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O império dos sentidos

28 de julho de 2022

Alguém já disse que entender um filme do tailandês Apichatpong Weerasethakul é mais difícil que pronunciar seu nome. Talvez seja mesmo, se “entender”, no caso, significar apreender intelectualmente uma obra e explicá-la em linguagem verbal. Ganhará mais, a meu ver, o espectador (ou o crítico) que se deixar levar pelo fluxo de sensações posto em movimento por seus filmes – como o desconcertante Memoria, em cartaz nos cinemas - incluindo, a partir de agosto, as salas do IMS.

Não que não haja estímulos ao intelecto na trajetória da escocesa Jessica Holland (Tilda Swinton), que passa a ser assombrada por um som estranho (“É como um estrondo surdo vindo do centro da terra”) durante uma temporada na Colômbia, em visita a uma irmã (Agnes Brekke) que vive com marido e filho em Bogotá. O difícil é encontrar um significado claro e explicável nessa trajetória. Menos que um sentido, o que há é uma provocação aos sentidos.

A primeira cena do filme mostra Jessica saltando da cama ao ouvir o ruído perturbador. Nós a vemos em silhueta, na penumbra da madrugada – análoga, aliás, à luminosidade de uma sala de cinema. Pouco depois, num quarto de hospital, Jessica está ao lado do leito da irmã, que também cochila e acorda, falando de um sonho que acaba de ter.

 

Entre o sono e a vigília

É nessa condição incerta, entre o sono e a vigília, que o diretor tailandês instala suas personagens – e os espectadores que se dispuserem a imergir nessa experiência. Pois, a exemplo do que ocorre em outras obras do cineasta, trata-se aqui muito mais de imersão do que de observação e análise.

É numa espécie de transe ou sonambulismo que Jessica vai se movimentar daí em diante, obcecada por descobrir a origem e a razão do ruído misterioso. Encara-o como uma mensagem (do seu próprio corpo? Do mundo dos sonhos? Do espaço sideral? Do além?) a ser decifrada. Numa das sequências mais belas e significativas, ela tenta descrever o mal que a aflige para o jovem técnico de som Hernán (Juan Pablo Urrego), que busca num acervo de efeitos sonoros algo semelhante.

O recurso à criação verbal de imagens (“É como uma grande bola de chumbo caindo sobre uma chapa metálica no fundo do mar”, por exemplo) indica uma tentativa de ultrapassar as limitações da linguagem para expressar uma sensação. Estamos no centro do cinema de Apichatpong Weerasethakul, com sua ânsia de sinestesia, de ultrapassar as fronteiras entre os sentidos, e entre estes e a inteligência.

 

Do subsolo ao cosmos

Seguindo o passo hesitante de Jessica o espectador é levado a explorar outros territórios – das profundezas da terra, onde se encontram ossadas humanas de seis mil anos, à imensidão do cosmos, passando pela destruição da floresta e de povos indígenas para a construção de uma estrada de interesse de madeireiros e traficantes de animais.

Na sequência em que a protagonista desce ao subsolo para acompanhar a descoberta de ossadas durante a perfuração de um grande túnel, é impossível não lembrar da cena análoga de Roma, de Fellini, em que uma casa romana pré-cristã é encontrada durante a construção do metrô. O moderno e o arcaico se entrechocam nesse mergulho.

A ideia de profundidade é evocada também na conversa em que o técnico de som Hernán conta a Jessica que tem uma banda de música eletrônica chamada Depth of Delusion (profundezas da ilusão, ou do engano). Os dois estão sentados significativamente aos pés de uma estátua de Nicolau Copérnico, o homem que afirmou que a terra girava em torno do sol, e não o contrário, como até então se acreditava.

A passagem do subterrâneo ao extraterrestre se dá na segunda parte do filme, no interior amazônico da Colômbia, em que alguns elementos apresentados na primeira parte reaparecem com o sinal mudado ou distorcido, sendo o mais evidente deles o surgimento de um Hernán (Elkin Díaz) algumas décadas mais velho que o primeiro.

Seria ele a mesma pessoa, depois de muitos anos? Um duplo? Ou se trata de um sonho, com “vestígios do dia” da ação vivida anteriormente e transmudada pelas operações de deslocamento e condensação estudadas por Freud na interpretação onírica? Algo similar ocorre em dípticos de David Lynch como A estrada perdida e A cidade dos sonhos.

É impossível cravar uma certeza. A todo momento em que julgamos ter encontrado “a explicação”, o filme nos puxa o tapete sob os pés e nos recoloca de novo num estado de dúvida e surpresa. Durante um par de horas somos levados pelo diretor a vivenciar um bom punhado de situações e a pensar no lugar que ocupamos no mundo e nas relações que mantemos com nosso entorno: familiar, social, histórico, natural, cósmico. Não é pouca coisa.

 

Cinema italiano

Começa nesta quinta-feira, 27 de julho, a nona edição do festival 8 ½ Festa do Cinema Italiano, que exibirá até 10 de agosto uma dúzia de filmes da safra recente em cinemas de dezenove cidades brasileiras.

Entre os destaques está o documentário Ennio, o maestro, de Giuseppe Tornatore, sobre o compositor Ennio Morricone (1928-2020), autor de mais de 400 trilhas de filmes de diretores tão díspares como Sergio Leone e Brian De Palma, passando por Pasolini, Bertolucci, Argento e Tarantino.

O fio condutor do documentário são entrevistas do próprio Morricone, sempre lúcido e simpático, entremeadas por trechos de filmes e depoimentos de músicos e cineastas que trabalharam com o biografado. É uma viagem por boa parte do melhor cinema das últimas décadas, além de um libelo em defesa da música de filme como grande arte, equiparável às óperas e sinfonias.

Há também Leonora, adeus, primeiro filme realizado por Paolo Taviani depois da morte de seu irmão e parceiro Vittorio. A despeito do título, não é uma versão do livro homônimo de Luigi Pirandello, mas uma reconstituição ficcional dos três funerais que o grande escritor e dramaturgo teve na Itália durante e depois do regime fascista, seguida pela adaptação do conto Il chiodo (O prego), um dos últimos escritos pelo autor.

Também na programação estão duas obras dedicadas a grandes artistas do Renascimento: Eu, Leonardo, de Jesus Garces Lambert, docudrama baseado nos escritos do pintor da Mona Lisa, e Tintoretto – Um rebelde em Veneza, de Giuseppe Domingo Romano, um documentário um tanto convencional, mas extremamente informativo e esclarecedor, sobre um dos últimos gigantes renascentistas, que muitos veem como um precursor do cinema.

No ano de seu centenário, Pier Paolo Pasolini (1922-75) é homenageado com a exibição do clássico Mamma Roma (1962), estrelado por Anna Magnani.