, escreveu cerca de 40 artigos, entre resenhas, comentários informativos e até perfis biográficos de astros de Hollywood. Todos sobre filmes estrangeiros, com a solitária exceção de um texto intitulado ‘As riquezas do subdesenvolvimento’.”

De forte personalidade, os comentários e análises do então crítico e resenhista são marcados pela agudeza, inteligência, bom e – por que não? – mal humor que Coutinho deixaria registrado em tantas entrevistas, debates e aparições públicas. “Lembrando a pior época de Hollywood, O fim de Sheila [1973] reúne a futilidade à amoralidade mesquinha e inócua”, escreve sobre o filme de Herbert Ross, ao qual chama ainda de “um lamentável desperdício técnico e humano”.[2] Já a animação adaptada dos quadrinhos Lucky Luke, o destemido (1971), Coutinho chama de um filme “ingênuo, inofensivo, insípido”, em um texto intitulado “Oeste sem graça”.[3] Do filme de Stanley Kramer, diz “O poço de ódio [1973] é um filme insípido e medíocre que, mesmo nos EUA, não deve ter interessado muito a nenhum tipo de público”. E, ainda: “Ganhou a Medalha de Ouro no Festival de Moscou (1973). Pelos seus bons sentimentos e intenções, de que o inferno está cheio.”[4]

Ao mesmo tempo, dos filmes mais inesperados, surgem os comentários mais elogiosos. O pirata sangrento (1952), de Robert Siodmak, é um filme de aventura, ligado à tradição da comédia física e das acrobacias. Apresenta o capitão de um navio pirata que, por interesses próprios, decide ajudar a população de uma ilha da América Central em uma revolta anticolonial. No texto “Piratas no picadeiro”,[5] Coutinho sugere que a forma como crítica e historiadores de cinema desvalorizam um filme como esse é parte do mesmo “erro de ótica” que “jamais permitiu colocar em seu justo lugar as grandes obras do musical americano, anteriores à consagração oficial de Sinfonia de Paris”. Ainda sobre o filme de Siodmak, Coutinho afirma: “Pede que se deixe de lado por uma hora e meia a lógica comum e que se acredite pelo menos na metade da história que vai ser contada”. Algo muito próximo do que ele mesmo viria a dizer das histórias que seus entrevistados contam em seus filmes.

Mais do que uma rabugice para fins de memes (ainda não existiam), a produção escrita de Coutinho dessa época aponta para uma série de preocupações de base. Entre elas, a forma como Hollywood e algumas produções europeias apresentavam um cinema de pretensas preocupações sociais. O direito de amar (1972), história de amor dirigida por Eric Le Hung e ambientada em um país de governo despótico, é descrito no texto como “uma abstração que torna tanto o amor como a militância política figuras de retórica”,[6] e Os emigrantes (1971), de Jan Troell, sobre um conjunto de lavradores empobrecidos que vai da Suécia para os EUA em busca de uma vida melhor, é apontado como “canhestro quando quer ser simples e demagógico quando quer ser denunciador”.[7]

Em um texto sobre Os milhões de Madigan (1968), outro filme que o crítico Coutinho despreza, ele expõe suas preocupações acerca do mercado exibidor brasileiro, que “continua sendo um território aberto à pior produção internacional, que aqui entra livre de razoáveis barreiras alfandegárias, de leis de contingente ou de outras formas de defesa do similar nacional – o filme brasileiro, um intruso em seu próprio mercado. Essa situação colonial de mercado é tão antiga quanto a instalação, após a I Guerra Mundial, do complexo de distribuição-exibição no Brasil, sempre voltado para os interesses do filme importado.”[8] Um debate que segue em voga com as discussões da cota de tela e, agora, da regulamentação do streaming.

