Não será exagero dizer que Pecadores é um dos grandes acontecimentos da temporada. Ao combinar e subverter de modo original diversos gêneros caros ao cinema norte-americano, o filme de Ryan Coogler consagra definitivamente o poder de fogo de uma nova geração de cineastas negros (leia-se pós-Blaxploitation e pós-Spike Lee).
Pecadores é ao mesmo tempo drama histórico, terror, musical, western e filme de gângster, mas sem perder seu eixo fundamental: o poder subversivo (no melhor sentido) da música afro-americana.
A alma e a música
A “força diabólica do blues” é tematizada logo na primeira sequência, a manhã em que o jovem negro Sammie Moore (Miles Caton) chega ferido e com os restos de um violão despedaçado à igreja onde seu pai, o pastor Jedidiah (Saul Williams), ministra um culto. Ouve então o terrível vaticínio: se quiser salvar a alma, terá que largar a música.
Estamos nos confins do Mississippi, em 1932, e o filme passará a contar o que aconteceu nas 24 horas anteriores, quando os irmãos gêmeos Smoke e Stack (ambos encarnados por Michael B. Jordan) chegam de volta de Chicago com o dinheiro que roubaram de uns gângsteres para abrir um juke joint, isto é, um bar de beira de estrada que oferece bebida e música negra a preços módicos.
O lugar escolhido é uma antiga serraria de propriedade do líder local da Ku Klux Klan, Hogwood (David Maldonado). Está armado desde logo o cenário para um violento conflito racial – mas o modo como este se desenvolve é que confere ao filme sua contundência e sua originalidade.
Releitura do cinema
Nas duas horas que se seguem presenciamos não só um vertiginoso resumo da história norte-americana (indígenas, plantation, imigração, puritanismo, segregação) como também uma releitura crítica de gêneros cinematográficos clássicos, como o western, o terror, a comédia e o musical. A desenvoltura com que se transita entre eles é extasiante. É como se Ryan Coogler quisesse passar a limpo tudo aquilo que Hollywood nos despejou durante um século.
Vampiros, fantasmas, bandidos, músicos, divas, indígenas, chineses, todos são convocados para essa festa divina e demoníaca, sublime e sangrenta.
Resumindo assim, pode-se dar a falsa ideia de uma mixórdia aleatória, mas o fato é que Pecadores se atém, se não à verossimilhança, ao menos a uma certa lógica das ações e a um respeito às regras dos mitos consagrados: os vampiros, por exemplo, só entram num recinto se forem convidados, são vulneráveis ao alho e à luz do sol, e só se pode matá-los com uma estaca no coração.
Há um jogo subterrâneo interessante entre o ceticismo de Smoke, a religião de origem afro praticada por sua ex-esposa Annie (Wunmi Mosaku) e o protestantismo de Jedidiah. O jovem Sammie parece oscilar entre as três coisas até optar pela religião do blues.
Passado, presente, futuro
É a música, afinal, que dissolve os obstáculos, supera as diferenças, eleva os seres humanos acima das dúvidas e miudezas da vida. Uma sequência antológica atesta isso: no juke joint, o que começa como um blues “raiz”, com piano, violão e voz, se desdobra em jazz, rock, soul, funk, break etc., conjurando toda a música negra pretérita, presente e futura.
Rodado em película com câmeras IMAX, Pecadores certamente chegará logo ao streaming, mas vale a pena tentar assistir num bom cinema – e ficar até o fim dos créditos, pois há cenas extras esclarecedoras. E aqui um pequeno spoiler: na sequência final, ambientada sessenta anos depois do dia fatídico, quem interpreta Sammie veterano é ninguém menos que a lenda da guitarra Buddy Guy.
Cidade dos sonhos
Está em cartaz também, em linda cópia restaurada, outro filme obrigatório para todo cinéfilo que se preze: Cidade dos sonhos (Mulholland Drive, 2001), de David Lynch. Escrevi sobre ele aqui quatro anos atrás: Contra a interpretação, quando chegou ao streaming. Assistir no cinema, desnecessário dizer, é outra coisa.