O beco do pesadelo, de Guillermo del Toro, que concorre ao Oscar de melhor filme, é um caso curioso de reciclagem tardia do gênero noir, como também foram, em seu tempo, Chinatown (Roman Polanski, 1974), Corpos ardentes (Lawrence Kasdan) e mesmo Blade runner (Ridley Scott, 1982). Trata-se, na verdade, de uma refilmagem do clássico O beco das almas perdidas, realizado em 1947 por Edmund Goulding e estrelado por Tyrone Power.
O filme de del Toro está em cartaz nos cinemas, e o de Goulding acaba de entrar na plataforma de streaming Belas Artes à la carte. Está disponível também no Youtube. Talvez seja interessante cotejar as duas versões, não como juízo de valor (“este é melhor do que aquele”), mas para observar as diferenças entre duas épocas, dois cinemas, dois mundos, para além, claro, das diferenças de estilo e temperamento dos dois realizadores.
Conto moral
Nos dois casos a história, extraída do romance Nightmare Alley (1946), de William Lindsay Gresham, é basicamente a mesma: um jovem pobre e ambicioso, Stanton Carlisle, se emprega como servente num parque de diversões itinerante, aprende a fazer um número de telepatia (“mentalismo”, na linguagem da época) e depois se lança em bem-sucedida carreira própria, em parceria com sua doce companheira Molly.
No filme original, Stanton é vivido por Tyrone Power; no remake, por Bradley Cooper. Coleen Gray é Molly no filme de 1947, papel assumido por Rooney Mara na versão de Guillermo del Toro.
Nos dois filmes, o drama se aprofunda quando Stanton, em suas performances, cruza a fronteira entre a telepatia (o “mentalismo”) e a mediunidade (o “espiritualismo”), o que Molly considera uma transgressão ética grave, crime de charlatanismo. É, nos dois casos, um conto moral, uma parábola sobre a ambição e a falta de escrúpulos, vício análogo ao alcoolismo em seus efeitos deletérios sobre a conduta humana.
O filme de 1947 é mais enxuto, condensado, com 40 minutos a menos que o novo. Uma primeira coisa a examinar, portanto, é o que foi acrescentado por Guillermo del Toro em sua versão.
Foram vários os acréscimos. Talvez o mais importante deles seja o passado do protagonista. No filme de Goulding, Stanton Carlisle chega do nada e nada sabemos de sua vida pregressa. O de 2021 já começa com um evento marcante da sua biografia, ao qual a narrativa voltará de quando em quando. O que se acrescentou assim foi uma dimensão psicanalítica, explicativa, ao comportamento do personagem.
À parte isso, há personagens e episódios ausentes do original e descrições mais detalhadas da vida na feira de atrações e na metrópole, além da introdução do contexto histórico (invasão da Polônia por Hitler, Segunda Guerra Mundial, governo Roosevelt), ausente da primeira versão.
Tudo é mais explícito no filme de Del Toro, em especial o erotismo e a violência. Na versão de Goulding, o geek (homem-fera devorador de galinhas vivas) tem grande importância, sobretudo simbólica, mas não é visto por nós. No filme de 2021 ele aparece bastante, em todo o seu horror, bem como fetos humanos e animais deformados.
A mudança parece nos dizer: assim como o público das feiras de atrações de antigamente, a plateia atual dos cinemas espera ser chocada sensorialmente. Mais que isso: quer ver “tudo”, sem precisar imaginar coisa alguma. O sensacionalismo do circo de horrores contagia a experiência cinematográfica. O cinema, vale lembrar, começou como atração barata de feira.
Noir ostensivo
Mas, nesse cotejo entre duas encenações de uma mesma história, talvez o mais curioso seja constatar que a versão recente é mais ostensivamente noir que a original, isto é, os signos e as figuras de estilo mais característicos do gênero estão muito mais presentes no filme de Del Toro: tomadas predominantemente noturnas na contraluz, com iluminação expressionista, abuso de enquadramentos oblíquos, contraste entre ambientes exageradamente luxuosos com outros exageradamente sórdidos, protagonista cool trafegando numa fronteira moral, etc.
No papel da viperina psicóloga Lilith Ritter, uma louríssima Cate Blanchett é uma mulher fatal de almanaque, quase um clone de Veronica Lake, em contraste com a mais discreta Helen Walker, sua homóloga da versão original.
Guillermo del Toro, que costuma trafegar com desenvoltura pelo fantástico (Cronos, O labirinto do fauno, A forma da água), adentra aqui um terreno estritamente “realista”, no sentido de não recorrer em nenhum momento ao sobrenatural. (Pelo contrário: o filme, de certa forma, é uma crítica à ilusão do sobrenatural, uma denúncia da manipulação da crença no além.) Ao mudar de gênero e de terreno, o diretor mexicano parece ter adotado uma abordagem aparentemente contraditória: um realismo brutal combinado com uma estilização ostensiva. Não por acaso, O beco do pesadelo concorre também aos Oscars de fotografia, direção de arte e figurino.
Se o filme de Goulding, no imediato pós-guerra, ainda apostava numa certa discrição e se fiava na imaginação do espectador, Del Toro prefere aturdi-lo com um visual estiloso ao extremo, ao mesmo tempo em que o tranquiliza explicando tudo em detalhes, sem deixar nada na sombra da ambiguidade. Investe, assim, na passividade de uma plateia saturada por imagens de todos os tipos. Pode não ser charlatanismo, mas não deixa de ser uma forma de ilusionismo.
Arnaldo Jabor
Nos últimos dias falou-se muito de Arnaldo Jabor, que morreu no último dia 15, aos 81 anos. Dizer que foi um dos grandes diretores do cinema moderno brasileiro e aquele que melhor verteu Nelson Rodrigues para as telas é chover no molhado, mas talvez as novas gerações só o tenham conhecido como o controverso comentarista televisivo. A melhor maneira de consertar essa distorção é assistir a seus filmes.
Três deles, a meu ver os melhores, estão disponíveis de graça no Youtube, em cópias decentes: Toda nudez será castigada, O casamento e Tudo bem. Além disso, o Canal Brasil programou uma “maratona Jabor” para este final de semana (19 e 20 de fevereiro). Vale a pena ver tudo o que for possível. É cinema de gente grande.
A mulher que fugiu
Está em cartaz nas boas salas do ramo, correndo o risco de ser despejado pelos “filmes do Oscar”, uma pequena joia: A mulher que fugiu, do coreano Hong Sang-soo. No habitual estilo alusivo do diretor, em que as coisas importantes parecem já ter acontecido ou estar por acontecer, uma jovem mulher casada (Kim Min-hee) aproveita uma viagem de trabalho do marido (ou pelo menos é o que ela diz, com uma insistência suspeita) para procurar amigas com quem conviveu no passado e saber como elas estão tocando sua existência.
Parece pouco, mas nesses breves encontros e nesses fiapos de conversas desenham-se vários destinos possíveis e a vida pulsa em toda a sua grandeza e fragilidade.
Em tempo: depois de A mulher que fugiu, de 2020, o prolífico Hong Sang-soo já realizou três outros longas-metragens. O mais novo deles, The novelist’s film, acaba de ganhar o grande prêmio do júri no festival de Berlim.