Nem mesmo o parque exibidor escapa aos comentários. Alguns dos textos terminam com uma resenha da sala de projeção. Sobre o Super Bruni-70, à época um dos mais novos cinemas da Zona Sul do Rio de Janeiro, relata que “o público é agredido por um permanente zumbido cuja intensidade lembra um esquadrão de barulhentos insetos”;[9] do Cinema-1, que descreve como uma “ótima casa [...] especializada e dedicada ao cultivo de um cinema mais inteligente”,[10] questiona por que mantém o hábito de fazer um intervalo durante a projeção, parando os filmes ao fim de um rolo qualquer para que os espectadores possam consumir do bar. Tomo ainda a liberdade de reproduzir na íntegra a nota que faz sobre o Cinema Pax:

 

Seu principal defeito permanente é a luminosidade excessiva da sala. Quanto à projeção, pelo menos na sessão a que assisti – quarta-feira, 22 horas –, foi catastrófica, quase sempre fora de foco. Antes do longa-metragem o público teve de suportar mais um inefável produto das fábricas Jean Manzon, com a mesma grandiloquência propagandística de sempre e o mesmo estilo anacrônico de fotografia, montagem, narração e concepção. Enquanto isso, os curtas-metragens brasileiros, com ou sem certificado de classificação especial, continuam mofando nas prateleiras.[11]

“A melancolia do crepúsculo”, um dos primeiros textos desse período, publicado na edição de 29 de agosto de 1973, crava já no parágrafo inicial: “No mundo do cinema, os diretores têm vida relativamente curta e precisam de muita saúde”. Depois de comentar a situação de Chaplin, Buñuel, De Sica e outros, arremata: “Se as condições genéricas do cinema são tão ingratas, é normal que no Brasil as coisas sejam ainda mais duras”. Ainda que, nos seus 40 anos, não pudesse saber disso, Coutinho viria a contrariar essa máxima. Um cineasta que, embora tenha ingressado na carreira no começo dos 20, concluiu o Cabra, um de seus mais célebres filmes, aos 51 anos e consolidou o estilo pelo qual ficaria conhecido e que renderia suas mais comentadas obras por volta dos 66, com Santo forte. Morto de forma inesperada em fevereiro de 2014, aos 80 anos, Coutinho fez filmes até o fim, mesmo em momentos de saúde fragilizada, adaptando seu modo de filmar às próprias condições físicas, como relatam o biógrafo Carlos Alberto Mattos e diversos colaboradores de produção.

Ao longo da retrospectiva Coutinho 90, que teve início em maio de 2023, quando o diretor completaria 90 anos, e segue até abril deste ano, o Cinema do IMS exibiu um compilado de diferentes momentos de sua carreira nas melhores cópias de exibição disponíveis: desde o trabalho como roteirista no Dona Flor e seus dois maridos, de Bruno Barreto, passando pelos primeiros longas-metragens de ficção, os episódios que dirigiu para o Globo Repórter, a produção em vídeo para o CECIP e aquele que talvez seja o conjunto mais conhecido de sua obra, que se consolida a partir de Santo forte. A intenção não é exatamente a de fazer uma retrospectiva completa, o que careceria de uma investigação mais aprofundada de filmografia e cópias, como aquela que desempenha atualmente o crítico e pesquisador Fábio Andrade em seu doutorado no Departamento de Estudos Cinematográficos da New York University. O que está em jogo é uma revisão e celebração da obra do diretor, com destaque também para aqueles filmes e momentos menos conhecidos, descentralizando de sua filmografia o conjunto final de filmes em que assina a direção.

Nesse sentido, é inevitável fazer essa parada em um capítulo que, embora não trate de uma produção audiovisual autoral, no mínimo tem algo a nos dizer sobre a forma como via e pensava o cinema.

Neste post estão reproduzidos dois textos: o já citado “A melancolia do crepúsculo” permite um vislumbre para o Coutinho crítico de cinema do Jornal do Brasil. Essa produção foi compilada em 2013 no livro Eduardo Coutinho, organizado por Milton Ohata e editado pela Cosac Naify. Meramente a título de informação, fazemos em nota de rodapé algumas erratas acerca de datas e idade dos diretores mencionados. Durante a leitura, fique à vontade para pular essas correções sem prejuízo. Em geral, trata-se de um ano a mais ou menos, o que em nada afeta a compreensão. O jornalismo pede tempos apressados, e não havia ainda um Google para checagem rápida.

