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Rascunho de genocídio

05 de janeiro de 2023

Não é todo dia que entra em cartaz nos cinemas brasileiros um filme proveniente de Ruanda. Mas não é só por isso que Nossa Senhora do Nilo merece ser saudado, e sim por sua força estética, política e moral. A história trágica daquele pequeno país centro-africano, condensada no microcosmo de um colégio de freiras, ilumina dilemas que dizem respeito a toda a humanidade.

Trata-se, na verdade, de uma coprodução franco-belga-ruandesa, dirigida pelo afegão Atiq Rahimi, com base no romance homônimo da ruandesa Scholastique Mukasonga. O elenco é quase todo de Ruanda e as línguas faladas são o francês e o quiniaruanda, um dos quatro idiomas oficiais do país (os outros são o francês, o inglês e o suaíli).

A ação se passa em 1973, no Instituto Nossa Senhora do Nilo, herança da colonização belga, voltado para a formação de moças da elite local. Uma delas, por exemplo, é filha de um ministro, outra namora o embaixador do Zaire. Algumas poucas, possivelmente bolsistas, são de origem mais modesta.

É nesse ambiente de garotas adolescentes, semelhante ao de tantos romances e filmes juvenis, que se infiltram progressivamente as tensões étnicas e sociais que explodiriam duas décadas depois num dos genocídios mais terríveis do mundo moderno, o extermínio de quase um milhão de pessoas ao longo de pouco mais de três meses.

 

Tensões interligadas

O atrito mais sensível é entre as garotas da maioria hutu e as da minoria tutsi, para as quais é reservada uma cota de 10% das vagas do colégio. Mas é só aos poucos que esse conflito se revela e assume contornos ameaçadores.

Há, entretanto, outras fricções, subterrâneas e duradouras. Por exemplo, entre o professor de ciências e o padre confessor das alunas, o primeiro ensinando a teoria da evolução e o outro se escandalizando com isso. E a contradição central, da qual decorrem todas as outras, entre os colonizadores brancos europeus e os povos locais.

O início do filme já estabelece esse amplo escopo histórico-antropológico. Das águas plácidas de um lago emerge uma moça negra que fala sobre sua avó. A partir de então, a voz dessa ancestral será ouvida, em off, ao longo do filme. Em sua primeira intervenção ela fala sobre a “terra deixada em desordem pelos colonos errantes que conquistaram o mundo perdendo-se de si mesmos”.

Foram os colonizadores europeus, primeiro os alemães e depois os belgas, que estimularam no seio dos ruandeses a rivalidade entre tutsis e hutus que redundou no massacre de 1994. Antes disso, segundo a escritora Scholastique Mukasonga, a divisão entre esses grupos era meramente de atividade: os primeiros se dedicavam ao pastoreio e à pecuária, os segundos à agricultura.

O mérito maior do filme, e certamente também do romance que o inspirou, é mostrar como essas questões retumbantes atravessam o dia a dia de meninas em fase de crescimento e descoberta do mundo. Da primeira menstruação à gravidez, da “cola” numa prova ao furto de uma porção de açúcar, das mitologias familiares às passagens bíblicas ensinadas em sala de aula, as pequenas coisas se interligam com as grandiosas, formando um mundo imaginário complexo e contraditório.

 

Virgem negra

A Nossa Senhora do título, uma estátua da Virgem erigida nas proximidades do colégio, catalisa um punhado dessas questões maiores. É uma mulher de rosto negro, como a “nossa” Aparecida. Mas uma aluna hutu cisma que o nariz da estátua é demasiado fino, como o dos tutsis, e planeja substituí-lo por um nariz largo, “autenticamente hutu” O tema da imagem, do símbolo, ganha primazia em mais de uma ocasião.

Um dos personagens mais ambíguos e interessantes do filme é o do Monsieur Fontenaille (Pascal Greggory), cafeicultor e antropólogo amador, que mantém um santuário tutsi em sua propriedade e está convencido de ter encontrado os restos mortais de uma antiga rainha da etnia, para a qual ele constrói um mausoléu em forma de pirâmide. Ele vê na aluna Veronica (Clariella Bizimana) o protótipo da beleza tutsi, praticamente uma reencarnação da antiga rainha.

Como se verá na última e sangrenta parte do filme, não há condescendência alguma com essa visão folclorizante do colonizador. “Não esqueça que os tutsis já atuaram em filmes ruins feitos pelos brancos. E isso só trouxe nosso infortúnio”, diz Virginia (Amanda Mugabezaki) para tentar despertar Veronica de seu encantamento com Fontenaille.

Virginia, não contaminada nem pela intolerância nem pelo deslumbramento, pode ser vista como um alter ego da escritora Scholastique Mukasonga, ela própria ex-aluna de um colégio religioso belga em solo ruandês. Quando se desata o caos, Virginia procura conservar um resto de lucidez e humanidade, e não por acaso vai buscar apoio na “bruxa” da região, repositório de uma sabedoria ancestral.

 

Prévia do massacre

A construção narrativa é sutil e segura, com algumas soluções brilhantes de montagem, como por exemplo numa cena de discussão entre garotas que é sucedida pela imagem de uma tesoura rasgando um tecido no ateliê de costura: a concretização de uma ruptura sem volta.

Nossa Senhora do Nilo encena uma prévia, em escala menor, do genocídio dos tutsis pelos hutus em 1994. Tudo somado, é uma obra sobre a busca de entendimento e convivência, um apelo contra o ódio e a opressão. Um ex-presidente brasileiro, de triste memória, dizia que as leis existem para proteger as maiorias, e que as minorias “têm que se adequar”. Em Ruanda, essa máxima foi levada às últimas consequências.