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Negritudes imaginadas no cinema brasileiro: dessemelhanças, aparições e apagamentos

14 de agosto de 2024

Sessão Indeterminações: Pretitudes em atrito está em cartaz no cinema do IMS Paulista e IMS Poços em agosto.

 

Quantas Áfricas são possíveis de imaginar a partir do Brasil? Quantos Brasis podem ser imaginados desde o cinema? Quais e quantas constelações são possíveis para imaginar essas respostas?

Essas são algumas das perguntas que me habitam ao responder ao desafio de colocar em relação o Pequena África (2002), de Zózimo Bulbul, e Uma nega chamada Tereza (1973), de Fernando Coni Campos. Filmes díspares em seus contextos de produção, circulação, trajetória dos diretores e fortuna crítica, por exemplo. Entretanto, do ponto de vista da pesquisa, podem evocar uma categoria em comum: a ideia de apagamento – que, sob a nossa perspectiva, circunda cada um dos filmes de forma diferente, haja vista as dessemelhanças pontuadas anteriormente.

Como o tempo é menino que se desdobra em muitos caminhos e direções, e muitas vezes o que parece vir depois veio mesmo antes, parece-me fazer mais sentido começar pela Pequena África. Conforme aponta Ana Paula Alves Ribeiro[1], este filme faz parte de um conjunto de cinco curtas-metragens realizados de forma descontínua entre 1981 e 2005. Neles, Bulbul se dedica, de forma geral, a registrar os territórios negros, suas articulações e seus modos de existência na cidade do Rio de Janeiro.

No que tange ao filme aqui programado, nota-se um diálogo entre temporalidades inscritas no território e nos personagens que nele se deslocam contando a sua história, por meio de uma perspectiva negra. Este enegrecimento da narrativa histórica, além de fazer parte do projeto estético-político do diretor, acaba por ser ressaltado quando observamos que a sua realização se deu durante o período do recrudescimento das tensões em torno dos usos e das disputas políticas das memórias da região portuária da cidade.

Desse modo, evocar Nanã – considerada a mais velha das divindades afro-brasileiras, comumente sincretizada com Nossa Senhora de Sant’Ana –, cujo frontispício da igreja aparece nos primeiros minutos, já aponta para os caminhos da memória e suas temporalidades múltiplas – pois, além da dimensão memorial e ancestral que as duas divindades trazem nas suas dimensões religiosas, o próprio filme nos coloca em relação com camadas temporais diversas: nos relatos, na geografia, em fachadas, cemitérios e diálogos.

Em um quintal contemporâneo, o menino (Douglas Silva) nos diz: “Aqui é a Pequena África. Fins dos anos 1800 e início dos anos 1900. Aqui era onde moravam os ex-escravos.” Em seguida, Tia Jurema descreve, a partir da sua experiência familiar, como era aquele território, os frequentadores e as festas. Por sua vez, a menina (Flávia Souza da Cruz) deambula pela Pedra do Sal, Casa da Engorda, cemitérios dos Pretos Novos e dos Ingleses, bem como Waldir Onofre, pelo morro da Providência. Ambos conversam com outras pessoas, identificando os locais e sublinhando a importância desses fragmentos preciosos de um passado ao qual, durante muito tempo, foi recusado fazer parte da história, mas que insiste em permanecer por meio dos seus descendentes, que continuam a ocupar e disputar esse espaço físico, simbólico, histórico – e cinematográfico.

Por sua vez, diferente de Zózimo Bulbul, Fernando Coni Campos tem uma fortuna crítica rarefeita e concentrada basicamente em dois filmes, Viagem ao fim do mundo (1968) e Ladrões de cinema (1977). No que diz respeito a Uma nega chamada Tereza (1973), essa ausência se alarga ainda mais, visto que, até então, não havia nenhuma publicação a seu respeito, além das críticas da época do lançamento.