O segundo texto é uma lista de referências cinematográficas publicada no jornal O Globo em novembro de 2007, e aponta para as preferências e impressões do Coutinho espectador. Dessa lista, exibimos no IMS Paulista e no IMS Poços o filme-diário, monumento evanescente, Ao caminhar entrevi lampejos de beleza, de Jonas Mekas.

De todo modo, não há por que se prender a esses esquematismos. Todo espectador é um crítico em potencial, e todo crítico é também espectador. Além de um dos maiores cineastas brasileiros, Eduardo Coutinho foi um interessante exemplo desses dois papéis.

Cena de Ao caminhar entrevi lampejos de beleza, de Jonas Mekas

 

 

A melancolia do crepúsculo[12]
Eduardo Coutinho

 

As notícias de que Charles Spencer Chaplin (84 anos) prepara-se para voltar ao cinema indicam que o grande comediante se defronta com o maior desafio de sua vida. Trinta e dois anos depois de abandonar a pele de Carlitos, sete anos depois de seu último filme – o frustrado A condessa de Hong Kong – ele está cansado e retirado do mundo em sua villa suíça. No mundo do cinema, os diretores têm vida relativamente curta e precisam de muita saúde – como comprovam a recente operação de Vittorio De Sica, a enfermidade gástrica de Luis Buñuel – o mais brilhante dos septuagenários – e a semiaposentadoria de quase todos os grandes mestres do cinema americano.

− Tudo que me resta fazer é suportar do melhor modo possível minha velhice e agradecer a Deus. Eu não sou mais capaz de fazer muita coisa. E os dias são longos. Frequentemente, adormeço sentado. Às vezes, através da janela, admiro a paisagem, as montanhas. É muito bonito, repousante. E é exatamente disso que eu preciso atualmente.

Essas declarações de Chaplin numa entrevista de dezembro de 1972 – com as palavras ditas muito lentamente e emitidas depois de muitos momentos de reflexão – indicam como lhe será difícil retomar sua atividade atrás das câmaras, sete anos depois do fracasso de A condessa de Hong Kong. Em sua mansão de Vevey, na Suíça, ele tem passado – aparentemente – os últimos meses envolvido por uma só atividade: compor músicas para seus clássicos do cinema mudo, que, paulatinamente reexibidos em todo o mundo, conquistam a nova geração, que só o conhecia pelos curtas-metragens mutilados vistos na TV.

O mito de Carlitos-Chaplin – que permanece – e seus milhões poderão facilitar seu eventual retorno à roda-viva dos estúdios. Seria um caso possivelmente inédito na história do cinema, que registra a aposentadoria dos octogenários e da maioria dos septuagenários e mesmo o declínio criativo – ou comercial – de ilustres sexagenários. De fato, a máquina do cinema, com suas implicações financeiras e burocráticas, acrescidas do desgaste vital de dirigir uma equipe de técnicos e artistas no estafante trabalho de filmagem, é impiedosa com os que envelhecem. E os produtores temem empregar seu capital num filme que pode ser interrompido por um enfarte do realizador (como é o caso atual de De Sica e seu produtor Carlo Ponti).

Desde o seu testamento cinematográfico – Luzes da ribalta, em 1952, quando Calvero-Carlitos comenta com digna resignação a “melancolia do crepúsculo” –, Chaplin realizou apenas Um rei em Nova York, em 1957, e A condessa de Hong Kong, em 1966. Os dois mostraram o artista tentando insistentemente manter o contato com o público, mas só conseguindo quando o traço autobiográfico se infiltrava na ficção e lhe dava uma verdade de outro tipo.

