Marighella, de Wagner Moura, tem tudo para se tornar um filme-evento, como foram, cada qual no seu momento, Central do Brasil, Cidade de Deus, Tropa de elite e Bacurau. Vale dizer: obras que, ao tocar em algum nervo exposto da sociedade, transcenderam o espaço específico do cinema e se tornaram fatos políticos e culturais. As pré-estreias realizadas até agora pelo país afora parecem confirmar essa hipótese.
Nesta época de alinhamentos automáticos e exacerbação da disputa ideológica, discutir esse filme é caminhar sobre um campo minado. Apontar nele problemas e deficiências pode render ao comentarista o rótulo de direitista, reacionário ou coisa pior — bolsonarista, por exemplo. Exaltar suas virtudes pode valer um passaporte para a vala comum dos “esquerdopatas”.
No entanto, é preciso correr o risco. Tentar espanar, tanto quanto possível, a poeira da militância pró ou contra e encarar o filme como obra audiovisual de ficção em torno de personagens e fatos reais, baseada numa sólida biografia do protagonista, escrita por Mario Magalhães.
Preâmbulo: a meu ver, os filmes mais interessantes sobre o período da ditadura militar são os que a abordam por um viés oblíquo, pessoal, como por exemplo Deslembro, de Flavia Castro, Hoje, de Tata Amaral, Cara ou coroa, de Ugo Giorgetti, ou mesmo O ano em que meus pais saíram de férias, de Cao Hamburger. A ditadura filtrada pelo olhar de cidadãos quase anônimos, atropelados pelo bonde (ou tanque de guerra) da história.
Os filmes que, ao contrário, tentam reconstituir diretamente o confronto entre a guerrilha e a repressão geralmente fazem pensar em adultos brincando de mocinho e bandido e proferindo discursos grandiloquentes. O maniqueísmo esquemático é a regra.
Marighella não escapa plenamente dessa armadilha, mas de certa maneira a torna mais complexa e sutil, elevando o problema a outro patamar. Se o Marighella encarnado por Seu Jorge não chega a ser santificado, como acusam muitos afoitos que nem sequer viram o filme, e se os guerrilheiros e frades que se unem a ele são retratados com razoável matização, os personagens do “outro lado” (policiais, militares, agentes da CIA) são bastante mais chapados, quase caricaturais, em especial o delegado Lúcio (Bruno Gagliasso), malvado até no ato de respirar.
Ação e discurso
Outro desafio enfrentado por um filme dessa natureza é o de buscar um equilíbrio entre a ação (assaltos, explosões, tiroteios, perseguições) e o substrato político-ideológico que lhe dá sentido. Enfatizando o lado da ação, pode-se cair num thriller banal que gira em torno de si mesmo (o mocinho-bandido em que pouco importa a causa dos confrontos); se a discussão política assume o primeiro plano, o risco é cair no discurso panfletário.
Marighella encara esse dilema com habilidade e certa ousadia. A primeira cena – o assalto a um trem para obter armas para a guerrilha –, filmada como um plano-sequência muito bem coreografado, joga o espectador logo de cara no centro da ação e, ao mesmo tempo, apresenta a razão que move os assaltantes/guerrilheiros.
Ao longo do filme, entretanto, essa equação nem sempre se realiza a contento. Nas cenas de ação, predominam uma câmera na mão ostensivamente “nervosa”, música enfática, sonoplastia ensurdecedora, muletas convencionais dos filmes do gênero. E nos diálogos cai-se com frequência no explicativo ou declaratório, ou seja, muitas vezes os personagens não conversam, mas fazem discursos para a posteridade.
Marighella cresce quando busca soluções visuais que ultrapassam os clichês do cinema de ação. Um momento que me parece particularmente feliz é a justaposição da cena em que Marighella diz que ele e os seus vão partir mesmo para o terror (e Seu Jorge termina a fala olhando para a câmera) e a enxuta sequência seguinte, em que vemos um jovem guerrilheiro (Humberto Carrão) jogando uma granada num prédio ligado ao governo norte-americano, numa condensação audiovisual digna de um videoclipe (a caminhada em direção à câmera, a granada atirada quase displicentemente, a bandeira dos EUA, a explosão, o fogo, tudo numa tomada de poucos segundos).
A opção de apresentar uma parte da narrativa pelo olhar do filho do protagonista adensa a humanidade do personagem e confere um peso moral maior a sua conduta, reciclando um recurso dramático que vem desde O garoto, de Chaplin, e passa por Ladrões de bicicleta, de De Sica.
Do ponto de vista dos fatos históricos narrados, Marighella dialoga diretamente com O que é isso, companheiro?, pois dois de seus personagens participam do sequestro do embaixador retratado no filme de Bruno Barreto, e com Batismo de sangue, de Helvecio Ratton, que narra o envolvimento dos frades dominicanos com a ALN de Marighella.
Filme atual
Spoiler que todo mundo já sabe: Marighella morre, a ditadura militar recrudesce. Não é um filme sobre um passado morto e enterrado, mas, dada a atual conjuntura, é a reabertura de feridas em carne viva, a volta de cadáveres insepultos. Na mente e no coração do espectador, faz-se uma ponte inevitável entre Marighella e Marielle. Talvez por isso milhares de robôs (humanos ou artificiais, pouco importa) tenham invadido o site IMDb para dar cotação baixa ao filme sem tê-lo visto. Talvez por isso eclodam os aplausos e gritos de catarse nas salas de cinema ao final das pré-estreias.
Para o bem ou para o mal, com seus defeitos e virtudes, Marighella é um filme que sai da tela para entrar na história.
Urubus
Urubus, de Claudio Borrelli, que ganhou os prêmios da crítica e do público na 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, pode ser visto até domingo, dia 7, na repescagem do festival.
É, de fato, um filme extraordinário, que reconstitui ficcionalmente a saga de um grupo de jovens pichadores paulistanos, cujo feito de maior repercussão foi a invasão e pichação da 28ª Bienal de São Paulo (a “Bienal do vazio”), em 2008.
Ao equilibrar, na sua construção, a vibração de um documentário com a intimidade de um filme doméstico, Urubus insere o espectador no centro da vida intensa daqueles garotos e garotas que vivem sempre por um fio, enfrentando o risco de acidentes fatais e o cerco da polícia, além da hostilidade de moradores e de grupos rivais. O pano de fundo é a segregação dos espaços (de moradia, cultura e convivência) da metrópole. Um filme de uma vitalidade contagiante.
Italianos
Começa nesta sexta-feira, 5 de novembro, o 16º Festival de Cinema Italiano, que este ano será híbrido, com exibições no cine Petra Belas Artes, em São Paulo, e acesso online. Na programação, dezesseis longas-metragens inéditos no Brasil e dezesseis clássicos de diretores como Federico Fellini, Sergio Leone, Dario Argento, Lina Wertmuller e Mario Monicelli.
Entre os inéditos que pude ver, três se destacam: Ar parado, de Leonardo Di Costanzo, O grande silêncio, de Alessandro Gassmann, e Welcome Veneza, de Andrea Segre. É uma cinematografia que tenta se reerguer e revitalizar, mas o contraste com a era de ouro de 1945 a 1980 ainda é doloroso.