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Macbeth negro

20 de janeiro de 2022

A tragédia de Macbeth, de Joel Coen, disponível no Apple TV+, poderia ser apenas “mais uma” das inúmeras versões cinematográficas da célebre peça de Shakespeare. Mas pelo menos duas circunstâncias o impedem de cair na vala comum da irrelevância, da qual só escapam Orson Welles, Akira Kurosawa e Roman Polanski (cada um à sua maneira): sua deslumbrante construção visual e a presença de Denzel Washington como protagonista.

O enredo, afinal, é o mesmo há mais de quatro séculos: o senhor feudal e chefe guerreiro Macbeth (Washington) ouve de três bruxas a profecia de que se tornará rei da Escócia; atiçado por sua ambiciosa esposa (Frances McDormand), ele comete os assassinatos e atrocidades necessários para realizar o vaticínio. A força perene da tragédia vem em grande parte do fato de conjugar um estudo sobre o poder político (sua violência, suas intrigas) e um mergulho profundo na moral individual, nas linhas de conduta que os indivíduos traçam para si mesmos.

Espaço irreal

A ousadia estética dessa nova versão consiste na construção de um espaço absolutamente irrealista, quase onírico ou abstrato, mediante o recurso a um preto e branco límpido, à iluminação expressionista e sobretudo a uma cenografia geométrica, em que todos os ambientes são espaçosos e despojados de móveis e acessórios.

Não há a intenção mimética da referência a qualquer estilo arquitetônico histórico conhecido (nem tampouco a qualquer paisagem natural ou topografia real, com exceção da floresta “que anda”). A opção por Shakespeare e por essa estilização radical é tanto mais surpreendente quando se tem em mente a filmografia anterior de Joel Coen com seu irmão Ethan, que em seu conjunto configura um mergulho satírico e sarcástico – mas essencialmente “realista” – na insanidade da América contemporânea.

Há uma diferença fundamental entre a exuberância estética dessa nova versão e a do Macbeth de Orson Welles (de 1948). Se o expressionismo de Welles, também antirrealista a seu modo, buscava a encenação de um mundo bárbaro, quase pré-histórico, com castelos semelhantes a cavernas e figurinos que poderiam ser de tribos nômades, o expressionismo asséptico de Coen parece esterilizar o espaço por onde se movem os personagens, afastando dele o espectador. O resultado, ao menos para mim, é um filme que suscita mais a admiração distante do que o envolvimento emocional com o drama narrado.

A declamação quase literal das falas da peça soa deslocada nesse contexto extraterreno e, de certo modo, extra-humano, e não necessariamente por culpa dos atores. Ficam faltando o som e a fúria, vale dizer, a alma do texto de Shakespeare. Talvez o distanciamento tenha sido deliberado, ou talvez a ausência de envolvimento seja uma falha de sensibilidade minha. De todo modo, mil vezes esse risco do que uma versão acomodada ou moldada aos padrões comerciais atuais, em que tudo parece minissérie de época e as tragédias do mundo se apequenam em melodraminhas burgueses ou receituários de autoajuda.

Elenco negro

Mas o fato é que a esse contexto de estranhamentos se acrescenta mais um, a escolha de um ator negro (e não um ator negro qualquer, mas Denzel Washington) como protagonista. Se havia o risco de alguém acusar Coen de racismo por escalar um negro para representar o tirano Macbeth, o diretor escapou sabiamente dessa censura ao escolher outro ator negro (Corey Hawkins) para o papel de seu oponente, Macduff. Nos termos empobrecidos de nossa época, os dois seriam o vilão e o herói do drama.

E aqui voltamos a Orson Welles, que em 1936, aos 21 anos, adaptou e dirigiu nos palcos uma versão de Macbeth com um elenco inteiramente negro. Mas, se naquela montagem, chamada de Voodoo Macbeth, a audaciosa opção se justificava pela transposição da trama da peça para uma ilha ficcional do Caribe, a presença de atrizes e atores negros representando nobres escoceses em A tragédia de Macbeth vem reforçar a tendência radicalmente não-realista, não-mimética, da versão de Coen.

É o tipo do procedimento que parece mais fácil no palco, onde desde a Antiguidade homens representam papeis femininos, atores usam máscaras figurando deuses, demônios ou animais e a imaginação do espectador é instigada a fazer o resto. No cinema, mais preso ao “real” por sua própria natureza técnica, a escolha implica uma ousadia maior.

Haverá quem considere a escalação de Denzel Washington como uma rendição às pressões identitárias, uma adequação a novas exigências do mercado, etc. O cineasta brasileiro Jorge Furtado também foi questionado por escalar Lázaro Ramos como protagonista de vários filmes em que não se questiona nem por um momento sua condição de negro numa sociedade racista como a do sul do país. “Como assim, o fato de ele ser negro não faz diferença?”, perguntou-se. Analogamente, haverá quem indague: como assim, negros encarnam nobres escoceses e ninguém estranha?

Prefiro ler a questão de outra maneira. Tanto num caso (Furtado) como no outro (Coen), há a aposta numa espécie de utopia antecipada, a de que haverá de existir um mundo em que não haja diferenciação alguma das qualidades humanas em função da cor da pele ou da etnia de origem dos indivíduos. Nem que esse mundo, ao menos por enquanto, seja a tela do cinema.

Tiradentes e a liberdade

Começa nesta sexta-feira, 21 de janeiro, a 25ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes, nosso mais tradicional festival dedicado ao cinema independente e à prospecção de novos talentos, linguagens e temáticas. Pelo segundo ano consecutivo a mostra será totalmente online, com a exibição gratuita de 169 filmes, entre longas, médias e curtas-metragens, além de seminários e debates.

O homenageado desta edição, com uma mostra completa de sua produção, é o cineasta Adirley Queirós, de Ceilândia (DF), autor de pelo menos duas obras-primas, Branco sai, preto fica (2014) e Era uma vez Brasília (2017). Vale a pena conhecer esse cinema que vibra na tela com sua criatividade e energia, transcendendo as fronteiras entre documentário, ficção científica, comédia e libelo político. Adirley, pensando bem, é a cara do festival de Tiradentes.