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A agonia

04 de dezembro de 2023

O anjo nasceu, de Júlio Bressane, é a atração da Sessão Cinética de dezembro. O filme será tema de debate com Ismail Xavier e os críticos da revista, Julia Noá e Juliano Gomes, em sessão especial na sala de cinema do IMS Paulista.

Cena de O anjo nasceu, de Júlio Bressane

A sessão Cinética de dezembro é movida pelo desejo de retorno a este que é possivelmente o filme mais significativo do início de carreira de Júlio Bressane, neste ano em que sua obra experimentou um processo radical de autorrevisão. Em 2023, Bressane, em colaboração com Rodrigo Lima, lançou A longa viagem do ônibus amarelo, um ensaio de mais de 7 horas de duração, que revisita o arquivo de imagens composto pelo seu conjunto de 58 filmes, realizados no percurso de seis décadas. O anjo nasceu permanece como uma obra central dessa trajetória, um dos filmes inaugurais do Cinema Marginal. A consagração crítica do filme ao longo dos anos não conseguiu, contudo, aquietar seu enigma, que guarda ainda a opacidade reluzente do momento em que foi produzido.

O anjo nasceu narra a tentativa de fuga de dois bandidos, Urtiga (Milton Gonçalves) e Santamaria (Hugo Carvana) depois de uma perseguição policial, da qual Santamaria saiu ferido. Os bandidos precisam se manter escondidos por alguns dias para esperar a poeira baixar. Eles invadem primeiro uma casa de veraneio, mantendo a proprietária (Norma Bengell) e sua empregada (Maria Gladys) como reféns. Depois, seguem perambulando pelos arredores da cidade quase sempre desertos, antes de botar o pé na estrada. O anjo nasceu é, portanto, um filme de fuga que tem a forma de uma espera.

A primeira imagem que vemos dos dois protagonistas é a de Santamaria em agonia, caído no chão com as mãos segurando a perna ferida, sendo acolhido nos braços pelo seu companheiro, Urtiga. A construção da cena nos remete à iconografia da Pietà, de Jesus morto nos braços da mãe, como se o filme encontrasse na dor de Santamaria uma certa faísca do sagrado. A cena é, na verdade, o primeiro de uma série de fragmentos que mostram, no prólogo do filme, os acontecimentos que compõe a história a ser narrada, que são revelados fora de toda cronologia. O filme por vir passa pela nossa frente enquanto escutamos um samba sobre a irreversibilidade do tempo, que canta um amor que não poderá voltar jamais.

O gesto de prefiguração do prólogo destitui a presentidade fundadora do drama como forma: a condição de que, a cada momento, a ação dramática pode decidir sobre seu destino, que ela sempre tem o futuro indeterminado em mãos. O prólogo permite que a aventura de Santamaria e Urtiga deixe a sucessividade da história e encontre a sincronicidade do mito. O filme situa seus personagens, portanto, sob o signo da fatalidade, de um destino sem reversão possível. O drama de Santamaria e Urtiga se desenvolve sob a sina de uma tragédia, que Urtiga parece ignorar e que Santamaria pretende antecipar seus sinais, sempre à espreita da aparição de um anjo que viria anunciar sua morte.

O filme se desenvolve, portanto, sob a conjugação de duas ordens do tempo: a fatalidade e a espera. A espera retira do tempo a sua forma e o devolve em estado bruto: os acontecimentos do filme tendem a não se encadear, nem a se desenvolver, preferindo deixar as situações se acumularem indefinidamente, uma depois da outra. A fatalidade inscreve em cada momento a possibilidade de um vislumbre da eternidade (que pode se esconder no mijo de uma criança). A ferida de Santamaria é o que permite o encontro das duas ordens. Ela anuncia a morte futura e marca, com sua degradação, a passagem do tempo, como faz o sangue quando escorre na pedra.

O primado da câmera fixa e do plano longo frontal firma a franqueza do filme diante do próprio material. O plano-sequência, escreveu Bressane certa vez, “quebra a casca do gesto”. A frontalidade, contudo, por vezes sugere a imagem de um ícone, como na cena enigmática em que vemos Urtiga sem camisa de costas para câmera, ajoelhado, na frente de Santamaria em pé, nu, de frente para o espectador. A primazia da pose às vezes parece expelir os personagens para fora da ordem do tempo. A valorização das linhas paralelas ao quadro petrifica tudo em uma imobilidade extramundana. O plano longo não apenas faz pesar o tempo da espera, ele sugere sua transcendência.

A aventura de Santamaria e Urtiga é uma experiência de profundo isolamento. A câmera prefere sempre os filmar de frente, cercados pelo vazio, como se eles já tivessem desertado do mundo. O confronto inicial de Santamaria com a polícia foi devidamente mantido no fora de campo e nada sabemos sobre a perseguição policial em curso que, para todos os efeitos, poderia muito bem não existir. As relações travadas com outros personagens no percurso do filme não são, propriamente, encontros, obstáculos que poderiam reverter o destino dos protagonistas; elas são apenas ocasiões para que os dois bandidos exerçam sua violência gratuita, sem titubear, nem temer pela resposta, absorvidos em si mesmos como crianças que brincam sozinhas. Eles assistem na televisão o homem pousando na Lua. Eles não estão menos distantes da sociedade, nem o deserto ao redor deles é menos vazio.

No filme, a solidão dos personagens não é um fato psicológico nem social. O isolamento, ao menos o de Santamaria, é, propriamente, metafísico. O que ele parece carregar é um sentimento pervasivo de exílio do mundo. “Para mim, o que está certo é que está errado e o que está errado é o que está certo”, confessa, como um credo pessoal. Os seus valores não são deste mundo. Os seus atos de violência talvez tenham sentido apenas em outra esfera. A violência no filme nunca é um ato de proteção contra a morte, luta pela sobrevivência. Ela é sempre um gasto dispendioso, que martiriza apenas os mais vulneráveis, os que não têm como se defender. Uma imagem invertida da graça. A partida de Santamaria está selada. Sua agonia é o preço da espera.

O plano final é, certamente, o mais comentado na longa fortuna crítica do filme: o plano fixo da estrada vazia se perdendo no horizonte, que persiste na tela por quase dez minutos. Uma imagem mundana do infinito, talvez do infinito espúrio da agonia sem fim, talvez o infinito apaziguador da morte. O plano que mais presentifica o tempo diante de nós é também aquele que o exaure, sugerindo um transe extático, pura contemplação do vazio. A estrada em ponto de fuga colapsa sob efeito da duração, que nos devolve a imagem reduzida a uma pura imaterialidade: uma superfície, sem profundidade, nem volume, que cintila sob o murmurinho ininterrupto dos grãos.