O anúncio da volta de Chaplin pode então ser considerado, senão um rebate falso, ao menos uma tentativa que provavelmente não se consumará. Se isso acontecer, ele continuará a exercer sua criatividade na música – essa arte tão compassiva em relação a seus praticantes – como na pintura – que lhes dá uma segunda juventude negada aos cineastas, caso muito frequente mas que pode ser resumido nos trabalhos de velhice do falecido Stravinsky e na peregrinação incansável do recordista Pablo Casals, com 92 anos[13].

Para quase todos os grandes diretores em declínio, não restarão o consolo da música nem os prazeres de um padrão de vida requintado. No máximo, poderão entregar-se aos hobbies que caracterizam o ritmo de vida de tantos aposentados. É o caso de William Wyler (70 anos) e George Stevens (69 anos)[14], cansados e relativamente desinteressados de novos projetos. Alfred Hitchcock (74) provou com Frenesi, seu último filme, recém-exibido no Rio, que o apelo artístico e comercial de suas formas fascinantes resiste à passagem dos anos; mesmo assim, é provável que agora só dirija filmes de tempos em tempos, escolhendo cuidadosamente o argumento.

George Cukor, 74 anos, famoso pela sofisticação de sua mise-en-scène e pelo trabalho de direção de atrizes (À meia luz, A costela de Adão, Nasce uma estrela, My Fair Lady[15]) é um dos que não se resignam à inatividade. Retirado do cinema há alguns anos, ele hoje percorre os estúdios e os escritórios de produtores em busca de uma chance, como um jovem ambicioso atraído pelas luzes da Broadway. Em seu desemprego, sua figura é o símbolo patético de um homem velho e fatigado, mas que ainda quer – e possivelmente sabe – criar.

Dos grandes diretores de Hollywood, daqueles que começaram ainda no silencioso, Howard Hawks é talvez o mais resistente. Aos 77 anos – sua estreia foi em 1926, com The Road to Glory[16] –, ele tem se mantido em atividade, embora espaçada: em 1966, realizou El Dorado e, em 1971, Rio Lobo – dois westerns que não lhe acrescentam muito à glória, mas que não desmentem suas virtudes. Nesse fenômeno de permanência, talvez não seja estranha a escolha do gênero: na verdade, o western sobrevive a todos os modismos e reafirma sua simplicidade quase imutável desde os primórdios do cinema americano. Numa entrevista em 1971, Hawks dizia:

− A ação deve ser surpreendente e lógica. Não há western novo porque não há argumento novo. [...] Um cineasta deve contar histórias simples e verdadeiras, a vida, o amor, a morte. O western me parece particularmente apto a preencher essas condições. [...] A capacidade de absorção desse gênero pelas massas parece inesgotável.

Foi também nas pradarias do Oeste americano, percorridas por pioneiros, índios, militares, caçadores de búfalos, que John Ford construiu um estilo e criou um mundo reconhecíveis à distância – por isso o adjetivo fordiano entrou no vocabulário de críticos e cinéfilos, definindo tendências e gerando polêmicas. Aos 78 anos[17], surdo (como Buñuel), cego de um olho e usando um tapa-olho à Moshe Dayan (como Raul Walsh e Fritz Lang, dois octogenários), ele recebeu em abril deste ano a mais alta condecoração civil do governo americano. Durante a cerimônia, no hotel Beverly Hilton, Ford – numa cadeira de rodas – e Nixon trocaram gentilezas, enquanto Jane Fonda, na rua, organizava protestos contra o presidente – Nixon chamou-o de um dos “gênios do cinema”, e Ford lembrou que, ao ver os prisioneiros americanos chegando de volta do Vietnã, exclamou: “Deus abençoe Nixon”.

Mesmo sendo o mais famoso diretor americano vivo, Ford está inativo desde 1966, quando fez Sete mulheres, de medíocres resultados. Em 1964, dirigiu na Irlanda, sua terra natal, Young Cassidy[18], mas teve de abandonar as filmagens antes do fim para ser operado, e o trabalho foi terminado por Jack Cardiff. Embora seja possível que volte a filmar – os projetos não faltam –, tudo indica que seu canto de cisne tenha sido Crepúsculo de uma raça (Cheyenne Autumn), de 1964, exibido no Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro no ano seguinte.

