Vale por uma aula ilustrada de cinema – em especial do gênero western – a sessão que combina o curta Estranha forma de vida e uma longa entrevista de seu diretor, Pedro Almodóvar, em cartaz em cinemas de todo o país.
Em escassos trinta minutos de filme, Almodóvar alcança uma concentração narrativa e uma condensação dramática exemplares ao contar o reencontro de dois caubóis depois de 25 anos. Na juventude, ambos foram pistoleiros de aluguel. Mais importante que isso: foram amantes. Hoje, na meia-idade, Jake (Ethan Hawke) é xerife de um vilarejo e Silva (Pedro Pascal) se estabeleceu como rancheiro. Um deserto os separa, e não apenas no sentido geográfico.
Tensão erótica
O reencontro se dá numa situação limite: o turbulento filho de Silva (George Steane) é o principal suspeito do assassinato da cunhada de Jake, de quem era amante. Jake irá prendê-lo? A reaproximação de Silva era puramente interesseira, para salvar o filho? Relação homoerótica, feminicídio, atrito entre a lei e as lealdades familiares, tensão entre o desejo e o dever – Almodóvar orquestra todos esses elementos, equilibrando de modo admirável o diálogo e a ação, tudo confluindo para um confronto em que três homens se encaram com suas pistolas em riste.
O “problema” da entrevista que vem a seguir é que o diretor ilumina de tal maneira o filme, exibindo uma tamanha consciência de suas escolhas estéticas e de sua relação com o mais clássico dos gêneros cinematográficos norte-americanos, que sobra pouca coisa para o crítico dizer que não seja redundante ou dispensável.
Almodóvar chama a atenção, por exemplo, para a composição da cena em que, recém-reencontrados, os dois amigos se postam diante da cama de casal da casa de Jake, de costas para a câmera. Por um momento, vemos pelos olhos de Jake as espáduas de Silva em primeiro plano e a cama ao fundo. A câmera desce ligeiramente pelas costas do personagem, como que para enquadrar melhor a cama, mas o resultado é uma tensão erótica silenciosa, plena de possibilidades e promessas.
Como nota o diretor, não era o caso de mostrar a nudez dos personagens, e menos ainda seu ato sexual. “Já fiz isso lá atrás, em A lei do desejo”, diz ele. Agora, o que lhe interessava eram os ecos da relação homoerótica de juventude em dois homens maduros. É mais ou menos o tema que ele abordou em Dor e glória (2019), mas em outro contexto.
Western revisitado
Em Estranha forma de vida, o interessante era inserir esse relacionamento no quadro de um gênero cinematográfico essencialmente viril. E aqui merece reparo um comentário feito por Almodóvar na entrevista. A certa altura ele apresenta seu curta como o primeiro filme a abordar a homossexualidade masculina num faroeste, omitindo o precedente de Brokeback Mountain (2005), independentemente do juízo crítico que se possa fazer do filme de Ang Lee. Mesmo Ataque dos cães (Jane Campion, 2021), citado pelo diretor como um dos bons westerns recentes dirigidos por mulheres, também traz em seu núcleo uma relação homoerótica não muito velada.
De todo modo, é um prazer ver e ouvir um cineasta falar com tanta desenvoltura de seu trabalho e de seu diálogo com referências do gênero, de John Ford a Clint Eastwood, passando por Sam Peckinpah, Anthony Mann e especialmente Sergio Leone, de quem ele aproveitou os cenários construídos há 60 anos na região de Almería, na Espanha.
Em tempo: o título Estranha forma de vida vem do fado homônimo de Amália Rodrigues e Alfredo Rodrigues Duarte, cantado lindamente em falsete no filme por Caetano Veloso (e “dublado” em cena pelo ator Manu Ríos). Vendo o curta e ouvindo Almodóvar, é lícito concluir que a forma estranha de vida em questão não é a homossexualidade masculina, mas sim uma civilização em que os tormentos da alma e da carne são resolvidos à bala.
O conde
No texto da semana passada, sobre Post mortem e outros filmes sobre a ditadura militar chilena, faltou falar de O conde (2023), de Pablo Larraín, que ainda não tinha entrado na Netflix. Vamos brevemente a ele, então.
É uma alegoria macabra rodada em preto e branco que imagina Augusto Pinochet como um vampiro nascido na França no século 18 e desde então dedicado a sugar o sangue de jovens vítimas e a combater movimentos revolucionários mundo afora, até se tornar militar no Chile e trair a confiança do presidente Salvador Allende, derrubando-o do poder e implantando uma ditadura sanguinária.
Em contraste com a contenção, as elipses e o laconismo de Post mortem, tudo é explícito, enfático e delirante em O conde, do cinismo dos personagens (a mulher, os filhos e o mordomo do ditador morto-vivo) aos voos – muitas vezes literais – da fantasia, numa estética do excesso e da extravagância que só encontra paralelo em obras de um Terry Gilliam ou de um Gillermo del Toro.
Nessa sátira feroz, em que o sarcasmo dá o tom, o risco é cansar o espectador com o acúmulo de acontecimentos fantásticos, que podem causar a sensação de vale-tudo. Mas há achados inspirados, como a personagem da freirinha exorcista (Paula Luchsinder) disfarçada de perita contábil. Sua caracterização parece ironicamente inspirada em Maria Falconetti, a Joana d’Arc do clássico de Carl Dreyer (1928).
Do ponto de vista político-ideológico, a força do filme está em retratar o fascismo como um morto insepulto, prestes a reviver a qualquer momento. Tem causado incômodo entre comentaristas de direita o fato de Larraín associar Pinochet à ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher (Stella Gonet), que aliás serve como narradora. O que há de mais provocador na alegoria do cineasta, de fato, é mostrar o neofascismo como filho bastardo do neoliberalismo. Si non è vero, ao menos dá pano para manga.