Cena de Pequena África, de Zózimo Bulbul

Uma nega chamada tereza é um filme de ficção em longa-metragem, realizado e ambientado nos anos 1970, com todas as contradições desse contexto, de um país imerso na ditadura e com diferentes concepções de nacionalidade concorrentes, tanto à direita, quanto à esquerda. Além disso, faz-se necessário ressaltar as tensões que envolveram a sua realização, com interferências da censura, três remontagens feitas à revelia e que, segundo Coni Campos, alteraram substancialmente as suas ideias e o próprio sentido do filme, o que o levou a rejeitar a direção e progressivamente afastar-se dele.

No filme, um trio de personagens africanos – Dr. Silvanius (Antonio Pitanga), Makeba Za-retê (Marina Montini) e Katoka (Samuel dos Santos) – vem ao Brasil acompanhar o Festival Internacional da Canção, no qual Jorge Ben, interpretando a si mesmo, é o favorito. Contudo, uma quadrilha, encabeçada por Barbarela (Pepita Rodrigues) pretende trocá-lo por um sósia e roubar o prêmio. Com o malogro do plano, os golpistas são presos, Jorge Ben segue sua carreira exitosa, Makeba muda de nome para Tereza, e resolve ficar no Brasil.

O que à primeira vista parece apenas um filme excêntrico que transita entre a comédia e o musical traz alguns pontos que consideramos merecer atenção. Aqui, em virtude da proposta da sessão, nos aproximamos daqueles que apontam para o imaginário relativo à África, à negritude, aos movimentos de emancipação negra e aos incômodos das esquerdas e seus intelectuais no cinema brasileiro do período. Makeba, por exemplo, é uma referência direta à cantora sul-africana Miriam Makeba, já conhecida no Brasil à época. Cabe observar também a explícita relação com as musicalidades negras urbanas do período, haja vista a centralidade de Jorge Ben, os nomes de algumas personagens, que correspondem às suas músicas, que também constituem uma ponte para a soul music brasileira, além da participação do Trio Mocotó, banda matriz do samba-rock.

Contudo, apesar dessa aproximação, os personagens africanos são caricatos, uma perspectiva normalizada para personagens negros, sobretudo pelo humor televisivo do período – a presença de Arnaud Rodrigues como roteirista é um indício importante nesse sentido. O repertório da militância negra oriundo dos EUA é tratado nessa mesma chave, ao passo que os personagens falam uma “língua africana” que diegeticamente só é compreendida por eles, e para a qual há uma legendagem flutuante para os espectadores, causando um pretenso efeito cômico, deslocado e racialmente estereotipado. Além disso, Jorge Ben é compreendido e acionado em uma perspectiva diluidora das tensões raciais brasileiras.

Nessa perspectiva, considero que o filme opera em movimento ambíguo, pois, apesar da expressiva quantidade de personagens e temática negra, há um apagamento por adequação das experiências negras em prol de um discurso de identidade nacional, que, mesmo em crise, e por isso também questionado pelo próprio filme, seguia disputada pelas esquerdas e a ditadura.

Desse modo, ao olhar a partir de 2024 para as Áfricas imaginadas, tanto pelas lentes da memória enegrecida acionadas por Bulbul nos anos 2000 e, por sua vez, pela musicalidade de Jorge Ben e estereótipos setentistas encontrados no filme de Coni Campos, menos me interessa uma perspectiva de disputa, e sim a necessidade de efetivamente constelar outros filmes para observar e compreender quando e como variam as formas de apreensão, apagamentos e reaparições sobre as Áfricas e seus descendentes, e o quanto isso fala das concepções de Brasil na historicidade do próprio cinema brasileiro.

 


 

[1] RIBEIRO, Ana Paula Alves. “Rio de Janeiro e sua herança africana: históricas contadas por Zózimo Bulbul”. Todas as Artes: Revista Luso-Brasileira de Arte e Cultura.