Mas certamente o único realizador que conseguiu manter a qualidade e o frescor de sua arte, de acentos sempre contemporâneos, é o espanhol Luis Buñuel, quase tão resistente quanto seus conterrâneos Picasso, Miró e Casals. Ele completa 73 anos em plena forma. Com seu último filme – O discreto charme da burguesia, a ser exibido proximamente no Rio –, ele não só ganhou o Oscar para a melhor produção estrangeira – que não foi receber – e o prêmio da Associação Nacional dos Críticos Americanos como registrou um grande sucesso de público e crítica.

Surdo há muitos anos – o que não lhe tira a jovialidade e lhe permite ser mais surdo quando encontra pessoas que não lhe interessam –, Buñuel mantém desde sua estreia, com os explosivos Un Chien andalou e L’Âge d’or[19] (1930), uma linha de coerência estética e temática exemplar, embora a iconoclastia do início tenha cedido o passo a uma crueldade mais sutil. Mas também ele não está isento dos achaques da velhice neste mês. Segundo notícias do México, Buñuel teria desistido de realizar O fantasma da liberdade, filme em projeto que deveria dirigir para o mesmo produtor de O discreto charme. Motivo: uma enfermidade gástrica, sem maior gravidade, tanto que, ao mesmo tempo, o diretor espanhol declarava-se decidido a só filmar, no futuro, suas ideias, e não mais adaptar argumentos de outros autores.

Internado num hospital para a extração de um quisto pulmonar, segundo alguns, ou de uma má-formação benigna, segundo sua esposa, Vittorio De Sica (72 anos), em seu leito de enfermo, tem esperanças de que o produtor Carlo Ponti aguarde seu restabelecimento para começar as filmagens de Il Viaggio[20], com Sophia Loren e Richard Burton. Famoso por seus filmes neorrealistas a partir de Vítimas da tormenta (1946), ator em mais de 150 filmes, De Sica mostrou-se em decadência nos últimos 20 anos, e só recentemente voltou a ser considerado pela crítica com O jardim dos Finzi-Contini (1971), que lhe deu mais um Oscar.

Entre os cineastas que se aproximam da marca perigosa dos 70 anos, destacam-se nomes como John Huston, Billy Wilder e Luchino Visconti, todos com 66 anos[21]. Ainda em atividade, é inegável que seus últimos filmes não têm o vigor de suas obras de maturidade, como O tesouro de Sierra Madre, Crepúsculo dos deuses e A terra treme.

Se as condições genéricas do cinema são tão ingratas, é normal que no Brasil as coisas sejam ainda mais duras. De nossos diretores vivos que ultrapassaram a faixa crítica, Cavalcanti (76 anos) reside na Europa e se dedica a escrever suas memórias – seu último longa é de 1958 –; Humberto Mauro (76), aposentado e de volta a sua Volta Grande natal, tem um projeto de filmar A noiva da cidade, uma velha ideia sua; Luis de Barros, que faz 80 anos ainda este ano, também tem planos de retorno, mas enquanto isso também mergulha no passado para terminar suas memórias. O último dos pioneiros a dirigir um longa-metragem foi Adhemar Gonzaga (73 anos[22]), com Salário mínimo, em 1970. Com uma infraestrutura muito deficiente – praticamente não há estúdios, o que obriga a filmar em cansativas locações –, o cinema brasileiro faria certamente sucumbir muitos dos septuagenários que ainda hoje se exercitam nos estúdios de Hollywood ou Cinecittà.

 

Filmes-faróis[23]
Eduardo Coutinho

 

Filmes, sem faróis. Primeira impressão - choque pós. Em geral, sem revisão (desilusão? ou não). Sem ordem de preferência (ou choque).

1. Shoah, de Claude Lanzmann, 1983,[24] quando vi. Diretor de um só filme, provavelmente (que preste). Se julga dono do assunto, Holocausto, impõe regras. Deve ser um chato. Mas o filme é extraordinário. Tudo no presente, sem arquivos. Importância do mecanismo de morte no atacado: problemas de gestão industrial. Nove horas de duração. Sofrimento e recompensa.

2. A morte de Empédocles, do (Jean-Marie) Straub (e Danièle Huillet). Visto na Cinemateca do MAM. Som direto, colinas do sul da Itália, atores vestidos a caráter, texto clássico (Hölderlin). Sem voz off. Palavras, vento. Tragédia seca, esta sim.

3. Faces, (de John) Cassavetes. Visto em 1968. Deslumbramento. Revisto 15 anos depois. Impossível corresponder à primeira impressão, filme recriado na cabeça, impossível. Quando vir pela terceira vez, creio que o filme aguenta e crescerá.

4. As I Was Moving Ahead Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty [Ao caminhar entrevi lampejos de beleza], de Jonas Mekas. Visto em VHS, péssimo estado, em Buenos Aires, há alguns anos. Filme-diário para acabar com os filmes-diário. Testamento, final do último milênio. Nada acontece. Letreiros. Piano e a voz do Mekas reportando-se ao passado das imagens. Nenhum som direto. Planos de 2, 5 segundos. Câmera não para. Luz e focos pras picas. Dura quase cinco horas, acho – tem que ser visto inteiro, de uma vez – se você aguentar. Tempo que passa, passou.

5. Onde começa o inferno (Rio Bravo), de Howard Hawks. Visto em 1959, por aí. A elegância das pessoas (homens) que andam. Se mexem. Gestos. Andam. Vivem. Uma escarradeira. Cinema clássico, além dele.

Escrito, sem revisão, em 5 minutos. Olivetti, lettera 22.


[1] Entrevista concedida em 1977 a José Marinho de Oliveira e reproduzida no livro Eduardo Coutinho (2013), com organização de Milton Ohata e edição da Cosac Naify.

[2] “As regras do jogo”, texto publicado em 13 de abril de 1974.

[3] Publicado em 7 de fevereiro de 1974.

[4] “Os ingredientes do fracasso”, publicado em 22 de novembro de 1973.

[5] Publicado em 10 de março de 1974.

[6] “A luta abstrata”, publicado em 2 de abril de 1974.

[7] “As vinhas aguadas”, publicado em 16 de novembro de 1973.

[8] “Uma questão de mercado”, publicado em 19 de março de 1974.

[9] Parte de “A luta abstrata”.

[10] “O outro lado do tédio”, publicado em 28 de março de 1974.

[11] “Os monstros”, publicado em 18 de maio de 1974.

[12] Originalmente publicado em Jornal do Brasil, 29 de agosto de 1973

[13] Pablo Casals morreu em outubro de 1973, 2 meses após a publicação desse texto, aos 97 anos. (n.d.e.)

[14] À época da publicação William Wyler tinha 71 anos e George Stevens, 68.  (n.d.e.)

[15] Cujo título em português foi Minha bela dama. (n.d.e.)

[16] Título em português: Espelhos d’alma. (n.d.e.)

[17] À época da publicação, John Ford tinha 79 anos. (n.d.e.)

[18] Em português: O rebelde sonhador. (n.d.e.)

[19] Em português: Um cão andaluz e A idade do ouro. (n.d.e.)

[20] O filme seria lançado em 1974. O título adotado no Brasil foi A viagem proibida. (n.d.e.)

[21] À época John Houston e Billy Wilder já tinham completado 67 anos. (n.d.e.)

[22] Adhemar Gonzaga tinha 71 anos quando o texto foi publicado. Faria 72 no mês seguinte. (n.d.e.)

[23] Originalmente publicado em O Globo, 13 de novembro de 2007

[24] A primeira exibição de Shoah data de abril de 1985 (n.d.e.).